Este texto a tradução da Introdução do livro A evasão americana da filosofia: uma genealogia do pragmatismo (1989) de Cornel West. No livro, depois de descrever a trajetória do pragmatismo norte americano de Emerson à Rorty como um pendular entre a sagração do indivíduo e o sentido de comunidade, o autor promove um novo movimento no sentido desta última posição. Assim, anúncia o pragmatismo profético, dele e do brasileiro Roberto Mangabeira Unger como o novo capítulo dessa história. Deste modo, um negro e um latino-americano estariam na linha de frente desta tradição de pensamento em sua vertente profética e voltada para a dimensão intelectual de atividade política (Rorty se manteria como professor, preso na academia). Essa novidade tem 30 anos!
Cornel West
Um renascimento intelectual de pequena escala está acontecendo sobre a denominação ampla do rótulo de pragmatismo. Os controversos trabalhos de Richard Rorty, apoiados pelas perspectivas tão dispares de outros pragmatistas, como Hilary Putnam, Ian Hacking e Richard Bernstein, tem desconcertado a filosofia acadêmica. Críticos literários de convicção pragmatista como Frank Lentricchia e Stanley Fish tem perturbado as humanidades tradicionais. Intérpretes criativos de John Dewey como Sheldon Wolin, Michael Walzer e Benjamin Barber – que tem atualizado o pensamento radical democrático, agora desafiam a teoria política liberal. E pensadores pragmáticos como Jeffrey Stout estão dando nova forma as correntes dominantes do pensamento religioso.
Três questões básicas fundamentam este renascimento recente. Primeiro, existe um amplo desencanto com a imagem tradicional da filosofia como uma forma transcendental de investigação, um tribunal da razão que fundamenta todas as asserções sobre a Verdade, o Bem e a Beleza. A disciplina profissional da filosofia está atualmente presa em um interregno; percebe os becos sem saída da forma analítica de filosofar, porém ainda não está disposta a entrar no temível e selvagem terreno do pragmatismo e historicismo, com suas preocupações correspondentes nos campos da teoria social, critica cultural e historiografia. Esta situação tem feito com que a disciplina tenha um excesso de rigor acadêmico, ao mesmo tempo que mostra uma falta de vigor intelectual e uma incerteza em relação a qual objeto estudar. A relutância de mostram muitos filósofos na hora de entrar nessa região selvagem provém de sua adesão as delimitações disciplinares e as concepções que têm deles mesmos como acadêmicos. Para dizer grosseiramente, a maioria dos filósofos não foi educada para conversar com críticos literários, historiadores e teóricos sociais, nem estão dispostos a sacrificar a segurança que tem na imagem deles mesmos como acadêmicos dedicados a investigação filosófica “séria”.
Em segundo lugar, o desencanto com as concepções transcendentais de filosofia levou a uma ênfase na relação entre o conhecimento e o poder, cognição e controle, discurso e política. Os pensadores humanistas já não estão contentes com uma historicização da ciência, as moralidades e as artes estão ligadas estreitamente a estruturas de domínio e subordinação. Esta ênfase na materialidade da linguagem, nas formas em que estão socialmente construídas e historicamente constituídos os estilos de racionalidade e cientificidade ou as identidades e subjetividades, por exemplo, tem feito com que as investogações culturais se centrem na produção, distribuição e circulação de formas de poder, sejam eles retóricos, econômicos ou militares.
Em terceiro lugar, este enfoque nas diversas formas de poder fez com que os estudos humanísticos voltassem a ser a matéria prima da história humana, ou seja, a agência humana estruturada e circunscrita a todas as suas diversas manifestações. Foi-se o afã da moda pós-estruturalista de eliminar o sujeito. Porém também desapareceu o antigo enfoque humanista que elevava a agência humana dos criadores culturais de elite e que ignora as limitações sociais e estruturais que tendem a reforçar e reproduzir hierarquias baseadas em classes sociais, raças, gênero e orientação sexual.
Não é uma mera casualidade que o pragmatismo americano aflore de novo na superfície da vida intelectual do Atlântico Norte. Seus temas centrais, como a evasão da filosofia centrada na epistemologia, a acentuação dos poderes humanos e a transformação de algumas formas de hierarquia social antiquadas a luz de ideais religiosos e/ou éticos, fazem que seja relevante e atrativo. O encanto tão particular do pragmatismo norte-americano em nosso momento pós-moderno está em sua desavergonhada ênfase moral e seu inequívoco impulso construtivo. Neste período em que prevalecem os cinismos, niilismos, terrorismos e possível extermínio, existe uma ansiedade por normas e valores que possam fazer alguma diferença, o anseio por princípios de resistência e luta que possam mudar nossa situação desesperada.
A ironia da atual cena intelectual na América do Norte é que depois de uma obsessão por teorias e filosofias europeias, estamos descobrindo que algo de que necessitamos na herança americana. Este giro intelectual para nossa própria herança não deve converter-se em um pro-americanismo simplista na esfera mental, nem em um provincianismo ingênuo que despreza perspectivas internacionais. Porém esse giro é sintoma da cegueira que muitas vezes temos em relação a certas riquezas do passado intelectual e político americano. É evidente que nos aproximamos deste passado com melhores ferramentas graças a certos produtos europeus como são o marxismo, o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Porém também reconhecemos a debilidade destes, pois, em última instância mostram uma incapacidade para tratar os aspectos mais característicos de nossa situação atual. O giro para a herança americana – e sobretudo o pragmatismo americano – não é nem uma panaceia para nossos males, nem uma solução para nossos problemas. Deveria ser melhor entendido como uma tentativa de revitalizar nossa moribunda vida acadêmica, nossa letárgica vida política, nossa decadente vida cultural e nossas caóticas vidas pessoais, para o florescimento de personalidades com muitas facetas e o florescimento de mais democracia e liberdade.
Meu objetivo básico neste livro consiste em descrever o surgimento, o desenvolvimento, a queda e o ressurgimento do pragmatismo americano. Entendo o pragmatismo americano como um produto histórico e cultural próprio da civilização estadunidense: um conjunto concreto de práticas sociais que articulam certos desejos, valores e respostas americanas, e que têm sido elaboradas em aparatos institucionais controlados principalmente por uma significante parcela da classe média americana.
O pragmatismo americano surge neste momento como uma percepção profunda e uma miopia que provoca cegueira, proporcionando uma força conjugada com uma debilidade, tudo resultado de certas características peculiares da civilização americana: seus começos revolucionários em conjunção com uma economia baseada na escravidão; seu estado de direito elástico e liberal que se solapa por um status quo dominado pelo mercado (business-dominated status quo); sua cultura hibrida combinada com uma autodefinição coletiva como homogeneamente anglo-americana; sua obsessão com a mobilidade, contingencia e liquidez financeira combinada com um profundo impulso moralizante; e sua impaciência com as teorias e filosofias, que contrasta com sua ingenuidade para com as inovações tecnológicas, juntamente com algumas estratégias políticas de pactos e sistemas pessoais desenhados para assegurar o conforto e a comodidade. Essa “civilização de hotel” (usando a expressão tão apropriada de Henry James), que funde a incerteza do mercado capitalista com a busca da seguridade do lar, tem produzido um modo de pensar autóctone que subordina o conhecimento ao poder, a tradição à invenção, a comunidade à personalidade e os problemas imediatos às possibilidades utópicas.
O pragmatismo americano é uma tradição heterogênea com muita diversidade. Seu denominador comum consiste em um instrumentalismo, orientado para o futuro, que pretende desenvolver o pensamento como uma arma que facilite uma ação mais eficaz. Seu impulso básico é um radicalismo plebeu que alimenta uma rebeldia antipatrícia cujo objetivo moral é o de enriquecer o indivíduo e expandir a democracia. Esta rebeldia está arraigada na herança anticolonial do país, porém se encontra severamente restringida por um etnocentrismo e um patriotismo que reconhece a exclusão das pessoas de cor, as mulheres e determinados grupos de imigrantes, ao mesmo tempo que teme as demandas subversivas que podem fazer e exercer essas pessoas excluídas.
O argumento fundamental deste livro é que a evasão da filosofia centrada na epistemologia, desde Emerson até Rorty, desemborca numa concepção de filosofia como crítica cultural em que o significado de América é desvelado (put forward) por intelectuais em resposta a diversas crises sociais e culturais. Neste sentido, o pragmatismo americano não é tanto uma tradição filosófica que oferece soluções para problemas perenes da conversação filosófica iniciada por Platão, e muito mais um comentário cultural contínuo ou um conjunto de explicações que pretendem esclarecer a América para ela mesma em determinado momento histórico particular.
A preocupação dos pragmatistas com o poder, provocação e personalidade – em contraste, com a fundamentação do conhecimento, regulação da instrução e promoção da tradição – significa uma vocação intelectual para servir à uma população confusa apanhada nos redemoinhos da crise social, no fogo cruzado de polemicas ideológicas e em uma tempestade de conflitos de classe, raça e gênero.
Essa profunda vocação intelectual, bem diferente da nossa emasculação da profissão acadêmica, impele os principais pragmatistas americanos a serem intelectuais orgânicos de algum tipo; isto é, participantes da vida da vida mental que revelam e relatam ideias para ação em sentidos criativos, constituindo ou consolidando público para fins morais e objetivos políticos. Não é por acaso que as figuras mais importantes do pragmatismo americano usam a linguagem da crise – daí a centralidade da consciência crítica em seu trabalho – e exala urgência, em busca de estratégias e táticas para facilitar o seu exercício de liderança intelectual e liderança moral para o seu público. Em um nível mais profundo, essas figuras lidam com o problema do mal, produzindo construções sempre mutáveis, mas ideologicamente definidas, descrições de uma teodiceia americana.
Este livro não pretende ser uma exposição exaustiva do pragmatismo americano. Pelo contrário, é uma interpretação altamente seletiva do pragmatismo americano à luz da situação atual – ou de minha forma de vê-la – da sociedade e cultura americanas. Por exemplo, a omissão de George Herbert Mead ou C.I. Lewis não inmplica numa avaliação negativa sobre suas contribuições intelectuais significativas para o pragmatismo americano. Da mesma forma, meu foco em John Dewey às custas de Charles Peirce e William James não reflete meu profundo respeito por estes dois últimos. Porém sinto que a profunda consciência histórica e a ênfase em questões sociais e políticas que encontramos em Dewey tem mais a ver com meus propósitos do que o enfoque em lógica de Peirce e a obsessão com a individualidade de James. Considero James e Peirce figuras com uma intensa vocação de pioneirismo, que em parte construíram sobre os fundamentos de Emerson, porém é com Dewey com quem o pragmatismo americano alcança a política. Neste sentido, minha genealogia do pragmatismo americano é uma interpretação política explicita, porém espero que não seja ideológica em um sentido pejorativo.
Minha ênfase no legado político e moral do pragmatismo americano me permite defender um argumento já familiar, mas raramente justificado, de que Emerson é o ponto de partida mais apropriado para o estudo da tradição pragmatista. Por outro lado, ao incluir um historiador (Du Bois), um teólogo (Niebuhr), um sociólogo (C. Wright Mills) e um crítico literário (Trilling), tento mostrar como as sensibilidades emersonianas e sua descendência pragmatista ultrapassam os limites das divisões disciplinares do conhecimento próprias da modernidade.
Em relação ao método, este trabalho é uma história social das ideias. Concebe a esfera intelectual da história como conjuntos de práticas culturais distintas, únicas e pessoais, intimamente ligadas a desenvolvimentos mais amplos e concomitantes na sociedade e na cultura. Por um lado, este livro se beneficia da investigação pioneira de certos historiadores sociais que se aprofundaram nos limites institucionais que pesam sobre o agenciamento de pessoas explorados e oprimidas; assim o livro se foca principalmente, em como as complexas formulações e argumentos dos pragmatistas americanos determinam e são determinadas pelas estruturas sociais de exploração e opressão. Por outro lado, este texto aprende com – sem endossar – a grande tradição idealista da historiografia, pois tenta entrar nas formulações e nos argumentos dos pragmatistas americanos para que os papeis e funções sociais da ideias não se esgotem nem se limitem a curiosidade intelectual. Esta fusão do interesse intrínseco (ou efeito hedonista) e o interesse instrumental (o uso político) do pragmatismo americano é o objetivo desta história social das ideias.
Este livro também se endereça a crise da esquerda americana. Para isso não ofereço nada mais do que uma interpretação da tradição progressista que poderá inspirar e instruir os atuais esforços para refazer e reformar a sociedade e a cultura americana. Minha concepção do pragmatismo profético – uma frase que espero que não seja entendida pelo leitor como uma contradição em termos quando a tivermos explicado e ilustrado – serve como ponto culminante da tradição pragmatista; ou seja, é uma perspectiva e um projeto encaminhado para entender os principais impedimentos para um mais amplo papel para o pragmatismo no pensamento americano.
Comçei esse trabalho como um esforço para fazer um inventário crítico de mim mesmo, como uma forma de situar histórico, social e existencialmente minha obra como intelectual, ativista e ser humano. Dado o papel que tem ocupado em minha vida o pragmatismo americano, queria esclarecer minhas próprias contradições e tensões, minhas falhas e debilidades. Meu primeiro livro, Prophesy deliverance! Na Afro-american Revolucionary Christianity, publicado em 1982, tentou mostrar o potencial do cristianismo profético para atuar na oposição – sobretudo ao passar pelo filtro da melhor tradição eclesiástica afro-americana. Prophetic fragments, de 1988, seguiu nesta mesma linha. Minha aceitação crítica de certos elementos da análise marxista me vinculou ao movimento global cristão contra o imperialismo e o capitalismo, muitas vezes conhecido como Teologia da Libertação. Porém meus esforços por fomentar o pragmatismo americano como uma perspectiva filosófica persuasiva e como uma fonte autóctone de ideologia política das esquerdas americanas, deixou perplexa muita gente. Do memso modo que meus textos anteriores surgiram da minha práxis política em relação com minha identidade vinculada ao cristianismo profético, este livro constitui uma tentativa pessoal por fazer as pazes com minhas devoções filosóficas na luz de minha participação no movimento democrático socialista dos EE.UU. (Socialistas Democráticos da América), meu papel no mundo acadêmico americano (na Universidade de Princeton) e minha participação marginal na igreja afro-americana (como um pregador laico).
Este livro surge, primeiramente, do meu desencanto com a vida intelectual na América e desanimo com a situação política e cultural deste país. Por exemplo, me preocupa a transformação de certos intelectuais liberais extremamente inteligentes em neoconservadores tendenciosos devido a grosseiras lealdades identitárias baseadas na etnicidade e vulgares sentimentos neonacionalistas. Estou desalentado com a incorporação profissional de antigos ativistas da New Left, que agora frequentemente se aproveitam de oportunidades de forma carreirista, embora mantenham – com pouca seriedade e integridade – uma retórica política de oposição. E mais importante, estou deprimido em relação ao niilismo concreto nas comunidades americanas de classe trabalhadora e pobre – a frequente adicção em drogas, os suicídios, o alcoolismo, a violência masculina contra as mulheres, a violência “direta” contra gays e lésbicas, a violência dos brancos contra negros, asiáticos e pardos e criminalidade negra contra outros, principalmente outras pessoas negras.
Eu escrevi este texto convencido de que um reexame aprofundado do pragmatismo americano, despojando-o de mitos, caricaturas e estereótipos e vendo ele como componente de uma forma nova e inovadora forma americana autoctone de pensamento e ação de oposição, pode ser um primeiro passo em direção a uma importante mudança e transformação na América e no mundo. Como Culture and Society, de Raymond Williams e Marxism and Form, de Fredric Jameson, este livro é, entre outras coisas, um ato político.
Escrevo como alguém que busca aprofundar e enriquecer o pragmatismo americano, ao mesmo tempo em que traz críticas incisivas em relação a ele. Eu me considero profundamente moldado pela civilização americana, mas não totalmente parte dela. Estou convencido de que o melhor da tradição pragmatista americana é o melhor que a América tem para oferecer a si mesmo e ao mundo, mas estou disposto a admitir que este melhor pode não ser bom o suficiente, dada a profundidade das crises internacionais e domésticas que enfrentamos hoje. No entanto, esse objetivo pode tornar meus esforços não mais do que um gesto moral impotente, porém, no calor da batalha, não temos outra escolha a não ser lutar.
FONTE: “Introdução” de The American Evasion of Philosophy, pp. 3-8. 1989. Tradução de Marcos Carvalho Lopes para fins didáticos.