Renato Russo, Coringa e o fascismo cotidiano
Renato Russo, ao seu modo, antecipou a crítica política presente no filme Coringa (2019) ao gravar a canção Send in the Clowns como a abertura de seu álbum solo The Stonewall Celebration Concert em 1994. Para explicar isso vou recontextualizar a composição da canção, depois descrever como ela é usada no filme e, por fim, mostrar como há mais de 25 anos Renato Russo temia que os palhaços tomassem conta do país.
Stephen Sondheim é reconhecido como um dos mais importantes cancionistas de todos os tempos, porém poucas de suas obras alcançaram relevância para além dos palcos do teatro. Neste sentido, Send in the clowns (Que entrem os palhaços) é uma exceção que confirma a regra, já que alcançou sucesso popular, com diversas regravações, ganhando o prêmio de canção do ano em 1976 e é considerada uma canção de referência no jazz (jazz standars).
Composta por Sondheim para o musical A Little Night Music, de 1973, a canção Send in the clowns foi feita sob medida para a personagem Desirée Armfeldt, interpretada então pela atriz Glynis Johns. Sondheim imaginava que essa personagem não teria uma canção, mas depois percebeu que o timbre e musicalidade de Glynis Johns eram interessantes, embora ela não pudesse sustentar notas prolongadas. Fez uma canção adaptada para a voz da atriz, com frases curtas e pausas para que ela pudesse respirar.[1] Na opinião de Sondheim, mesmo depois que a canção foi regravada por diversos e importantes nomes, ninguém poderia canta-la tão bem quanto a atriz para quem foi composta: isso porque todos cantores “de verdade” (Cleo Laine, Frank Sinatra, Judy Collins, Sarah Vaughan etc.) tendem a prolongar a vogais, diminuindo a força dramática e desolação de sua intérprete original.
A personagem de Glynis Johns, Desirée Armfeldt, é uma atriz que no passado rejeitou o pedido de casamento de um nobre, Fredrik. Depois de muitos anos, reconhece que ele seria o amor de sua vida, mas o encontra casado com uma mulher mais jovem. Depois que Desirée Armfeldt se declara para Fredrik e percebe que ele não vai deixar a jovem esposa, canta Send in the clowns como forma de expressar musicalmente o desencanto das chances perdidas, desta cena que não trouxe um final feliz e fez desmoronar o cenário da personagem, de quem só conseguiu reconhecer e corresponder ao amor quando esta relação não era mais possível:
Isn’t it rich, are we a pair?
Me here at last on the ground,
You in mid-air.
Send in the clowns.
Isn’t it bliss, don’t you approve?
One who keeps tearing around
One who can’t move
Where are the clowns?
Send in the clowns[2]
Pedir a entrada dos palhaços é uma formulação que faz parte do jargão do circo e do teatro vaudeville, um modo de solicitar uma distração para uma cena ou um número que não deu certo: os palhaços estavam sempre prontos para entrar no picadeiro quando uma apresentação desandava (como acontece nos rodeios no Brasil, quando entram na arena para desviar a atenção do touro depois da queda do peão).
A canção Send in the clowns faz parte da trilha sonora do filme Coringa (Joker, 2019) de uma maneira curiosa. A canção aparece incorporada na narrativa do filme de modo destacado no processo de transformação de Arthur Fleck (Joachin Phoenix) de palhaço fracassado na arte de fazer sorrir, no grande vilão de riso constante. Enquanto três homens brancos bêbados assediavam uma mulher dentro do metro, Fleck, vestido de palhaço, começa a ter uma crise de risos. Isso é distração suficiente para que a mulher saia do vagão e para que os assediadores concentrem a sua atenção naquele palhaço risonho que atrapalhou o que seria a diversão. Um dos playboys se dirige a Fleck dançando e cantando ironicamente Send in the clowns antes de começar a espancá-lo. A reação de Fleck à violência é de atirar e matar seus agressores, perseguindo e executando com crueldade um deles que tentou escapar. O que começou como autodefesa termina com a violência excessiva de quem descarrega a arma no corpo de seu alvo.
Depois da explosão de violência Fleck corre pelas ruas até chegar num banheiro sujo e nele se fecha. Na versão original do roteiro, a personagem vomitaria, procuraria sua imagem no espelho, manipularia o revólver, puxaria o gatilho com a arma pontada para própria cabeça, a arma não dispara por não ter mais balas, ele lavaria seu rosto etc.: uma cena que seria lugar comum no cinema.[3] O diretor Todd Phillips e o ator Joaquin Phoenix, não consideraram esse desfecho adequado e improvisaram uma outra cena: trancado no banheiro, Arthur Fleck dança – ao som de uma sombria canção composta pela violonista islandesa Hildur Guðnadóttir (que assina a trilha sonora do filme) – e se reconhece no espelho: no prazer da explosão de violência, o delírio de onipotência que quebra a diferença entre a representação do palhaço fracassado e o nascimento do vilão assassino. O Coringa nasce neste momento, como se a canção Send in the clowns fosse incorporada, não como lamento de quem se frustrou, mas como a ação ressentida de quem não aceita ter seu desejo vilipendiado e assume a condição de um palhaço da vingança. O delírio continua, com o sonho de posse da pessoa amada, a realidade, tomada como teatro absurdo, perde a importância vista com distanciamento cínico…
O filme Coringa busca fazer com que o espectador se identifique com o protagonista e aceite até mesmo seus atos mais violentos como um espelho complexo e difuso: se a força da ordem social cair, quem você gostaria de destruir?
Coringa pesca em águas turvas por trazer para o centro do palco um outsider, que se identificaria com minorias (platonicamente apaixonado por uma mulher negra, revoltado com as oligarquias econômicas e seu esbanjamento, vítima do sadismo dos programas de televisão, a ausência de cuidados públicos com à saúde, vivenciando a exploração da miséria etc.). O coringa pode ser qualquer carta do baralho, qualquer pessoa. A profecia de destruição com a bandeira do niilismo total é uma acorde sedutor, que faz vibrar uma corda frágil em que se equilibra a esperança.
A canção Send in the clowns está na abertura álbum The Stonewall Celebration Concert, primeiro disco solo de Renato Russo, lançado em 1994. O disco, cheio de canções de amor e melancolia, escolhidas por Renato Russo para purgar o fim da relação com um norte-americano (que teria sido sua maio paixão) e, ao mesmo tempo, celebrar os 25 anos do levante de Stonewall. Russo sabia que era um ato político gravar canções de amor deixando claro, que eram homo afetivas (de um homem para outro homem): o levante de Stonewall não deveria ser visto como um ato que diz respeito somente a uma minoria, mas a todas as pessoas, na possibilidade de amar e serem amadas em um sentido mais amplo. Russo explicou isso em entrevista na época do lançamento do disco: “Não sou porta-voz de nenhum movimento, nem de nada. Não gosto de gueto. Acho que o homem é sexual. Gosto de uma frase que diz: “Os héteros não são normais. São comuns.” Existe todo um condicionamento pré-sexual determinado. O amor gay não é só o lado físico, e o disco fala justamente disso. As pessoas têm o direito de se expressar, de mostrar que existe amor, ternura, carinho, amizade entre elas. O modelo hétero oprime as pessoas. Está na hora de se respeitar os direitos dos que têm sensibilidades diferentes. E isso engloba o direito humano da escolha da sexualidade, que independe dele ser homem, mulher ou turco”[4]. Um tipo de postura que tolhe a liberdade do outro, é o que deve ser combatido: “é preciso respeitar as pessoas que não são comuns, que não são maioria. Gente que não vai gritar pela Copa do Mundo, gente que pensa, que não aceita tudo que é dito. A maior parte das pessoas não pensa, nem existe. O modelo da pessoa comum é vazio. Você não pode discordar de nada para não parecer diferente ”.[5]
“A maioria das pessoas não pensa, não existe”. Esse é um formulação que deve ser vista para além do ceticismo, como uma forma de negar a negação (como acreditar no discurso que nega ao outro a possibilidade de pensamento e existência?): uma crítica à uma espécie de convergência que dissolve as diferenças no que seria o comum (homem, branco, hétero etc.), feixes que se amarram num modo de existir que se impõem no cotidiano de modo autoritário.
Russo estava preocupado com o que considerava um perigo fascista nesse tipo de discurso da heteronormatividade compulsória: como se só as pessoas que se encaixam nesse perfil pudessem amar ou ter uma família que lhes compreenda e acolha.
O contexto favorecia esse tipo de discurso da direita que quer monopolizar o amor e a família. Depois da decepção da Era Collor o cenário da Democracia caiu: a cena que se esperava era de que com a abertura política teríamos desenvolvimento, progresso e estabilidade. Diante da decepção total dessas expectativas exageradas, a frustração era um terreno fértil para que posturas reacionárias voltassem à tona. O fascismo era para Renato Russo, assim como para Pier Paolo Pasolini, uma forma de colonização do cotidiano que permaneceria vigente e cada vez mais atuante: índios queimados por playboys em Brasília, chacina de adolescentes, tortura, fome etc.
O ceticismo de quem perde um amor e não consegue conceber que a pessoa amada pense de modo diferente é tão perigoso quanto esse tipo de fascismo, ou melhor, é uma de suas manifestações. Aceitar a queda do cenário e a necessidade de redescrição, implica em vivenciar o luto e a dor, para inventar outras e melhores versões de nós mesmos. Diante da crise econômica e política, a impaciência com os ritos democráticos liga o sinal de alarme sobre a tentativa de volta a formas de opressão e autoritarismo que estão no cotidiano de um país moldado por anos de Ditadura militar e pela herança da escravidão. Se o fascismo colonizou o cotidiano, ele também ameaça nossas formas de sentir e pensar, amar e desejar.
Renato Russo escolheu gravar a versão de Send in the clowns que Sondhein fez para Barbra Streisand, com acréscimo de alguns versos: se no final da versão original os palhaços talvez chegassem no próximo ano, agora há o reconhecimento de que já estão presentes ( O último verso diz “Don’t bother, they’re here”, algo como “Não se preocupem: eles estão aqui”).
Quem são os palhaços na versão da canção de Renato Russo? O disco The Stonewall Celebration Concert é uma coleção de canções de amor e um manifesto contra o fascismo.[6] Renato Russo considerava palhaços os fascistas que incorporam a ideologia da estupidez (fazendo de sua ignorância um valor), não aceitam conviver com a liberdade individual, espancam pessoas simplesmente por essas terem uma orientação sexual diferente, uma religião, identidade racial etc. A confirmação dessa leitura está no final da gravação de Send in the clowns, quando surge uma alegre canção circense. A música é de um hino utilizado pelos nazistas quando marchavam (Wenn Die SS Und Die SA Aufmarschieren de Horst Wessel). No encarte do álbum está a explicação: os nazistas seriam os palhaços de fato (“clowns indeed”).
[1]Sondheim queria que a o primeiro verso, “Isn’t it rich?”, fosse “jogado fora” com minimalismo vocal, por isso procurou consoantes fechadas em ch para alcançar o efeito que buscava: “Você não usa sons de vogal aberta. Você usa pequenas coisas cortantes para que o público não pense que é culpa da atriz. E isso faz a música especificamente para alguém que não pode cantar. SECREST, M. Stephen Sondheim : a life. Nova Iorque: Vintage Books, 2011. . p.238.
[2] “Não é magnífico? Nós somos um par? / Eu aqui finalmente no chão/Você no meio do ar./ Que entrem os palhaços!/ Não é um êxtase? Você não concorda?//Um fica correndo por aí,/ Um não consegue se mover./ Onde estão os palhaços?/ Que entrem os palhaços!”
[3] https://cultura.estadao.com.br/blogs/bootleg-alexandre-bazzan/a-musica-do-coringa/
[4] RUSSO, R. in: REIS, Paulo. “Para celebrar as minorias”. Jornal do Brasil, 21 de Junho de 1994. Apud: Conversações com Renato Russo. Campo Grande, MS: Letra Livre Editiora,1996. p. 183.
[5] Idem, p.183.
[6] Parte da renda do disco The Stonewall Celebration Concert foi doada para campanha contra à fome promovida pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.