O livro de Samuel Oluch Imbo An introduction to african philosophy (Rowman & littlefield Publishers, Inc. 1998) é um bom guia para quem quer se aproximar da filosofia africana ou pensar um curso de iniciação ao tema. Em muitos aspectos o livro de Imbo segue o caminho de Dismas A. Masolo em seu clássico African philosophy in search of identity propondo uma narrativa comparativa, contudo oferece recortes mais didáticos ao partir de cinco questões específicas:
Como a Filosofia africana pode ser definida?
Apresenta as possibilidades da definição a partir da tripartição: etnofilosofias (Placide Tempels, Leopold Senghor, Alexis Kagame), universalistas (Kwasi Wiredu, Paulin Hountondji, Henry Odera Oruka) e hermeneuticas (Tsenay Serequeberhan, Marcien Towa, Okanda Okolo).
A etnofilosofia é realmente filosofia?
apresenta e avalia as contribuições da historiografia de Anta Diop, da etnografia religiosa de Mbiti, da cosmologia de Marcel Griaule/Ogotemmeli, criticando em todos elas o apela para uma espécie de essencialismo, voltado para o passado, acrítico em sua apreensão da cultura oral, não atendendo a questionamentos atuais (de liberação política, social e cultural, feminina etc.) e dos parâmetros de discurso europeus.
A filosofia africana é única?
Revisita Tempels, um discurso positivo sobre a univocidade da filosofia africana na negritude de Senghor e sua crítica em Paulin Houtondji e um meio termo em Appiah.
Qual seria a(s) linguagem/linguagens da filosofia africana?
A memoria oral, o conflito oral-escrito, as línguas africanas ou as línguas dos colonizadores?
Existem conexões entre filosofia africana, afro-americana e feminista?
Imbo mostra a convergência de interesses entre a filosofia africana, a filosofia afro-americana e o feminismo no questionamento dos padrões da filosofia ocidental
A primeira parte do livro “Definições de filosofia africana”, se prende a primeira pergunta; a parte dois, “Etnofilosofia e seus críticos” aborda a segunda e a terceira perguntas; e as duas últimas interrogações são tema da terceira e última parte do livro, “A filosofia africana fazendo conexões”.Para cada questão Imbo desenvolve um capítulo, que, se por vezes precisa ser reducionista, oferece as indicações bibliográficas para que o especialista se aprofunde e questões de estudo para guiar a leitura do iniciante.
O livro de Imbo é corajoso por desenvolver a oposição entre etnofilosofia e filosofia africana em termos semelhantes ao da oposição entre sofistica e filosofia: “Vincular etnofilósofos, tais como Tempels, Kagame e Senghor, com sofistas, como Protágoras, Górgias e Hípias é inevitavelmente soar para alguns leitores como algo bizarro. Eu não quero dizer que aqueles etnofilósofos constroem somente argumentos retóricos tais como os sofistas eram acusados de fazer. Nem serve a comparação para retratar os etnofilósofos como habilidosos manipuladores da linguagem que tentariam fazer o pior argumento aparecer como o melhor. O que eu quero focar com essa comparação é o conotação pejorativa do ataque a ambos, “sofistas” e “etnofilósofos”. As semelhanças estão na conotação negativa a que são confinados por seus oponentes. De fato, o apelido “etnofilósofo” é algo como um insulto, porque ser um etnofilósofo é ser visto pelos filósofos universalistas como se estes praticassem a filosofia de uma maneira que desvia da forma convencional” (p.54). A etnofilosofia seria o Outro da Filosofia, tomada em sentido universal, tradicional. Na filosofia africana teríamos a orientação etnofilosófica como à busca por descrições da africanidade, pressuposições de uma essência africana a-histórica e unanimista que poderia ser decantadas a partir dos saberes e religiosidades tradicionais; já seus críticos, defenderiam as perspectivas e padrões profissionais da filosofia ocidental, renegando a possibilidade de tomar concepções coletivas e orais como filosóficas, sem colocar em questão sua perspectiva européia e reivindicação de universalidade. A construção de uma oposição “maniqueísta” abre espaço para uma terceira opção, que desenvolve, tanto uma crítica aos extremos pressupostos pelas outras vertentes, quanto uma aproximação melhorista em diálogo com o saber tradicional, o que Imbo chama de “orientação hermenêutica”.
Imbo procura mostrar como a adesão acrítica aos valores tradicionais pode significar a manutenção de formas de desigualdade de gênero tomadas como coisas naturais (cita como fonte desta crítica teólogas feministas como Mercy Oduyoye, de Gana; Rose Zoe-Obianga, de Camarões; e Dorothy Ramodibe, da África do Sul). A leitura de Imbo nos alerta para o problema da adesão a perspectivas essencialistas, que ao reivindicar politicamente uma “africananidade” comum e incomensurável, fecham a possibilidade de diálogo e repõe o lugar de excentricidade exclusivista. A filosofia africana, ao assumir sua especificidade e diversidade de questões, não deveria substituir o eurocentrismo pelo afrocentrismo, mas desenvolver uma perspectiva transcultural de comunicação. A tentativa de resposta para a pergunta sobre a existência de uma filosofia africana configurou-se como uma busca por identidade, que atualmente pode e deve ser superada com a aliança com perspectivas que questionam as concepções tradicionais de pensamento do ocidente, como as filosofias feministas e diaspóricas. Para Imbo, é a partir destes diálogos que se projeta um cânone de textos e narrativas que desconstroem a filosofia tradicional, situando e dando corpo para seus novos questionamentos.
O livro de Imbo funciona bem como um manual e neste funcionamento está seu defeito: o reducionismo didático necessário tende a proporcionar uma aparência de consenso que está longe de ser justificada. O livro de Masolo, African Philosophy in search of identity, mantém uma abordagem mais ampla e cuidadosa. Tanto Imbo quanto Masolo não avaliam o legado político dos “reis filósofos africanos” dentro do processo de descolonização, mas o último aborda problemas epistemológicos e a própria construção da ideia de África (com Eboussi Boulaga, Mudimbe e Towa). Wiredu continua justificado ao afirmar que na filosofia africana existe mais para se pesquisar do que para ensinar. Cabe complementar: e isso é bom!
Para saber mais: Tratamos dessas questões no #076- episódio do podcast filosofia pop; este mesmo episódio foi transcrito e numa versão preliminar com notas está disponível para download aqui.
Oque é a morte no sentido africano?
Porqué nao se pode falar da filosofia africana sem se falar da colonizaçao de africa???
Prof Marcos seria correto dizer que a filosofia africana é aquela que envolve temas africanos ou que utiliza métodos que são distintamente africanos?, ou então, filosofia praticada por africanos ou pessoas de origem africana?
Oi Liinoh, este é um ponto de controvérsia, como acontece com qualquer definição de filosofia (e daquilo que é ou não “africano”). A filosofia africana surgiu tentando definir a africanidade, confundindo-se com a antropologia e a religião, na tarefa de traduzir o modo como se daria o “senso de realidade”, ética, justiça, transcendência, tempo etc. para a tradição africana. Isso inicialmente era feito através de estudos que tomavam a língua, a religião ou cultura, como moldando um modo de pensar comum a todas as pessoas de um determinado povo. Por vezes, características estudadas em um grupo eram tomadas como sendo algo comum a um modo de vida comum a todos os africanos, tanto na África como na Diáspora. Na medida em que a filosofia profissional se desenvolveu na África precisou “limpar o terreno”, afastando-se da antropologia e da religião e questionando essa forma de ver a “filosofia” como uma forma de saber tácita e comum, irrefletida. Então a filosofia devia ser feita por pessoas com formação filosófica, que escrevem em primeira pessoa, argumentam e assinam. Essa posição foi rapidamente relativizada por filósofos que consideraram que os sábios tradicionais poderiam sim ser fonte de conhecimento, na medida em que eles mesmos revisam suas crenças, argumentam, se justificam etc. Para compreender e lidar com a sabedoria da filosofia popular existe uma disputa em relação aos métodos mais adequados: alguns rejeitam os “métodos ocidentais” outros os utilizam como ferramentas que se justificariam contextualmente pelos resultados que proporcionam. Neste sentido, a filosofia africana bota em questão o que é propriamente “filosófico”, recontando e denunciando os pressupostos eurocêntricos da história da filosofia padrão e de sua forma de conceber a racionalidade.
Noutra dimensão, há a disputa sobre o que designa o termo “africano” na filosofia africana. Na maioria das vezes é empregado como se referindo a África Negra, a cultura negra etc. Neste sentido a “África” foi inventada pela escravidão e seus prejuízos. Mas existe a postulação de que a África negra teria uma unidade cultural que se espalhou com a diáspora, de tal modo que permaneceria como traço marcante e verdadeira identidade dos descendentes de africanos na Diáspora. A ideia de uma africanidade precisa conviver e se justificar em sua relação com as tradições muçulmanas e cristãs; ainda assim, é muito difícil hoje defender as fronteiras da “África negra” e desconsiderar os escritos de pensadores muçulmanos, cristãos e etíopes que são parte de sua história. O alcance e repercussão da obra dos filósofos do Egito Antigo também é fonte de controvérsia. De todo modo, nos Estados Unidos se fala em africana philosophy para se referir a essa tradição de pensamento proveniente da África negra no continente e na diáspora e african philosophy, quando o foco está somente no continente. Essa divisão pode ser contestada e, no segundo sentido, muitas vezes escapa das fronteiras da África subsaariana. Então não posso fechar essa questão, mas complicar as coisas um pouco mais…