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Reinventar a filosofia

Severino Ngoenha e Giverage do Amaral

O inventor desta coisa pretensiosa que chamamos filosofia na verdade foi Platão.

Feira da Aizade 6

Como não gostava da arte, mas tinha muito sentido artístico, também inventou Sócrates, como meio para afirmar as suas ideias. É por isso que nunca saberemos o que é de Sócrates e o que Platão lhe meteu na boca antes da cicuta, como argumento de autoridade para afirmar a sua Basileia. Porém o terreno não estava livre, estava ensombrado de poetas,  escritores, dramaturgos  que faziam o essencial da educação (paidéia) no mundo helénico; uma educação que privilegiava a violência e a guerra, como nos narram, no essencial, os livros de Homero.

Criar uma epistemologia e um saber que busca a verdade e faz dela, da palavra e do consenso, o essencial do relacionamento entre os humanos pressupunha, em primeiro lugar, desconstruir a  paidéia, os seus métodos e os seus heróis. É o que resulta de uma lenda atribuída a Nietzsche, segundo a qual Platão se teria ‘imolado’ vivo, queimando toda a sua poesia trágica.

Porém a filosofia, como a entendemos hoje, foi requalificada por Hegel, pois apesar de ter destituído os poetas e as artes para poder se afirmar, a filo (amor) sofia (saber) continuou  sendo um saber subalterno, sobretudo durante todo o período medieval em que só sobrevivia como a ancilla da teologia.

Num gesto quase ilusionista, Hegel não só tira a filosofia da sua subalternidade mas transforma-a no saber de referência. É ele que a periodiza, a elitiza, fazendo-a simplesmente grega (Heidegger)  e desqualificando todas as contribuições dos povos do Egipto e da Mesopotâmia e mesmo dos Árabes. É ele que introduz novas disciplinas, como a estética, a filosofia do direito e, como bom ariano, tomou o cuidado de retirar a África do sentido da história.

Hegel concebeu a filosofia como apreensão do próprio tempo através de conceitos. Desde então o azáfama fundamental de quem se quer filósofo é tentar apreender, nas suas circunstâncias (Ortega y Gasset), na sua linguagem (Derrida) o sentido do tempo; do Kronos extrair o Kairos, desvendar entre a enorme massa de factos que lhe caem diariamente à vista, aqueles que dão sentido ao tempo e fazem história.

De há um mês a esta parte, em todas línguas e em todas as circunstâncias, a busca, de chofre, cessou; porque o que destrói a vida, e que por isso mesmo dá sentido à busca do sentido, questionando o sentido da existência, é o coronavírus. O filósofo não precisa de procurar nem nas chamadas disciplinas heurísticas e/ou auxiliares (Sociologia, História, Antropologia), buscando nas causas primeiras (Aristóteles) ou na síntese de Wittgenstein, o sentido da existência, pois os telejornais, rádios, conversas, relações, atitudes lhe trazem, todos, com as análises políticas, econômicas e sociais mais refinadas, o sentido do nosso tempo: o coronavírus.

Os filósofos são hoje chamados a interpretar (kairos) o sentido desde evento-mundo, que mais do que a Catolicidade do cristianismo ou o mercado-mundo dos economistas liberais uniu o planeta, e fez humanidade, no medo (temor).

 No mês de Abril a  Philosophie Magazine consagrou um número especial ao espírito do tempo intitulado:«Covid-19 Les philosophes face a l’épidémie». Infelizmente os nomes famosos como Harmut Rosa, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben, Paola Cavalieri, Peter Singer limitam-se a ver no Covid-19 a confirmação das próprias profecias.

Proudhon teria chamado a isto “a filosofia da miséria” porque de facto, é miserável que filósofos de renome, numa oportunidade única para interrogar o sentido do humano e da sua existência se limitem, como Narcisos, a se auto-regozijarem no espelho da miséria do mundo. Marx iria mais longe e falaria da miséria da filosofia e ela era miserável justamente porque se limitava a interpretar o mundo: Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kömmt drauf an, sie zu verändern(“Até agora os filósofos se preocuparam em interpretar o mundo de várias formas. O que importa é transformá-lo” – Teses sobre Feuerbach)

Derrida, num dos seus últimos livros, intitulado “Espectros de Marx”, parece querer  recordar-nos quanto K. Marx está constantemente à espreita: sucesso ou insucesso das suas percepções e teorias econômicas, de sistemas horríveis e de gulags que se reclamam do seu nome, não devem ofuscar o desafio que ele lança à filosofia: transformar o mundo.

Interrogar o mundo a partir das relações que se estabelecem entre mestre e escravos significa interrogar o sentido do humano, o que está na base não só da sua auto compreensão mas também das relações que ele estabelece com os outros, e das instituições que garantem  o direito.

Mutatis mutandi, toda a reflexão do âmbito jurídico, das relações políticas, das relações sociais e da organização econômica, dependem de, e por isso têm de ser subordinadas a, uma reflexão do homem sobre si próprio.

O indivíduo-centrismo que emerge na modernidade e capitaneia todas as ligações liberais, e até a formulação do quadro dos direitos humanos, está na base quer das relações estabelecidas entre os humanos (escravatura-servidão, mestre-escravo, patrões-senhores, ricos-pobres…), mas também na atitude depredadora para com todos os ecossistemas do mundo.

O prometeísmo do homem e a ligação intrínseca que estabeleceu entre a eudemonia (felicidade) e o ter, fez dele não só um homo Lupus hobbesiano, mas um inimigo jurado dos sistemas ambientais e dos animais do mundo inteiro.

A palavra do dia,hoje, é ‘desconfinamento’ que, na verdade, é sinónimo de um voltar à normalidade.  Isto é voltar ao Prometeu que, com o fogo roubado aos deuses e sem a prudência destes, continua a queimar tudo em sua volta e inclusive a si mesmo.

O que seria hoje apreender o sentido do tempo e promover a transformação do mundo?

As filosofias – da miséria – produzidas pelo pensamento contemporâneo ficam na superfície da questão fundamental e levam  a uma espécie de desespero ontológico manifestado por António Negri, quando defende a humanização da globalização, como se um monstro de repente se pudesse transformar em homem…

As teorias filosóficas desconstrucionistas -pós-modernas, pós-coloniais, desobediência epistemológica- contra a linearidade e o progressismo  que o universalismo impôs ao mundo, fazendo da narrativa moderna o postulado de partida, ficam também aquém da questão fundamental.

A tentativa multicultural ou intercultural da filosofia tem no modelo iluminista o seu vocabulário de referência e a semântica das suas instituições sociais. Quando os novos autores da filosofia africana pretendem ter uma voz no interior do mundo global, mas  feita de uma gramatologia centrada  sobre o indivíduo, manifestam a sua reza, como tinham feito o Renascimento de Harlem  ou até a etno-filosofia (Eboussi Boulaga).

Ao papa Inocente III que de acordo com  o Eclesiastes ousara escrever De miseriae humanae vitae,  Gionnozzo Manetti (1396-1459) respondeu com o De dignitate et excellentia hominis, titulo que será mais tarde retomada ad literam por Pico de Mirandola e completado com  De voluptate de Lorenzo Valla. Em que consiste a ‘dignitate’ para estes pais do humanismo renascentista? Na exaltação moral do homo faber.

É o substrato sobre o qual está fundada a dignidade da vida do homem (De dignitate humane vitae) que levou à miseriae humanae vitae do coronavírus.

Por isso, este vem desafiar a filosofia para um questionamento radical: o de abraçar novas formas de fazer humanidade e de habitar o mundo. Como poderia ser, hoje, a africanidade de um discurso filosófico?

Recordar coisas simples: contra a premissa da filosofia moderna, o cogito ergo sum cartesiano, John Mbiti respondeu com um eu sou porque nós somos. Apesar da –tímida – introdução na  Carta Africana dos Direito Humanos da dimensão do nós– povos, ainda não tiramos todas as ilações desse postulado.

A parábola-estigma do pescador africano fez a volta do mundo: “O pescador africano surpreendido a descansar nas primeiras horas da manhã perto de um lago e debaixo de uma árvore. Interpelado pelo seu ‘fare nientismo’ ele responde surpreendido: ‘pescar mais peixes para comprar frigoríficos, para ter mais dinheiro, conta avultada no banco para, e só no fim desse giro, ter boa vida? tudo isso para ter o que já tenho hic et nunc?”

 Se utilizarmos uma hermenêutica diferente, desta maneira de habitar o mundo e de ser homem, desta maneira de ser homem e fazer humanidade, talvez as conclusões a que chegaremos não sejam as mesmas dos grandes liberais, fazedores de dinheiro à custa da destruição de tudo o que existe, quer no mundo, quer no património de relações entre os homens.

O pescador só tira da lagoa o que ele precisa para a própria sobrevivência; ele sabe que a natureza lhe oferece, no quotidiano, tudo o que ele necessita para poder continuar a sua existência, por isso vive num respeito enorme pelo seu habitat; sem fabricar frigoríficos, sem criar cativeiros, sem esvaziar as lagoas, mas deixando que as espécies lá existentes se reproduzam. Ele descansa à sombra de uma frondosa árvore, sinónimo do quanto a natureza lhe pode dar.

Trata-se de modos de vida e sistemas de pensamento que acordam um lugar central aos processos de com-constituição e com-composição,  a ideia de um mundo-com, constitutivamente múltiplo e radicalmente aberto, e até com a contingência e a indeterminação. Não se pode definir melhor a liberdade…

Trata-se de um mundo que deixa lugar e espaço a um recomeço permanente, que não tem medo do provisório e do temporal, no qual o acto de reparar constitui o motor da vida e da existência em-comum

A ideia não é pedir aos engenheiros militares para deixarem de produzir bombas que tanto bem fazem à humanidade, aos astronautas para deixarem de gastar dinheiro com viagens ao espaço que tanto pão dão às crianças, nem sequer a Las Vegas para fechar os casinos! Mas só para fazerem um pequeno esforço de entender a grande lição que este pescador humilde traz; a possibilidade de uma  re-significação do sentido da existência e da coexistência; o sentido da vida, a importância do relacionamento positivo com os outros seres humanos, com os outros seres naturais e com o nosso habitat comum. É isto que torna possível a existência humana sobre a terra.

Então sim, esta lição do pescador pode ser útil para os banqueiros do Crédito Suíço e a todos os changues e nhangumelos do mundo; podemos ter um outro sentido para as nossas vidas, a eudemonia (felicidade) não se resume à quantidade de zeros que acompanham os números crescentes em nossas contas bancárias, mas se encontra no quotidiano que os desafios da vida nos impõem, nesta possibilidade de irmos realizando, criando e satisfazendo as nossas necessidades sem empobrecermos aquilo que faz com que a nossa existência seja possível, como seres humanos na Terra.

A nível interno, modelos de autonomia e auto sustento não nos faltam, mas precisamos ter a coragem de inverter a pirâmide, voltarmo-nos para a base e ver nela a arte da sobrevivência dos agricultores, pescadores rechaçados pelo seu ubuntismo considerado antiquado; homens e mulheres que não ficam à espera do Estado ou da Comunidade Internacional, mas (re)inventam a sobrevivência, de maneira  individual e em redes de interajuda comunitária.

Hoje a filosofia é convidada a olhar para a base, para as nossas comunidades independentes, e buscar nelas o modelo que nos conduzirá ao auto sustento, à independência, à renovação cultural e existencial.

Nisto, a caricatura do pescador serve para nos dizer que é preciso utilizar o tempo para fazer comunidade e cultivar a humanidade.

Marcos Carvalho Lopes

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