Descartes é para a filosofia o que Copérnico é para a astronomia — mudou o eixo em torno do qual tudo gira
Gonçalo Armijos Palácios*
Num 31 de março de 1596, em La Haye, Tourenne, nascia um dos mais influentes pensadores ocidentais: René Descartes. Apesar de terem transcorrido 354 anos de sua morte, ocorrida em 1650, sua presença e sua influência permanecem vivas.
Descartes é a realização do sonho platônico, quem acreditava que sem se conhecer geometria não se podia pensar com rigor. Ali está uma das maiores influências do pensamento cartesiano. Lendo o Discurso do método e as Meditações podemos entender por que esse pensador foi considerado o primeiro filósofo moderno. O primeiro filósofo moderno e, aliás, o primeiro contemporâneo.
Um dos efeitos daquelas obras é ter obrigado os filósofos da época a fazerem filosofia de uma outra maneira. Não com base em idéias soltas, obscuras, mal definidas, ou em lampejos e intuições fortuitas. Não. Filosofa-se de uma maneira ordenada, como na geometria. Começa-se com princípios evidentes e, aos poucos, descobrem-se as verdades que tais evidências encerram. Derivando tais verdades podemos chegar a outras. Se não aceitarmos nada que não seja evidente ou derivado de evidências, pensava Descartes, jamais estaríamos sujeitos a erros.
Uma das motivações do filósofo era precisamente essa: como posso estabelecer algo que, de tão certo, seja absolutamente indubitável? Descartes fundamenta essa pergunta no fato, evidente também, de estarmos constantemente sujeitos a erros. Como posso estar absolutamente seguro de não estar sonhando que estou aqui lendo e escrevendo estas palavras? Na verdade, não posso ter essa certeza absoluta porque já tive certezas semelhantes quando sonhava estar numa situação na qual, na verdade, não me encontrava. Sou passível do mesmo engano neste exato momento. Ou, então, poderia estar tendo alucinações, por motivos diversos. É possível que, atacado por uma súbita febre, esteja pensando que estão ocorrendo coisas que não estão tendo lugar. Ou, também, é possível que seja louco. Sei que os loucos têm esse tipo de certezas, de achar que são o que não são. Meu pensamento me leva a constantes erros, mesmo quando faço os cálculos mais simples. E nem preciso falar dos sentidos, fontes de tantos e tantos equívocos. Numa palavra, estou sujeito a um número tal de erros que nem sequer posso provar de maneira incontestável que estou vendo, sentindo, pensando corretamente ou passando pela situação em que agora imagino estar. Esse é o grande desafio de Descartes: prove-me, leitor, que sabe, de maneira absoluta, incontestável e que não dê margem à menor dúvida, que está realmente lendo estas palavras, que não está sonhando que está lendo, ou que tampouco está tendo alucinações ou imaginando o que agora pensa estar vivendo devido a qualquer surto de demência ou por uma febre repentina… Como se tudo isso não bastasse, há mais uma razão para nossa dúvida, e não é, certamente, a menos importante. Somos seres tais que, quem sabe, fomos feitos para nos enganar. É possível que quem nos fez decidiu nos fazer de um jeito que nunca pudéssemos alcançar a certeza absoluta sobre coisa alguma. Se quem nós fez é todo-poderoso, como Deus, não lhe seria impossível criar um ser tão imperfeito como somos nós. De que forma, então, poderíamos sair dessa nossa situação de falta total de fundamento para o que achamos saber?
Não é fácil, admitamos, enfrentar o desafio e provar que temos certeza absoluta de que realmente vemos o que achamos que vemos, ou que ouvimos o que parece que ouvimos, ou que estamos realmente na situação na qual imaginamos estar. A resposta cartesiana é de uma ousadia extrema. Todas essas dúvidas só me provam isto: que estou duvidando. Mas se estou duvidando, obviamente, estou pensando. Se penso, naturalmente, sou algo, algo que pensa. E, se penso, obviamente existo. Do fato de estar duvidando e pensando devo, necessariamente, concluir que existo. E não haverá nenhum deus, por mais onipotente que seja, que me possa convencer de ser falso que, enquanto duvido, penso e, se penso, que sou, isto é, que existo. Talvez não saiba o que eu possa ser. Mas de que existo, porque penso e enquanto pense, nem Deus poderia me fazer duvidar, apesar do Seu infinito poder. O ser humano, portanto, pelo seu próprio pensamento, pode estabelecer algum tipo de verdade incontestável, mesmo que esta, eventualmente, possa ir contra os desígnios divinos.
Nesse raciocínio se mostram dois aspectos fundamentais do pensamento cartesiano, seu racionalismo e seu humanismo. Porque não pode deixar de ser uma das formas mais radicais de humanismo afirmar que, mesmo Deus aplicando todo seu infinito poder no sentido contrário, o homem não poderia ser enganado a respeito das coisas que sua razão, sem o auxílio da revelação divina ou de qualquer outro meio, determina como sendo verdadeiras. Assim, o eixo cognitivo sobre as coisas do homem, do mundo e do universo, que giravam em torno da vontade divina e dela dependiam, passam a centrar-se no próprio homem, e dele dependem. É o giro cartesiano: a própria razão como centro e fundamento do saber do universo como um todo!
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |
Parabéns! Simples e direto.
Excelente resumo do pensamento de Renê DESCARTES em seu Discurso Método!! Uma obra fundamental para entender a ruptura que houve com o pensamento da idade média e as novas descobertas da idade Média. Uma obra de difícil entendimento e assimilação, porisso deve ser lida, relida e três vezes lida, e ainda assim contar com explicações como essa que nos ajudam avançar no entendimento desse indisponível pensador.