ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Eva Trindade, Alcidio Cumaio, Jose Maria Langa, Luca Bussoti e Filomeno Lopes
Para merecer um réquiem, talvez seja necessário ser Manzoni, um dos maiores escritores italianos, a quem Verdi dedicou a Missa de Réquiem, ou Anna Walsegg, falecida aos 20 anos, para quem Mozart compôs o Réquiem em Ré Menor por encomenda do conde Franz von Walsegg. Mas, a Verdi e Mozart, Carlos Carvalho preferia Beethoven, o qual – além das sinfonias e, sobretudo, da famosa Nona – compôs, antes da consagração pela União Europeia, a Ode an die Freude (Hino à Alegria). É essa alegria dos momentos partilhados (que nos foi tirada pela franciscana irmã Morte) que nos autoriza a consagrar ao cota Carlos (mesmo sem o talento até de pequenos compositores) um réquiem: bom repouso.
A morte é o maior tormento do homem e, por isso, um dos temas recorrentes de todas as tradições religiosas, de todas as mitologias, assim como da filosofia, nas suas diferentes e plurais histórias. Vivemos sem nunca saber, com certeza, o que é a vida. Esforçamo-nos por lhe dar um sentido sem nunca termos a certeza da pertinência dos fundamentos desse sentido, e, inexoravelmente, a morte vem sentenciar o fim do seu ethos, independentemente do que tenhamos feito dela. Não surpreende que a morte tenha sido e continue a ser objecto das reflexões dos maiores expoentes da filosofia, de Platão até Heidegger, passando por Nietzsche, Séneca, Lucrécio, Epicuro, Pascal, Espinosa, Sartre ou Marcuse…
O enredo (universal) da morte apresenta um conjunto de manifestações que espelham a dimensão trágica (no sentido nietzschiano) e aporética do desconforto que o ser humano experimenta na sua presença. O devaneio da vida carrega consigo a estética da mais profunda e desesperante tristeza. No entanto, paradoxalmente, só com a sua epifania ou advento é possível valorizar a vida como a maior das eudemonias (felicidades) que nos é dada experimentar.
A certeza ameaçadora e implacável da chegada da morte relativiza e até torna vão o valor das glórias humanas. Nada, absolutamente nada, é mais desesperador para a veleidade das conquistas humanas que a sua invocação. Vivemos numa dimensão espácio-temporal entre dois limites ontológicos da existência (nascimento e morte), habitada por este interstício glorioso e efémero a que chamamos vida: manifestação de existência que, enquanto dura, parece representar o absoluto e até uma vantagem sobre a morte, evidência sempre presente. Porém, porquanto para os aparentemente mais sortudos por vezes pareça não ter pressa, martirizando-os com doenças incuráveis – em oposição às velocidades modernas – e caminhando ao seu encontro a passo de camaleão, com o gingado de uma bela bailarina, inexoravelmente chega. E quando chega, é sempre cedo demais.
Apocalipse ou soteriologia? Fim ou télos (finalidade)?
A fatalidade do advento da morte, biblicamente anunciada pela lembrança constante da nossa condição humana de mortais, não nos impede de ignorar a lei da impermanência que nos rege e até de sonhar, audaz ou ingenuamente, com a possibilidade de uma post mortem ou vita ad eternum. Desde sempre, as escatologias, todas, tentam enfeitiçar/ludibriar a morte: as nossas tradições, com os mortos que nunca nos deixam e estão sempre connosco (Alioune Diop); as soteriologias da reincarnação com tumbas faraónicas à espera do regresso das almas; os monoteísmos com a ressurreição… Os credos laicos inventaram fórmulas imanentes de eternidade – a escrita, o plantio de árvores, os filhos e até as obras em materiais aparentemente indestrutíveis –, de modo a que o fechar dos olhos e os cemitérios não sejam um fim apocalíptico, mas um escaton. Contudo, o que verdadeiramente prevalece é o desassombro de impotência diante da última fronteira metafísica, a morte, que os hodiernos trans-humanismos e pós-humanismos, com a demiurga tecnociência, pretendem derrubar.
Se a barreira da morte for derrubada um dia, chegará depois dos tempos de luta e de combate (Jorge Rebelo) do Carlos, mas oxalá se recorde que, contra os fundamentos (racialistas, belicistas e nacio-xenofóbicos) dos elogios fúnebres (laudatio funebris) clássicos, desde Péricles (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso), passando por Shakespeare (oração fúnebre a Júlio César por Marco António), com uma vida simples e humilde ele bravou as leis e os costumes (raças, crenças, lusitanismo) em nome do maior dos amores: a amizade (Aristoteles), único antídoto contra o poder da morte, pois foi no coração e na mente dos amigos que ele depositou a sua eternidade, onde o poder disruptor da morte é anulado e a vida ganha um novo sentido e uma nova forma de existência.
Estoicamente, seguiremos vivendo o tempo que a irmã Morte ainda nos concede, conscientes de que cada momento pode ser o último e, ao mesmo tempo, o primeiro, no (ainda) enigmático ou misterioso desconhecido que nos espera e em que Carlos já se encontra.
Ficarás sempre connosco como o amigo abnegado e sincero, virtudes manifestas nos textos conjuntos, arraigados na busca (efémera) da justiça e nos pensamentos soltos e dispersos, da liberdade que nos deixaste. Amanhã vamos dispersar as cinzas do teu corpo com a esperança de que, como o pior dos vírus, contaminem o maior número de crianças e jovens com os valores que foram os teus: um Moçambique cioso da sua liberdade (através de um trabalho abnegado), das suas artes, das suas gentes; de clara e de (com) gema, de Cristo e de Maomé, da(s) Sommerschield(s) e do(s) Bairro(s) Indígena(s)…
Este texto não é um epitáfio, um obituário, obséquio ou elegia: é, na esteira de Victor Hugo (que escreveu discursos fúnebres para os amigos Honoré de Balzac e George Sand), uma hodi a um homem que soube ser mungano (amigo) nas nossas miseráveis comédias de vida; uma hodi (réquiem) sincera, ritmada por melodias dos Fany Mpfumos da Zambézia e de todas as Zambézias de Moçambique, de quem experimentou na pele a maior façanha do homem Carlos: a ungano (a amizade).
Até sempre bro (mungano)! Nem a morte pode nada contra as melodias da busca da verdade e justiça que continuas, connosco e (doravante) através de nós, a escrevinhar.
Réquiem em bro maior!