Essa resenha foi publicada em 2013 a partir da versão espanhola do livro (Trad. Victoria Rodil. Katz, 2010) de Nussbaum, que ganhou publicação no Brasil pela Martins Fontes em 2015. O texto de Nussbaum merecia ser mais lido e problematizado.
Marcos Carvalho Lopes[1]
Quem já leu o livro de Martha Nussbaum Cultivating Humanity encontrará neste novo opúsculo poucas novidades. A principal delas é o tom apocalíptico desta obra que é um manifesto com a “intenção de funcionar como um chamado para a ação” (2010: p.162). A urgência de seu apelo estaria justificada pelo cenário de crise econômica global, que tornou mais evidente e acirrado o conflito entre as demandas de uma educação voltada para a cidadania contra um modelo tecnicista de educação com o objetivo de gerar crescimento econômico em curto prazo. Este embate é descrito por Nussbaum como uma crise silenciosa da educação que coloca em risco a própria Democracia, já que este sistema de governo pressupõe o cultivo de diversas crenças e hábitos de ação que capacitam o cidadão para uma vida plena e não somente para funcionar de modo lucrativo. Estaríamos dispostos a abrir mão da Democracia em nome do crescimento econômico de curto prazo?
O exemplo de Singapura é aquele que assombra os educadores como um mal guia. Singapura é uma cidade-estado muito rica (com o terceiro maior PIB por habitante do mundo) e economicamente competitiva. Sua prosperidade econômica ajuda a manter a estabilidade de um regime político contrário às liberdades democráticas. A vigilância e censura sobre o comportamento público e privado anda junto com políticas de eugenia (destinadas a aumentar a natalidade naquelas classes consideradas altamente produtivas) e um sistema de educação altamente hierárquico e tecnicista (NUSSBAUM, 2004: p.15). Os índices sobre a qualidade de educação em Singapura são excepcionais – ocupa, por exemplo, o quinto lugar no índice de leitura, a segunda posição em Matemática e a quarta em Ciência no Pisa, Programa Internacional de Avaliação de Alunos que envolve 65 países (DORETTO, 2012); o que cabe questionar é se o foco neste modelo de educação direcionado para bons resultados em provas quantitativas de múltiplas escolhas seria adequado para a formação de cidadãos críticos e autônomos. O exemplo de “bom desempenho” de um professor dentro de uma Ditadura pode servir de espelho para países democráticos? O presidente norte-americano Barack Obama é um dos que se mostrou seduzido pelo modelo tecnicista daquela cidade-estado. Comparando o sistema de educação de Singapura e outros países do Oriente com o dos Estados Unidos afirmou: “eles passam menos tempo ensinando coisas que não importam. Não preparam seus alunos só para a universidade ou para a escola secundária. Os preparam para uma carreira de trabalho. Nós não” (citado por NUSSBAUM: 2010: p.183).
Nussbaum concordaria com Obama na avaliação de que os Estados Unidos nunca tiveram “um modelo de educação voltado puramente para o crescimento econômico” (2010, p.38), justamente por manter uma orientação humanística que fomenta uma cultura política democrática. Abrir mão desta perspectiva humanística seria, para a filósofa norte-americana, como abrir mão da própria “alma” (soul).[2] Em verdade, o que Nussbaum chama de alma teria uma melhor tradução em português como “espírito” no sentido hegeliano daquilo que permite participar da conversação da humanidade, já que ela se refere “às faculdades de pensamento e imaginação, que nos fazem humanos, que tornam nossas relações, relacionamentos humanos plenos, ao invés de relações de uso e manipulação” (NUSSBAUM, 2010b: p.6). No entanto, esta terminologia não é utilizada por acaso: o uso de “alma” faz com que o conflito sobre o modelo de educação seja visto platonicamente como algo que se repete dentro de cada individuo, como se a Democracia necessitasse do cultivo por parte de cada cidadão de determinadas virtudes democráticas:
Se o verdadeiro choque de civilizações reside, como penso, na alma (soul) de cada indivíduo, com a ganância e o narcisismo lutando contra o respeito e amor, todas as sociedades modernas estão perdendo a batalha em um ritmo acelerado, pois estão alimentando as forças que impulsionam a violência e a desumanização, ao invés das que conduzem a uma cultura de igualdade e respeito. Se não insistimos na importância fundamental das artes e das humanidades, elas desaparecerão, porque não servem para ganhar dinheiro. Produzem algo muito mais valioso do que isso; geram um mundo em que vale a pena viver, com pessoas capazes de ver os outros seres humanos como pessoas plenas, merecedoras de respeito e empatia, com pensamentos e sentimentos próprios; e nações capazes de superar o medo e a desconfiança em prol de um debate simpático e razoável (tradução minha NUSSBAUM, 2010: p.189).
Mas o crescimento econômico combina com o cultivo de valores democráticos? A resposta de Nussbaum para esta questão parece dúbia; por exemplo, por um lado afirma que “existem dados empíricos que demonstram a escassa correlação existente entre” o crescimento e a melhoria “da saúde, da educação ou da liberdade política” (NUSSBAUM, 2010a: p.34); por outro, afirma que o cultivo da imaginação através das artes e do pensamento crítico são “fundamentais para o crescimento econômico e a conservação de uma cultura empresarial sadia” (NUSSBAUM, 2010a: p.151). Esta aparente indecisão se esclarece em parte pelo questionamento que a filósofa norte-americana faz da ideia corrente de desenvolvimento e progresso como crescimento do PIB. Para ela é preciso que o crescimento econômico não descarte valores que as sociedades democráticas tomam – em sua constituição – como inalienáveis, os direitos civis e políticos que garantem a igualdade – independente de raça, gênero ou credo religioso – perante a lei (NUSSBAUM, 2010a: p.37). Tanto os Estados Unidos quanto a Índia, países que são o foco de sua análise, assumem estes compromissos democráticos em sua constituição; o que deve significar o cultivo de valores democráticos para além de qualquer obcecação por crescimento econômico. Por isso mesmo, seria mais adequado pensar o progresso e a saúde econômica tomando o paradigma do Desenvolvimento Humano criado por Amartya Sen, aonde o mais importante são as oportunidades ou “capacidades” para que cada pessoa tenha acesso à saúde, integridade física, liberdade política, participação política e educação (NUSSBAUM 2010a: p.47 e 2010b: p. 24). A partir desta perspectiva mais ampla do que significa progresso e crescimento econômico, quando a distribuição de renda e o acesso a bens primordiais contam como índice de avaliação, as artes e as ciências humanas são valorizadas como adequadas para desenvolver certas capacidades que permitem participar da conversação da humanidade. E as enumera: 1) capacidade de desenvolver um pensamento crítico, o que significa o autoexame em sentido socrático, questionando tradições e só aceitando crenças que sobrevivem as exigências da razão; 2) capacidade de se posicionar como “cidadão do mundo”, transcendendo as lealdades nacionais como ser humano vinculado aos demais seres humanos; e 3) a capacidade de imaginação narrativa, que permite se colocar no lugar de outra pessoa (NUSSBAUM 2005: p.28-30 e 2010a: p.26). Cada uma destas capacidades é tema de um dos capítulos do livro de Nussbaum.
No entanto, antes de tematizar detidamente tais capacidades, Nussbaum desenvolve através de exemplos da psicologia uma espécie de “genealogia” antinietzschiana; procurando justificar porque aqueles que defendem a manutenção das instituições democráticas baseadas no respeito ao próximo, devem enfrentar as constantes ameaças do egoísmo, já que esta postura gera aversão ao Outro e a tendência para hierarquização. A autora parte da descrição do bebê imerso no egoísmo infantil, um principio natural narra a partir do qual deve-se pensar seu desenvolvimento moral até que adquira a possibilidade de desenvolver relações de reconhecimento pleno e simpatia em relação ao outro. Para tanto, é preciso que supere o egotismo, o que se dá primeiramente através de relações instrumentalizadas, até que adquira as capacidades de (1) compreensão, vendo o outro como um fim e não como um meio (algo que destaca ser característica comum de outros mamíferos, como macacos, elefantes e cachorros) e (2) de pensamento empático, a aptidão para perceber o mundo a partir da perspectiva do outro (algo que os macacos são capazes de fazer).
O estimulo ao desenvolvimento destas habilidades ajudaria a superar as construções infantilizadoras que separam os seres em puros e impuros, humanos e monstros. Nussbaum critica os contos infantis que promovem esta divisão, dando a ideia de que o mundo encontrará a paz quando os diferentes – monstros, bruxas, ogros etc. – forem exterminados; em contraste, exalta o universo complexo dos filmes de Hayao Miyazak (diretor das animações como A Viagem de Chihiro e Túmulo de vagalumes) e o livro Onde vivem os monstros de Maurice Sendak.
A filósofa descreve diversos contextos em que o egocentrismo infantil tende a se repor, como por exemplo, no “mito do controle total”, na fantasia de invulnerabilidade e de possuir uma competência maior que os demais humanos. Esta tentativa de “controle total”, geralmente masculina, tende a gerar vergonha e intolerância ante o fracasso inevitável; algo que pode ser contornado com a aceitação da debilidade humana (o que noutro contexto Nussbaum chama de dimensão trágica da existência), da interdependência e necessidade de ajuda mútua. A “fragilidade da bondade” é demonstrada através da descrição de alguns experimentos de psicologia (como os clássicos testes de Stanley Milgran, que expôs que as pessoas continuavam dispostas a aplicar choques elétricos em outros humanos mesmo que estes últimos demonstrassem dor, uma vez que eram avalizadas pela autoridade do cientista que lhes dava ordens) por meio dos quais, exemplifica, como a ausência de responsabilidade, a falta de opinião crítica e a desumanização do outro geram contextos em que as pessoas se tornam propensas a ter um comportamento perverso (NUSSBAUM 2010a: p.72). Esta tendência de transferir responsabilidade para o outro é algo que o cultivo da capacidade/virtude socrática de autoexame ajuda a superar.
Nussbaum destaca a importância da pedagogia socrática, caracterizada por incentivar os alunos a desenvolver questionamentos e o autoexame de suas crenças. A autora se utiliza do controverso termo “maiêutica socrática”, o que faz crer que a partir dos estímulos corretos todos os alunos chegariam ao desenvolvimento de pensamento crítico e empatia em relação ao outro e aos valores democráticos. Nussbaum descreve uma narrativa de desvelamento deste método que pede a participação ativa da criança partindo de Sócrates e passando por Jean-Jacques Rousseau, Johann Pestalozzi, Friendrich Froebel, Bronson Alcott, Horace Mann etc. que culmina nos exemplos de John Dewey nos Estados Unidos e de Rabindranath Tagore na Índia.
Em relação à “cidadania mundial”, Nussbaum critica os norte-americanos por ficarem demasiadamente presos a sua cultura: seria primordial que tivessem contato mais próximo com culturas estrangeiras e que aprendessem ao menos outro idioma. Mas o exemplo principal da autora são os efeitos perversos que as distorções no ensino de História podem provocar: denuncia a ausência de uma perspectiva cosmopolita lembrando o exemplo negativo das narrativas que desconsideram continentes inteiros – como a África e a Ásia – mantendo uma visão eurocêntrica.
Também põe em questão as narrativas provincianas e nacionalistas, especificamente trata de como a história da Índia aparece em alguns péssimos livros didáticos (desenvolvidos para a memorização acrítica), que relatam as origens do país como uma espécie de civilização superior a todas as outras que foi contaminada negativamente pela presença estrangeira. Em livros didáticos do Estado de Gujarat as narrativas xenófobas chegam ao extremo de destratar Gandhi e exaltar Hitler como um herói. Não por acaso este estado optou por um modelo excludente de desenvolvimento econômico e por uma educação tecnicista. Não por acaso também, em 2002 um massacre em Gujarat promovido por elementos violentos da direita matou 2000 muçulmanos e, em 2012, causou escândalo a inauguração de uma loja de roupas masculinas com o nome “Hitler” e a suástica como logotipo. Existe um punhado de lojas com nomes semelhantes na região, o que é sintoma da ausência de uma cultura política democrática. Para uma cidadania mundial é necessário que a narrativa da História seja desenvolvida de um modo complexo, mostrando a interconexão entre diferentes povos e culturas, problematizando as possibilidades interpretativas, incentivando cada pessoa a superar suas lealdades imediatas na direção de uma visão mais abrangente.
Na descrição dos benefícios da literatura e das artes no desenvolvimento da capacidade de empatia, Nussbaum se concentra em exemplos de sua experiência pessoal com o teatro, do valor dado à dança para Tagore, educador indiano, e dos resultados de inclusão que a formação de corais alcançou em Chicago. Estas atividades nos ajudam a desenvolver a imaginação criativa, colocando os alunos na perspectiva de outras pessoas, muitas vezes de culturas diferentes. Neste ponto a descrição de Nussbaum vale pelo sentimento que procura incutir, atraindo a identificação do leitor. Quem quiser uma argumentação detalhada sobre o lugar que a filósofa norte-americana dá à literatura, por exemplo, terá que procurar outras obras.
O livro de Nussbaum, contra suas intenções, pode servir como um instrumento para justificar a valorização das humanidades, já que, de acordo com sua argumentação, economias sadias que apostam na inovação precisam contar com as virtudes imaginativas que as humanidades são capazes de desenvolver. A recusa de Nussbaum em pensar a utilidade das humanidades para o desenvolvimento econômico – tomando-as como fundamento de virtudes democráticas que devem ser valorizadas em si mesmas – acaba enfraquecendo seu discurso em um horizonte não essencialista. Isso não retira a urgência e validade de seu apelo. A narrativa apaixonada de Nussbaum não trás muita coisa nova para aqueles que lidam com a Educação, mas deixa manifesto: o rei está nu.
REFERÊNCIAS:
DORETTO, Juliana.”Vale quanto ensina”.Saber.In: Folha de São Paulo. 18/04/2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saber/sb1804201101.htm Consultado em 08/10/2012.
NUSSBAUM, Martha. A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo. Trad. Ana C. da Costa e Fonseca, et Al. Porto Alegre: Bestiário, 2004.
_______. El cultivo de la humanidad. Uma defensa clásica de La reforma em La educación liberal. Trad. Juana Pailaya. Barcelona: Paidós, 2005.
_______. Not for profit.
_______. Sin fines de lucro. Por qué la democracia necesita de las humanidades. Trad. Mária Victoria Rodil. Buenos Aires/Madrid: Katz, 2010a.
______. Not for
profit : why democracy needs the humanities. Princeton: Princeton
University Press, 2010b.
[1] Doutorando em Filosofia no PPGF/UFRJ, bolsista da CAPES e professor temporário na UNIRIO.
[2] Na tradução espanhola se utiliza” alma” para traduzir o termo “soul”do original inglês.