ensaio de Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Samuel Ngale, Giveraz Amaral, Augusto Hunguana
Os dias vinte e cinco parecem marcadores da história. Não nos referimos ao vinte de cinco de Dezembro, porque a encarnação é um evento soteriológico e meta histórico (Clemente de Alexandria), mas aos vinte de Junho (dia da nossa independência ), os vinte cinco de setembro (dia do início da luta de libertação); o de Abril é uma vitoria africana usurpada a favor de capitães derrotados. E o vinte cinco de Maio?
O alvoroço e o azáfama dos preparativos, na política, nas academias no continente e nas diásporas, parecem indicar que algo de historicamente marcante e significativo aconteceu em Adis Abeba há sessenta anos atrás (OUA) e/ou também há 22 anos (UA) que merece ser relembrado; mas será com regozijo e júbilo de uma celebração vitoriosa ou como um angustiante memorial – um Gwaza Muthini- de uma pequena batalha ganha numa guerra perdida?
Em Março de 1997, o já então eis presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, num discurso em Acra sobre como ele via a unidade africana no século XXI, qualificou -para o propósito de unidade africana- a conferência de 1963 em Adis Abeba e as subsequentes conferências de 1964 em Cairo e 1965 em Acra, um Fracasso. Muitos recém chefes de estado, movidos pela pequinês de títulos honoríficos, tinham interesse em manter a África dividida, balcanizada e na obediência das fronteiras coloniais.
Numa carta do futuro 2063 -uma Utopos digna do melhor Thomás Moro, e com um estilo que não se lhe conhecia-, Nkosazana Dlmanini Zuma mandou uma nota em forma de eulogia a Kwame Nkrumah, num misto entre futurologia, profecia e utopia.
Meu amigo,
No início do século 21, costumávamos nos irritar com os estrangeiros quando eles tratavam a África como um só país…! No entanto, o avanço da tendência global para blocos regionais recordou-nos que a integração e a unidade são a única forma de África alavancar a sua vantagem competitiva.
O que foi interessante foi o papel desempenhado por sucessivas gerações de jovens africanos… Éramos um continente jovem no início do século 21, mas à medida que nossa juventude crescia, homens e mulheres jovens se tornavam ainda mais ativos, criativos, impacientes e assertivos, muitas vezes nos dizendo aos idosos que eles são o futuro, e que eles (junto com as mulheres) formam a maior parte do eleitorado em todos os nossos países!
Claro que este foi apenas um dos motores para a unidade. A implementação acelerada do Tratado de Abuja e a criação da Comunidade Económica Africana até 2034 fizeram com que a integração económica atingisse níveis inesperados.
A integração económica, associada ao desenvolvimento de infra-estruturas, assistiu a uma multiplicação do comércio intra-africano, passando de menos de 12 % em 2013 para cerca de 50 % em 2045… Ainda mais significativo do que isso, foi o crescimento de centros industriais regionais, em torno do beneficiamento de nossos minerais e recursos naturais, como no leste do Congo, nordeste de Angola e cinturão de cobre da Zâmbia e nos principais vales do silício em Kigali, Alexandria, Brazzaville, Maseru, Lagos e Mombaça, para mencionar apenas alguns desses centros.
Meu amigo, África transformou-se, de facto, de exportadora de matérias-primas com um setor transformador em declínio em 2013, para se tornar um grande exportador de alimentos, um centro global de produção, um centro de conhecimento, beneficiando os nossos recursos naturais e produtos agrícolas como motores da industrialização.
As empresas pan-africanas, da mineração às finanças, alimentos e bebidas, hotelaria e turismo, produtos farmacêuticos, moda, pescas e TIC estão a impulsionar a integração e estão entre os líderes mundiais nos seus setores.
Somos hoje a terceira maior economia do mundo… fizemo-la encontrando o equilíbrio entre as forças de mercado e Estados de desenvolvimento fortes e responsáveis e comunidades económicas regionais para impulsionar as infra-estruturas, a prestação de serviços sociais, a industrialização e a integração económica ( www.au.int).
As palavras de Nkosazana Zuma soam como um ímprobo -apenas velada- aos Estados africanos que não têm sabido estar a altura do histórico das nossas lutas devido, entre outras razões, as divisões e veleidades potestádicas das elites políticas. Mulatis mutandis, o verbatim de Kkosazana Zuma ecoam, ainda mais forte, como o salmodiar a esperança (no estilo e espírito do “L’Afrique est debut” de Césaire) do ressurgimento da África (surge et ambula) e de uma elite comprometida com o continente e com seus povos.
Não é um acaso que a o discurso de Nyerere tenha sido pronunciado em Acra e o encómio de Nkososana Zuma tenha sido dirigida a Kwame Nkrumah. Mais do que e qualquer outro intelectual e político, Nkrumah fez da sua obra teórica e da sua ação política, uma cruzada a favor da unidade africana (Nyerere). O engajamento intelectual e pratico de Nkrumah assentava sobre o postulado da necessidade urgente da unidade africana. Era um axioma radicalmente disjuntivo: ou nos uníamos ou sucumbíamos uma nova forma de dominação. A razão dessa disjunção fatalista residia, intra muros, em possíveis rivalidades e confrontações; extra muros, num colonialismo não conformado com a nossa libertação do seu jugo.
A OUA, com os seus postulados da intangibilidade das fronteiras coloniais, da não ingerência nos assuntos internos dos estados e do gradualismo, nasceu como uma antítese ao pan-africanismo. Adis Abeba, capital africana, ergueu-se como um festival de egos e vaidades, onde cada presidente passeia a sua classe com luxos que tentam esconder a miséria a que relegam os seus concidadãos.
Dos objetivos de 1963 (libertação total de África e unidade continental) só foi conseguido o primeiro, que se consumou com a libertação de Mandela e o fim do apartheid na África do Sul. As tergiversações gradualistas dos ladinos (senghores, boignys …) -ao serviço dos impérios dos quais não tinham coragem de se desprender- escancararam as portas ao neocolonialismo que, por via de consequência, anulou o valor das nossas vitorias heróicas -os nossos vinte e cincos de Setembro e de Junho- de Moçambique, Angola ou Guiné Bissau.
A Organização da Unidade Africana de 1963 -como a União Africana- falhou (falharam), porque não conseguia (ram) prever/antecipar e, depois de consumado, enfrentar com a garra necessária o neocolonialismo e as veleidades individuais de poder dos dirigentes políticos (Ngugi wa Thiong’o). O 25 de Maio foi a vitória do ultramarismo (nova forma de colonização) com a cumplicidade dos assimilados/aculturados que as metrópoles desprezam.
Hoje vivemos o decréscimo das liberdade. Depois das guerras do Biafra, dos assassinatos de Lomumba, Mondlane, Cabral, Machel, Sankara, Kadaffi (…); das ditaduras impostas e protegidas pelo ocidente ( Idi Amin, Mabutu, Bokassa…) entramos na fragmentação do Sudão, Congo, Guiné, Moçambique e, sobretudo, o nosso nível de dependência, de subordinação, da incapacidade dos estados em satisfazer as necessidades básicas dos povos não cessa de crescer.
levar a que jovens se vejam obrigados a atravessar o Sahara e o Magreb -símbolos da aliança euro- árabe da antiga e nova escravatura-, a perigar a vida na travessia do -eugénico- Mediterrâneo na busca de uma sobrevivência (que nós não damos) que se aparenta ao desespero de uma escravatura voluntária (La Boetie), é sinal inequívoco do falimento das nossas políticas nos sessenta anos das independências.
A reminiscência histórica só tem sentido se desvela o modo e as razões escravocratas da formação das nossas diásporas, as condições de colonialidade (Mignolo) da vida e de existência das Áfricas no mundo e, sobretudo, as nossas responsabilidades cúmplices. Rememorar o 25 de maio de 1963 só tem sentido se não for uma ladainha de difetismos, de lamentações, de suplicas, mas um acto de orgulho e dignidade traduzíveis no repristino e na galvanização da nossa resolução em realizar, enfim, o telos Africa. Devemos isso a nossa historia de sofrimento e de luta, a milhões de mortos (na escravatura, colonialismo…), às gerações actuais que sucumbem todas as formas de descriminações; devemos isso as futuras gerações para que possam ter reconhecimento na heteronomia da valorização do humano.
Comemoremos os 60 anos, mas perguntemos-nos o que é comemorare – revisitar, fazer memória- e qual é o seu propósito. Ela não pode ser uma celebração de regozijo, de festa, de exaltação, mas deve ser um memorial, um rememorar a via sacra que percorremos – e o caminho de espinhos que evitamos- e, sobretudo, sairmos desta introspecção com consciência do longo e tortuoso calvário que ainda temos pela frente e a determinação de percorre-lo, a todo o custo.
Recordemo-nos dos 60 anos, festejemos -de coração contrito- nos nossos ateneus, nas nossas universidades, nos nossos centros de recreação, mas sobretudo façamo-lo meditando naquilo que foram estes 60 anos das nossas não-independências, dos obstáculos (internos e externos) que continuam a nos obstruir o caminho e a impedir que a África possa, de facto, ser e se assumir como um continente de homens livres, capaz de proporcionar uma vida digna aos seus povos e não abrigá-los a buscar uma sobrevivência submissa, com perigos de morte, em geografias (humanas) hostis.
Amílcar Cabral defendia que o objetivo das nossas lutas eram trazer liberdade, progresso e felicidade para os nossos povos”. A missão teleológica que temos neste mundo de africanos sem liberdade, neste continente sem progresso, neste marasma de africanidades infelizes- que continuam a morrer de doenças, de fome, de guerras e até afogados no mediterrâneo-, é a de ousar (aude) fazer do imperativo da paz, da demanda da democracia, da busca da felicidade, os objetivos principais da nossa busca (luta) existencial.
Para aqueles -sempre mais em menor número- cujo objetivo é manter e consolidar, mordicus, as nossas liberdades, lutar contra a dependência, a ingerência, o neocolonialismo; o espectro de Nkrumah continua, inexoravelmente, a pairar e apoquentar as suas consciências: África é fraca porque desunida (Patrick Lumumba). O silogismo disjuntivo de Nkrumah, a escolha aporetica entre a unidade e a dominação, é hoje (como o retorno dos supramacismos) mais imperativa do que há sessenta anos atrás.
O histórico deste sessenta anos (de uma África sempre mais dependente e incapaz de satisfazer as necessidades básicas dos seus povos) não nos autoriza nenhum regozijo, mas nos impele a uma rememoração que se transmude em ação (Frantz Fanon), para que em 2063 nos juntemos a Kossosana Zuma no convite a Nkrumah ( e outras convivas: Cuffe, Garvey, Blyden, Dubois, Padmore, Williams e todos aqueles, conhecidos e anónimos, que fizeram da liberdade da África a razão da sua existência) a vir(em) celebrar o que teremos feito de nós, da nossa África.
Hoje ainda pertencemos, craveirinhamente, a um continente que ainda não existe. Em 2063 seremos, temos que ser, uma nova África. O valor acrescido da carta da Kossosana Zuma é que nos dá uma pauta das ações a realizar para transitarmos das independências (liberdades negativas) as liberdades positivas (Isaiah Berlin), de construtores de uma Africa dona e senhora do seu destino.
O optimismo (como a determinação) é um acto de vontade e de escolha. Ele não se compadece com eunucos e não pode fazer a economia do nosso engajamento militante junto daqueles que, nos sahelis do mundo e da África se erguem, hirtos, pela causa de todos nós.