comentário de Samuel Joina Ngale

O artigo O Jardineiro Impostor, publicado pela Filosofia Pop e assinado pelo Professor Severino Ngoenha, oferece uma reflexão contundente sobre os mecanismos históricos e epistemológicos através dos quais a Europa construiu o “outro” — especialmente o africano — como uma figura inventada, subalternizada e silenciada. Ngoenha insere-se numa tradição crítica que inclui autores como Valentin-Yves Mudimbe, que em The Invention of Africa (1988) denuncia como o saber colonial fabricou uma África epistemologicamente dependente, e Edward Said, que em Orientalism (1978) revela como o Oriente foi construído como um espelho exótico e inferior do Ocidente. Essas “invenções alienantes”, como Ngoenha as chamaria, são produtos da modernidade europeia, que ao definir o outro, definiu-se a si mesma como centro. “A Europa construiu o outro como ausência, como sombra de si mesma”.
Ao ler o artigo, emerge uma pergunta que resiste ao silêncio: quando é que vamos inventar a nossa própria identidade? Por que continuamos a ouvir e internalizar o que o outro tem a dizer sobre nós, em vez de escutar a nossa própria memória? Nos parece que a construção de uma identidade africana autêntica exige um gesto de lembrança — não como retorno nostálgico ao passado, mas como ativação consciente de uma memória viva. A memória, neste contexto, não é um arquivo morto. Ela vive em cada um de nós, esperando ser reconhecida, observada — talvez até no sentido quântico, como algo que só existe plenamente quando é observado com intenção. Pois que quem já foi pode ainda ser. Apenas precisa lembrar.
A crítica ao colonialismo é também uma crítica à forma como ele nos ensinou a nos observar mal. A observação colonial do moçambicano foi precária, distorcida. E é com esse mapa mal desenhado que muitos ainda tentam se localizar. Recuperar a memória não significa reproduzir um ego utópico ou imutável. Trata-se de acessar um blueprint — um esboço identitário — do qual se podem ativar, com cautela, elementos úteis para uma identidade própria, situada no presente e voltada para o futuro. Não se trata de essencialismo, mas de reconstrução crítica.
O artigo evoca o adágio africano: “Enquanto a narrativa da caça for contada pelo caçador, o caçado será sempre nota de rodapé na história.” A validade desse ditado é confirmada por pensadores como Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que em suas Lições sobre a Filosofia da História (1837) afirmou que a África não possuía uma história digna de ser contada — uma visão que perpetuou o apagamento histórico do continente. A superação dessa condição de “outro” exige coragem para lembrar. Lembrar o que fomos, para então decidir o que queremos ser. A memória, nesse sentido, é a chave para uma reinvenção identitária que não depende da validação ocidental.
Samuel Joina Ngale
