0

SOBRE UMA NOVA MITOLOGIA. ENTREVISTA COM MARY LEFKOWITZ

Marcos Carvalho Lopes

(entrevista publicada originalmente em 2015 no Vol.1, n.2, 2015)

A classicista Mary R. Lefkowitz, hoje com 80 anos, foi professora no tradicional Wellesley College e costumava utilizar a Apologia escrita por Platão, como texto de leitura para seus alunos que cursavam o segundo ano de grego. A Apologia descreve o julgamento de Sócrates e serve bem para uma introdução à cultura grega, contudo em um de seus cursos, provavelmente no início da década de 90, percebeu que uma aluna mostrava hostilidade diante de tudo que afirmava sobre os gregos. Mais tarde, conversando com essa aluna, soube que sua reação se justificava por considerar que Lefkowitz ocultava deliberadamente informações, notadamente que Sócrates era negro. Esta aluna havia aprendido isso em um curso de perspectiva “afrocêntrica”, que ao abordar a África Antiga, se debruçava sobre sua influência sobre os gregos e os romanos, desenvolvendo a tese de que a cultura do Egito negro foi roubada e ocultada por outras civilizações.

A aluna de Lefkowitz percebeu que a tese de que Sócrates era negro não fazia sentido, já que ele era um cidadão ateniense e, portanto, descendente de atenienses. Também nenhum de seus contemporâneos havia citado algo neste sentido, além do que Sócrates no Criton diz nunca ter saído de Atenas a não ser quando serviu ao exército. Não havia evidências para sustentar a crença de que Sócrates era negro. Mas o que justificaria ensinar algo assim na universidade?

Embora aconselhada por seus alunos e colegas a não entrar em polêmicas com os afrocentristas, Leftkowitz considerou que fazia parte de sua responsabilidade como intelectual rebater posições que lhe pareciam injustificadas. Em questão estaria à própria função da academia como lugar do saber: a liberdade acadêmica não deveria ser confundida com uma licença para produzir uma distorção deliberada da História tendo como objetivo de empoderar grupos marginalizados. Lefkowitz faz uma genealogia deste tipo de reivindicação afrocentrista de que a cultura negra teria sido roubada pelo Ocidente, numa narrativa que seria intuída por Marcus Garvey, e depois desenvolvida por George G.M. James em seu livro Legado Roubado (Stolen Legacy) de 1954 e que foi reavivada pelo livro Black Athena de Martin Bernal, publicado no final da década de 80. Uma anacrônica concepção de raça somada a uma seria de excessos interpretativos, onde o silêncio e a ausência de evidências funcionariam como argumentos, teriam criado uma nova mitologia.

Assim, em 1991, ao fazer uma resenha criticando a obra Black Athena de Martin Bernal, Leftkowitz abriu uma caixa de Pandora que lhe garantiu inimigos e uma posição polêmica que rendeu mais publicações. Lefkowitz colecionou uma série de exemplos extremos que mostrariam “como o afrocentrismo se tornou uma desculpa para ensinar o mito no lugar da História” em seu livro Not out Africa de 1996. A ideia de que Sócrates era negro, ou de que Aristóteles seria uma espécie de copista do conhecimento acumulado na Biblioteca de Alexandria (que nem existia na época em que o filósofo de Estagira vivia), que Cleópatra era uma nacionalista negra são alguns dos exemplos que Lefkowitz refuta nesta obra. Em 1996 também organizou, junto com Guiy MacLean Rogers, o livro Black Athena Revisited em que diversos scholars escreveram textos questionando os pressupostos, métodos e interpretações desenvolvidas por Bernal. Em 2008, publicou History Lesson: a Race Odissey em que continua a polêmica de seu livro anterior desenvolvendo-a como um confronto com seu colega de Wellesley, o afrocentrista Tony Martin (em certa medida o debate degenerou-se numa troca de acusações de racismo entre negros e judeus).

A professora Mary R. Lefkowitz tem o mérito de promover o debate sobre a perspectiva afrocêntrica, denunciando exageros e teses que não possuem evidências. Contudo, para afrocentristas como Molefi Kete Asante a autora cria um espantalho com exemplos que não seriam defensáveis e, de modo falacioso, acredita ter refutado o afrocentrismo. Asante acredita que o objetivo de Lefkowitz não pode ser o da objetividade acadêmica, mas é um movimento para manutenção da hegemonia eurocêntrica. Na interpretação de Asante o incidente com a aluna descrito por Lefkowitz demonstraria “um dos principais temas envolvidos nos ataques a Afrocentridade: o racismo branco. Muitos brancos não podem acreditar que um homem com a reputação de Sócrates ou de sues professores poderia ser negro, por conta do descrédito institucional para com os africanos”. Asante interpreta a resistência de Lefkowitz em aceitar um Sócrates negro como um sintoma de seu preconceito: “Claro que não há indicação de que ele [Sócrates] era negro, e para mim, esta não é uma questão de interesse, mas para os brancos isto acerta bem em seu espírito”.

Já Theophile Obenga acusa Mary R. Lefkowitz de construir uma caricatura, que coloca do lado eurocentrista a objetividade científica e do lado do afrocentrista o mito e a propaganda. Considera-a superficial, mas, ao mesmo tempo, se nega a argumentar, já que para isso teria que utilizar os termos hegelianos que são a matriz do prejuízo que quer denunciar. O tom de Obenga não ajuda e a acusação de racismo ganha uma formulação sexista: “Mary Lefkowitz espanta por sua superficialidade. Em que é que uma prostituta como Cleópatra VII contribui para a consciência histórica africana?”.

Num momento em que as narrativas afrocentristas começam a ganhar força no Brasil é importante dialeticamente considerar as objeções da professora Mary R. Lefkowitz. Neste sentido, fizemos com ela uma breve entrevista por email que serve como mote para que o leitor procure seus textos e desenvolva suas próprias conclusões. Agradecemos a receptividade de Leftkowitz e sua disponibilidade para este diálogo.



1) Umberto Eco, em seu romance Baudolino, descreve seu protagonista como um jovem que alcança o sucesso dizendo mentiras úteis e fantásticas que são aceitas como verdade, porque eles são exatamente o que as pessoas gostariam de acreditar. O romance é parte da “cruzada” travada por Eco na defesa de limites para a interpretação contra o “gnosticismo pós-moderna” (por exemplo, Desconstrução, neopragmatismo etc.). Será que faz sentido comparar o trabalho que você desenvolve em relação ao Afrocentrismo com o mesmo tipo de advertência emitida pela Eco em relação as “mentiras úteis”?

A idéia de que a filosofia grega foi roubado do Egito me parece ser uma espécie de “mentira útil” porque ele certamente faz algumas pessoas se sentirem melhor; mas isto não é história.

2) Hoje, a afirmação de que a filosofia foi inventada pelos gregos tornou-se motivo de controvérsia. A ideia de uma origem africana da filosofia surge como uma forma de empoderamento dos negros africanos. Como estudioso da antiguidade clássica, qual é sua opinião sobre isso?

Todas os povos são capazes de pensar filosófica e cientificamente. Mas a filosofia grega foi inventada pelos gregos; não há nenhuma evidência de que elafoi inventada no ou roubada do Antigo Egito. Os antigos egípcios tinham uma teologia complexa (muito mais complicada do que o aquela em que os gregos antigos acreditavam), mas a filosofia grega é primordialmente não-teológica.

3) A idéia de que Sócrates era negro, ou que Aristóteles roubou o conhecimento da biblioteca de Alexandria surge para nós, brasileiros, como muito extravagante. Alguns podem acreditar que tais afirmações irrealistas não justificam um estudo acadêmico. Poderia explicar o processos histórico que levou este problema a merecer cuidado e atenção?

 Depois que Alexandre conquistou o Egito no final do século 4 a.C., lendas surgiram de que Sócrates e Platão haviam estudado no Egito. Mas Sócrates diz no Críton que nunca saiu de Atenas, exceto na campanha militar grega, e o que Platão escreveu sobre o Egito em seus diálogos poderia ter sido aprendido pela leitura de Heródoto.


4) Se as regras epistemológicas são substituídos por solidariedade ética e política, o conhecimento na área de humanas seria, na melhor das hipóteses, dependente da abertura para o jogo de pedir e dar razões. Dentro da comunidade acadêmica este jogo deve ser a regra e ocorrer livremente. Como foi a recepção de suas objeções ao Afrocentrismo por parte da comunidade acadêmica, e, especificamente, entre os teóricos afrocentristas?

Os afrocentristas tentaram burlar as regras do discurso acadêmico (como a dependência de evidências), e me acusaram de ter motivos que eu nunca tive, como o protecionismo do meu campo, o racismo etc.

5) Falando sobre o Egito e seu “legado roubado” é um tema comum no discurso afrocêntrico. Este é um bom convite para estudar mais sobre o Egito Antigo. Sei que você aceitou esse desafio. A pergunta é: acha que o “Egito Antigo” foi roubado? Este tipo de ‘roubo’ é possível?

O Antigo Egito não foi roubado por ninguém. Não se pode roubar uma cultura da mesma forma como se pode roubar (por exemplo) um carro. Se você toma o meu carro eu não o terei mais e você, sim. Se você toma emprestada minha cultura, eu ainda tenho a minha cultura. Todos devem aprender mais sobre o Egito antigo, mas é um desafio fazê-lo, por causa da língua e do sistema de escrita, bem como da complexidade de suas idéias religiosas. Tenho sorte, porque cresci em Nova York, onde o Metropolitan Museum of Art tem uma extensa coleção de arte egípcia. Sua arte teve uma profunda influência sobre a arte grega, assim como a arte da Mesopotâmia; comunicação visual era muito mais fácil do que escrita, por causa dos sistemas de escrita incompatíveis.

REFERENCIAS

LEFKOWITZ, Mary F. Not out Africa. How Afrocentrism became a excuse to teach myth as history. New York: A new Republic Book, 1996.

______. History lesson: a rece odyssey. Devon: Yale University Press, 2008.

LEFKOWITZ, Mary F.e ROGERS, Guy M. Black Athena Revisited. S.d.: The University of North Carolina Press, 1996.

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *