0

Teóricos da dependência realmente ignoraram a cultura?

O conhecimento indígena deve ser ciência para ser válido? O filósofo Paulin J. Hountondji mostra que devemos perguntar, em primeiro lugar, por que a África é dependente cientificamente e tecnologicamente

por Zeyad el Nabolsky


Texto adaptado de Zeyad el Nabolsky, publicado como capítulo no livro “Africana Studies: Theoretical Futures,” editado por Grant Farred e publicado pela Temple University Press em junho de 2022.


O filósofo beninense, Paulin J. Hountondji, é amplamente considerado uma das figuras mais influentes no desenvolvimento da filosofia africana na segunda metade do século XX. Seu nome está principalmente associado à crítica de uma corrente da filosofia africana que ele nomeou de “etnofilosofia”, exemplificada nas obras de Placide Tempels, Alexis Kagame e outros. Em seu Sur la Philosophie Africaine (1976) [traduzido para o inglês como African Philosophy: Myth and Reality em 1983], Hountondji argumenta que os “etnofilósofos” estavam ilegitimamente aceitando crenças populares e visões de mundo como sendo filosofia no sentido estrito, ou como uma “ciência rigorosa”, para usar a terminologia husserliana que Hountondji às vezes emprega. Sua crítica à etnofilosofia é que ela se baseava em suposições metafilosóficas suspeitas e que seu método envolvia impor as próprias visões filosóficas do etnofilosófo para todo um povo, além de depender da suposição de unanimidade, ou seja, a suposição de que todas as pessoas de uma determinada sociedade africana “tradicional” compartilhavam ou compartilham as mesmas visões filosóficas. No entanto, ele não apenas tentou refutar a etnofilosofia em bases normativas, mas foi além ao tentar explicar sua própria existência. É aqui que a conexão entre o projeto de Hountondji e a crítica da ideologia no sentido marxista clássico se torna aparente.

A crítica da ideologia no sentido marxista envolve duas etapas. Primeiro, deve-se mostrar que a visão em questão é falsa. Em seguida, se a visão em questão envolve erros que não podem ser explicados apenas como erros intelectuais inocentes, deve-se tentar explicar como ela surgiu, fazendo referência a fenômenos socioeconômicos estruturais, às condições que a sustentam. Para Hountondji, o fenômeno socioeconômico relevante para explicar a ascensão da etnofilosofia é o fenômeno da dependência. Especificamente, a dependência econômica, social, política e cultural que caracteriza a relação entre os países africanos e seus antigos colonizadores. Para Hountondji, a etnofilosofia é essencialmente orientada para um público não africano, na medida em que atende às expectativas de um público europeu sobre como deveria ser a filosofia africana.

Apesar das acusações de academicismo, Hountondji está claramente interessado no que a filosofia africana pode fazer pelas sociedades africanas. De fato, é devido a suas preocupações práticas que ele é bastante cauteloso em relação a reivindicações exageradas feitas em nome da filosofia, como indica em seu artigo de 1981 “Que Peut la Philosophie” [traduzido para o inglês como “O que a Filosofia Pode Fazer?” em 1987]. Para ele, os problemas da filosofia africana decorrem de questões mais estruturais, e seria ingênuo esperar que a filosofia, bem feita, possa acabar com o neocolonialismo. No entanto, a filosofia, bem feita, pode contribuir positivamente para a identificação das questões em jogo, especialmente quando integrada com a pesquisa empírica relevante.

É aqui que o trabalho de Hountondji é claramente marcado pelo contato com um dos projetos de pesquisa mais influentes no Sul Global durante a segunda metade do século XX, a saber, a teoria da dependência. Hoje, a teoria da dependência é frequentemente criticada como excessivamente estruturalista, excessivamente economicista e um beco sem saída. Também se alega, às vezes, que o conjunto de obras que identificamos hoje como “teoria pós-colonial” surgiu como uma resposta ao descaso dos fenômenos culturais pela abordagem de economia política, até então dominante, que os teóricos da dependência defendiam. No entanto, o trabalho de Hountondji nos leva a duvidar dessa imagem recebida da teoria da dependência.

Hountondji, como ele reconhece em seu artigo mais amplamente lido sobre dependência científica, “Dependência Científica na África Hoje” (“Scientific Dependence in Africa Today”)(1995), claramente se baseia na teoria da dependência, especialmente na versão desenvolvida por Samir Amin. Contudo, como sua preocupação diz respeito ao estado da filosofia africana, a aplicação da teoria da dependência por Hountondji foca em fenômenos culturais. Nesse sentido, o trabalho de Hountondji tenta mostrar que uma abordagem de dependência não precisa negligenciar questões culturais. Mais do que isso, o trabalho de Hountondji demonstra que não se podem explicar os fenômenos culturais relevantes sem uma versão da teoria da dependência. Seu argumento se baseia na suposição de que o desenvolvimento de algo como a ciência moderna é uma condição necessária para o surgimento de algo como a filosofia moderna, uma suposição que ele compartilha com Louis Althusser. Assim, sua tentativa de responder a perguntas sobre o que ele considera ser a condição relativamente subdesenvolvida da filosofia africana o leva a considerar a história da ciência no continente africano. Além disso, ele também acredita que o desenvolvimento da tecnologia moderna (ou forças produtivas, em termos marxistas) é uma condição necessária para o desenvolvimento de algo como a ciência moderna. Essa é uma versão da tese que foi dada sua forma clássica por Boris Hessen em seu ensaio “As Raízes Socioeconômicas do Principia de Newton” (1931).

Hountondji então se volta para a seguinte questão: assumindo que existe uma relação de dependência causal entre tecnologia e filosofia, embora mediada pela ciência, como o colonialismo afetou o desenvolvimento da tecnologia, da ciência e da filosofia no continente africano? Para Hountondji, a resposta é que ele claramente teve uma influência prejudicial. Aqui, ele recorre ao trabalho de alguns dos teóricos da dependência mais conhecidos — nomeadamente Andre Gunder Frank, Immanuel Wallerstein e Samir Amin — para argumentar que os efeitos do capitalismo nas sociedades colonizadas, e especificamente nas sociedades africanas colonizadas, foram diferentes dos efeitos do capitalismo nas metrópoles. Ele afirma que, nas sociedades colonizadas e especificamente em Benin e outros países da África Ocidental, o capitalismo colonial impediu o desenvolvimento das forças produtivas. Na medida em que o desenvolvimento de forças produtivas modernas é uma condição necessária para o desenvolvimento de algo como a ciência moderna, o capitalismo colonial teve efeitos adversos sobre a possibilidade de algo como a ciência moderna se desenvolver no continente africano. E na medida em que a ciência moderna é uma condição necessária para o surgimento da filosofia moderna, o capitalismo colonial colocou obstáculos no caminho do surgimento de uma tradição autônoma da filosofia africana moderna. O trabalho de Hountondji pode, portanto, ser considerado uma demonstração de que a afirmação de que a teoria da dependência não tem nada de interessante a dizer ao explicar fenômenos culturais no mundo anteriormente colonizado é, na melhor das hipóteses, simplista e, na pior, absolutamente errada.

Hountondji argumenta que, sem investimento na criação de instituições de pesquisa africanas autônomas que estejam integradas às economias nacionais dos estados africanos, a dependência científica e tecnológica da África persistirá. Certamente Hountondji não negligenciou o que ele chamou de “conhecimento endógeno”; no entanto, para ele, tal conhecimento precisava ser integrado aos programas de pesquisa das disciplinas científicas contemporâneas e criticamente avaliado com base nisso. O conhecimento endógeno pode desempenhar um papel na superação da dependência científica e tecnológica da África, mas somente se for liberado da petrificação à qual está submetido quando descrito puramente em termos etnográficos, e somente quando suas reivindicações de verdade forem avaliadas de maneira séria usando os meios de teste de hipóteses que foram desenvolvidos nas disciplinas científicas contemporâneas relevantes. Na medida em que Hountondji vê a ciência moderna como o paradigma da investigação bem-sucedida, ele é um modernista. Seu trabalho sobre dependência científica é especialmente relevante neste momento atual, dado que a pandemia de COVID-19 deixou claro que a dependência da África em relação a vacinas importadas não é sustentável a longo prazo. O fato de que o continente africano como um todo importa 99% das vacinas que são entregues a seus habitantes mostra que pensar sobre dependência científica de maneira séria é imperativo hoje.


Zeyad el Nabolsy possui um doutorado em Estudos Africanos pela Universidade Cornell. Ele tem um mestrado em filosofia e um bacharelado em engenharia (engenharia química) pela Universidade McMaster. Sua principal área de foco é a História Intelectual Africana Moderna. Sua dissertação “Ciência, Modernidade e Progresso na África Ocidental e Norte no Século XIX: Um Estudo Comparativo de Africanus Horton e Rifa’a al-Tahtawi” busca responder à pergunta: como nossa compreensão do papel da ciência moderna nas sociedades africanas muda quando deixamos de ignorar a recepção inicial de algumas das ciências modernas por intelectuais africanos do século XIX, como Africanus Horton (1835–1883) na África Ocidental e Rifa’a al-Tahtawi (1801 – 1873) na África do Norte, antes da Corrida pela África? Ele também se interessa pela história dos debates sobre modernidade cultural no continente africano. Além disso, mantém uma agenda de pesquisa ativa focada na história do marxismo na África Oriental. Sua pesquisa foi apoiada pela Bolsa de Doutorado da SSHRC e pela Einaudi Dissertation Proposal Grant. Zeyad é atualmente professor assistente no Departamento de Filosofia da Universidade York.


texto original publicado em: https://africasacountry.com/2022/07/did-dependency-theorists-really-ignore-culture

Todo o conteúdo de Africa Is a Country é publicado com a licensa Creative Commons BY 4.0 

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *