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Transcendência da ignorância

A fala do atual Ministro da Educação contra filosofia e sociologia não é uma novidade, muito pelo contrário. Em 2006 publiquei no Jornal Opção, que era um importante veículo cultural em Goiás, um artigo rebatendo uma fala semelhante do então deputado Sandro Mabel (que se lançava pré-candidato ao governo do Estado de Goiás). Infelizmente, meu texto ainda tem alguma atualidade, talvez porque a transcendência da ignorância seja o Espírito do Tempo.

A cobrança de que a filosofia deveria contribuir na construção do debate público cotidiano, no sentido de problematizar e desenvolver uma cultura democrática (que fosse além das promessas de redenção de certa visão reacionário que promete Verdade e Redenção) não pode mais ser ignorada como o arroubo juvenil e geracional.

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Transcendência da ignorância

Marcos Carvalho Lopes*

“Sabedoria tem limites, ignorância não”,  repetia o saudoso professor João Pedro Mendes. O problema é que não temos nenhum aparelho para medir com precisão o que é uma coisa e o que é outra. Por vezes os dois termos se turvam e nossas certezas e crenças são colocadas em jogo. Assim sendo, o melhor que podemos fazer é manter viva a desconfiança socrática diante dos que se dizem “donos” de um saber.

Algumas palavras do deputado Sandro Mabel, pré-candidato da Frente Liberal ao governo do Estado de Goiás, despertaram em mim a necessidade de repensar minha profissão e crenças. Disse o nobre deputado especulando sobre mudanças no programa Bolsa Universitária que ocorreriam caso chegasse ao poder:

“DM – Os critérios de concessão do Bolsa Universitária seriam alterados? 
Mabel – Sim, temos de priorizar alunos que escolhem exercer funções que têm maior importância para o Estado. Exemplo: um jovem quer estudar Filosofia. Acho que não temos que disponibilizar bolsa para quem quer se especializar nesta área. Nada contra Filosofia, mas temos que ser objetivos. Qual o retorno que o cidadão que cursa Filosofia trará para o Estado? Para mim e para você, que pagamos impostos e pagamos nossos tributos? Nada. Até pode ser que concedamos a bolsa nesses casos, mas deve ser proporcionalmente menor ao apoio que concedemos ao camarada que faz um curso técnico agrícola, agronomia, geologia, pra trabalhar com mineração. O investimento deve voltar para a sociedade. Temos que ser pragmáticos. Vamos nos focar em profissões que gerem terreno propício para o plano de industrialização da Frente, porque aí a população não perde dinheiro. “

(http://www.sandromabel.com.br/noticia.php?id=65 )

Como “inútil” filósofo sinto-me na obrigação de tentar – mesmo que de forma vã – entender as palavras do deputado, afinal, se for o caso, melhor mudar de profissão e ajudar meu Estado. Quiçá me candidate para vaga de deputado, embora tenha dúvidas sobre a necessidade “pragmática” dessas figuras num país governado por medidas provisórias, onde os conchavos e a troca de favores entre executivo e legislativo são lugar comum e prática inevitável para garantir governabilidade. Talvez estejam gastando o dinheiro de meus impostos –   filósofo infelizmente ainda paga impostos e tributos – à toa!

(Duas ideias desconexas surgem em minha mente desocupada: (1) sabemos que no Brasil, historicamente, não temos um pensamento de Direita elaborado nos parâmetros que estudamos na academia, Nossa direta é patrimonialista, fisiológica e clientelista. Seu conservadorismo se confunde com as práticas mais antigas de coronelismo e fisiologismo. Será isso sintoma de uma falta de perspectiva filosófica clara e excesso de pragmatismo (palavra tomada em sentido mais pobre)? (2) Darci Acorsi, ex-prefeito de Goiânia e companheiro de Mabel no PL, tem formação filosófica. Será que o deputado se lembrou disso quando falaou da inutilidade do filósofo para a sociedade?).

Perspectiva tecnicista de curto prazo – Em sua entrevista ao Diário da Manhã o pré-candidato ao executivo estadual Sandro Mabel fala em construir uma gestão eficiente, critica o clientelismo e afirma que em seu governo a competência seria pressuposto para contratações, “o currículo terá que ser aprovado antes da admissão”. Até aqui nenhuma novidade: existe um processo contínuo no Brasil de transformação republicana que, longe de ser uma concessão, é uma necessidade inadiável. Explica Mabel que seu discurso está centrado na “atração de indústrias e gestação de renda”, numa fórmula pela qual a industrialização resolveria todos os problemas da população: com emprego garantido o trabalhador poderia ter acesso a cidadania, água encanada, esgoto… nesse sentido, o deputado reafirma a cartilha (neo)liberal. A ousadia do parlamentar está em dizer que: “A visão de longo prazo não é interessante para políticos porque, se tudo permanecer como está, a população sempre dependerá do governo”. Desse elogio ao imediatismo é que se deriva a visão tecnicista apresentada por Mabel quando fala do programa Bolsa Universitária: o Estado deveria financiar a formação de trabalhadores que suprissem os interesses das indústrias que por ventura quisessem se instalar no Estado.

O discurso de Mabel é coerente quando sabemos que ele é empresário e conhece a gestão de indústrias. Ele quer que o investimento volte “para a sociedade”, a classe organizada que dirige nossos destinos. A “sociedade” de que fala Mabel tem suas opiniões e anseios, mas pouco – ou nada – pensa no “social”. Como explica o filósofo Renato Janine Ribeiro no livro A sociedade contra o Social, no Brasil esses termos ganharam um significado peculiar: “‘A sociedade’   veio a designar o conjunto dos que detêm o poder econômico, ao passo que o ‘social’ remete, na fala dos mesmos governantes ou publicistas, a uma política que procura minorar a miséria.” Dessa forma segundo Janine Ribeiro, “a sociedade é ativa: ela manda, sabe o que quer – e quer funcionar por si mesma, sem tutela do Estado. Corresponde em boa medida ao que, na linguagem marxista, se chamariam as classes dominantes.”

O problema é que no discurso de Mabel a sociedade não quer se livrar da tutela do Estado, como seria comum na perspectiva liberal: ela quer usar o Estado para conseguir alcançar com maior facilidade seus objetivos. Se uma empresa tem interesse na formação de certos profissionais, não também seria útil para ela investir em sua formação? Não se poderiam construir parcerias público-privadas nesse sentido? Noutros países empresas contratam mesmos professores especialistas nas áreas que lhes interessam e pagam seus salários. O retorno: desenvolver profissionais habilitados não só a trabalhar na área, mas aptos para a pesquisa, a inovação…

Esse é outro ponto de miopia de Mabel: não é possível inovação tecnológica sem certo risco no investimento. A proposta de Mabel tira a possibilidade de desenvolvimento tecnológico e inovação, colocando nas costas do Estado o preço a ser pago mesmo pela formação de mão-de-obra técnica. Seguindo a visão do deputado teríamos uma industrialização baseada em paradigmas do início do século XIX.

A função social da filosofia –  Venho argumentando a  algum tempo sobre a importância da filosofia na construção democrática do país. É necessário lembrar: a Ditadura não veio de Marte! Não é só a técnica e a economia que mostram o que é uma sociedade: valores culturais se traduzem em comportamentos, em costumes, em moral. Certo ranço autoritário continua a perpassar nossa sociedade e precisamos construir caminhos para colocá-lo em questão: um desses caminhos é a filosofia. Mas é necessário explicar isso com mais cuidado, respeitando o deputado Sandro Mabel e questionando também o papel da filosofia em nossa sociedade.

A filosofia surgiu em Atenas quatro séculos antes de Cristo, em um contexto “democrático”, nas discussões sobre o que deveriam ser as leis. O debate político e jurídico colocou em questão a natureza, o bem, o justo, o belo, etc. Esses temas deveriam ser entendidos pela razão humana: os homens deveriam dialogar, questionar e buscar posicionar-se diante dessas questões. Em verdade, essa necessidade de provar racionalmente porque uma idéia é defensável, perpassou todo o desenvolvimento da cultura ocidental a partir de então… mesmo a religião cristã tentou equilibrar fé e razão, de tal forma que, diferenças filosóficas levaram a divisões dentro da Igreja e ainda hoje geram discussões.

O debate sobre questões éticas e políticas é uma necessidade constante da vida em sociedade. Quando não desenvolvemos uma crítica desses termos acabamos por ter de aceitar ideias que são impostas de fora. Numa sociedade capitalista, não pensar esses temas é aceitar as ideias que vêm prontas do mercado, da mídia, da propaganda etc. Para não aceitar nenhuma ‘ideia pronta’ é necessário perguntar: “quem fórmula as ‘ideias prontas’ no caso da filosofia?”, “de onde vêm essas ideias ‘impostas de fora’?”. Diria que essas ideias são ‘impostas de fora’ e ‘trivializadas’ por filósofos.   Filósofos que não estão preparados para o diálogo, que não querem debater a realidade a sua volta e, por isso, preferem a desprezar em nome de uma “verdade eterna e imutável”. O problema é que essa “verdade eterna e imutável” não existe em filosofia: esse ideal platônico, que separa o mundo do saber e o mundo da vida, é também marcado pelo autoritarismo de quem diz ter razão diante dos que são considerados “perdidos” em aparências. O “Big Brother” não existe, nem algo fora da sociedade a quem pudéssemos atribuir todas as culpas: quem são “eles”, senão “nós” que deixamos de questionar e aceitamos a repetição desse sentimento autoritário?

Se “eles” não entendem o que “nós” filósofos queremos dizer é também porque “nós” insistimos em não ser um deles: falando difícil, em um jargão inacessível, ou mesmo, em língua estrangeira (por vezes morta) fechamos a porta para o diálogo. Devemos sim, estar abertos para pensar nossa realidade, como, por exemplo, faz Renato Janine Ribeiro, quando reconhece e pensa os limites do papel das novelas no debate ético na sociedade brasileira atual; só com essa postura aberta podemos alcançar uma percepção mais sincera da função dos mecanismos de comunicação de massa, sem nos determos em preconceitos.

Acredito que a ‘vontade de filosofia’ (livros que se tornam best-seller, quadro no Fantástico, livros em banca etc.) pode ser vista como um sintoma do processo de redemocratização. A sociedade tem necessidade de pensar temas que antes não poderiam ser questionados diretamente: uma das primeiras medidas da Ditadura foi retirar a filosofia do ensino médio. Penso que o Brasil começa a se acostumar com a instituição da democracia e também desperta para a ideia de que precisa se reinventar enquanto sociedade também democrática. Relembro: a Ditadura não veio de Marte, nem a corrupção, nem a desigualdade social etc.

A cultura deve ser questionada para que a sociedade possa buscar alternativas, caminhos de transformação. Não acredito que a filosofia, tomada como produto de erudição ou como questionamento escapista, possa contribuir para a democracia. A abertura para o diálogo, para pensar a realidade é o que deve ser valorizado: se as pessoas têm essa abertura os filósofos devem responder à altura, ou seja, sem esconder-se numa erudição vazia ou no academicismo estreito. (Felizmente, não existe hoje muito espaço para os que querem pensar a Filosofia com “f” maiúsculo, promovendo a “tirania da razão”).

É nesse sentido democrático e participativo que me proponho a fazer filosofia. O retorno social talvez esteja em demonstrar alguma “competência socrática” para questionar os pressupostos autoritários dos discursos vigentes.

Originalmente publicado em:
LOPES, Marcos Carvalho . A trancendência da ignorância.. Jornal Opção, Opção Cultural, p. B3 – B3, 09 abr. 2006.

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Infelizmente a realidade que assola este país é assustadora, o que teremos para as próximas gerações?

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