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Um mulato no sentido democrático e duas falas de Cinema Falado

“Um mulato no sentido democrático e duas falas de Cinema Falado” é uma pequena secção do ensaio “A Utopia de Caetano Veloso e a filosofia no Brasil”que esta no livro Caetano e a filosofia (UDUNISC/UFBA, 2011). . Neste pequeno trecho, descrevo um pouco sobre como o fascínio provocado pelo filme “Orfeu da Conceição” foi traduzido como busca e promessa utópica por Caetano Veloso. 

P.S.: Existem pontos que foram posteriormente problematizados no meu ensaio, em relação a abordagem das questões raciais… leia o livro!
Sou um mulato nato
No sentido lato
Mulato democrático do litoral

Caetano Veloso, Sugar Cane Fields Forever

 

Como nos diz o historiador Eric Hobsbawn, a partir da década de 60 – com o triunfo universal da sociedade de consumo de massa – as palavras que dominam a sociedade deixaram de vir de livros santos e escritores seculares para brilhar em produtos, como a música pop comercial, o cinema etc.(Hobsbawn, Eric., 1994, p.495-496) Sendo assim, tais produtos tornaram-se muito mais importantes na construção de valores e da identidade. No caso do Brasil talvez fosse possível até pensar, com alguma ironia, em uma espécie de inconsciente musical brasileiro, que construiu um importante vínculo para a memória coletiva e, de quando em quando, “salta” em nossa voz, trazendo a tona desejos e promovendo formas de subjetividade. No entanto, neste tópico quero ressaltar algumas cenas de cinema.

O filme Orfeu Negro, dirigido pelo francês Marcel Camus, conquistou em 1959 a Palma de Ouro no Festival de Cannes, assim como o Oscar de melhor filme estrangeiro. Baseado no texto de Orfeu da Conceição, peça em que Vinicius de Moraes transpôs para uma favela carioca em dias de carnaval a tragédia grega de Orfeu e Eurídice, o filme contava com canções como A Felicidade (“tristeza não tem fim/ felicidade sim…”), de letra do poeta e música de Tom Jobim. Apesar de ter sido gravado antes do marco inicial da Bossa Nova (o filme foi feito em 1958), ficou a posteriori com ela associado e serviu para divulgar a força da canção popular brasileira.  O filme ganhou a Palma de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro e não agradou ao público brasileiro que não se reconheceu na tela, como notou Caetano, “o contraste entre o fascínio que Orfeu negro exerceu no exterior e o desprezo que lhes dedicaram os brasileiros é tão gritante que convida a reflexão sobre à solidão do Brasil” (Veloso, Caetano.,2005, p. 23). Da mesma forma que aconteceu com Carmem Miranda, parece haver um descompasso entre o olhar estrangeiro sobre o Brasil e a forma como por aqui mesmo nos vemos (ou queremos ser vistos).

Contudo, uma jovem branca de 16 anos assistiu naquele ano de lançamento o filme e o achou maravilhoso. Foi o primeiro filme estrangeiro que assistiu e nunca mais conseguiu esquecer. Na verdade, marcou tanto sua vida que mais tarde, nos anos 80, insistiu em levar seus filhos ao cinema para que assistissem juntos ao filme que havia lhe causado tanto fascínio. Nesta sessão, seu filho, que nasceu do casamento com um negro, logo se entediou com aquela história simples e com aqueles brasileiros negros e mulatos alienados, cantarolando sambas, tocando violão e dançando em uma favela. Ele, um estudante engajado não conseguia entender e se identificar com aquele comportamento. No meio da projeção decidiu que já havia visto o suficiente e se virou para a mãe para perguntar se ela queria ir embora.[1] Explica que então viu que o rosto de sua mãe,

iluminado pelo brilho azul da tela, estava tomado por um ar nostálgico. Naquele momento, senti como se uma janela tivesse sido aberta para o seu coração, o coração irrefletido da sua juventude. Subitamente, percebi que a representação dos jovens negros, que eu via agora na tela, (…) era o que minha mãe havia levado com ela para o Havaí muitos anos antes, uma reflexão das fantasias simples que haviam sido proibidas a uma garota de classe média branca do Kansas, a promessa de uma outra vida: quente, sensual, exótica, diferente) . (Obama, Barack., 2008, p. 141-142)

Aquele jovem, de nome Barack Hussein Obama, seria eleito em 2009 o primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América. A visão de um modo de convivência diferente, que tanto fascinou sua mãe, causou impacto em sua percepção das possibilidades de forma de vida. Por conta desta história, a imprensa brasileira brincou com a idéia de que Vinicius de Moraes havia sido uma espécie de “padrinho” da relação da qual nasceu Obama. A peça de Vinicius deu oportunidade para que pela primeira vez atores negros protagonizassem uma peça de Teatro no Brasil, além disso, como avalia Caetano, o poeta, “transpondo o mito de Orfeu para as favelas cariocas, coroava a vitória do projeto brasileiro de guindar o samba à forma de expressão privilegiada da nacionalidade”(Veloso, Caetano., 2005, p.23). Está é a primeira “cena de cinema” que queria contar.

A segunda é efetivamente cena de um filme experimental da metade da década de 80. Um americano com pose de playboy, escorado em um carro afirma em inglês que “Os Estados Unidos são o país mais velho do século XX. No meio do século XIX nós já estávamos no século XX, enquanto alguns países ainda estão no século passado”. Um menino com uma bola murcha improvisada como chapéu, sentado em uma bicicleta que está de cabeça para baixo, olhando para a câmera contrapõe:“O Brasil ainda não chegou lá, mas pode ser o primeiro país do século XXI”.

Noutra cena deste mesmo filme experimental, filmada de modo a satirizar o tipo de planos de imagem que dominam as telenovas brasileiras,  há um diálogo entre um casal que se pergunta pelo lugar do cinema e da cultura pop no Brasil. Nele se ouve a seguinte reflexão sobre o país:

Seu desequilíbrio entre pobreza e riqueza, arcaísmo e modernidade, ignorância e sofisticação o Brasil é ambiente propício para esses deslocamentos. Julio Bressane experimenta porque o Brasil vai precisar. Nós fazemos o filme para o sonho, não que a realidade permita. (Silêncio) Formas bastardas de expressão, como o cinema, a tevê e a canção popular tendem a ganhar demasiada importância entre nós, não porque somos pobres e incultos, mas, sobretudo porque emboçamos um mundo novíssimo.

Este filme, que multiplica conversas e questões que inquietam seu diretor, é o único longa-metragem de Caetano Veloso e tem por nome Cinema Falado.

[1] Vinicius de Moraes, quando do lançamento do filme, saiu da sala antes do final da sessão alegando que sua peça havia sido desfigurada. Mas a dimensão caricata do filme estava sob medida para o que os olhos estrangeiros esperavam ver.

Marcos Carvalho Lopes

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