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Um passo atrás com a overphilosophication

De como o debate com Umberto Eco sobre limites da interpretação repercutem na filosofia de Richard Rorty

Marcos Carvalho Lopes

trecho da dissertação Sobre Limites da Intrepretação: o Debate entre Umberto Eco e Richard Rorty nas Tanners Lectures (UFG, 2007).

Numa resenha de 1987 para o livro de Jurgen Habermas O discurso filosófico da modernidade, Richard Rorty sugere uma espécie de tipologia para dividir as formas de crítica que qualquer filósofo original enfrenta. Haveria os críticos de terceira fila que buscam desqualificar o autor acusando-o de frivolidade intelectual ou de corromper a juventude; os críticos de segunda fila tomam o analisado em contraponto com o filosofar tradicional, e o julgam de maneira literal e estrita, acusando-o de ambiguidade no uso dos termos ou de enunciar conclusões vagas; por fim, haveria os críticos de primeira fila, que procuram entender as motivações e esperanças que levam o filósofo a tomar um caminho original, procurando considerar de forma holística sua obra, para, por fim, apontar em quais aspectos consideram que o autor fracassa ou mostra inaptidão para resolver os problemas que aborda.[1]

Esta classificação serve para explicar como Rorty, nas Tanners Lectures, tentou interpretar a obra de Eco com a peculiar caridade que teria um crítico de primeira fila; já o filósofo italiano, com a caricatura da semiose hermética criou um espantalho que não merecia ter voz: suas críticas seriam de terceira e segunda fila. Essa diferença de posicionamento justifica afirmar que o que existe entre Rorty e Eco não é um diálogo e sim um debate, o que, para o filósofo norte-americano é infrutífero e não ganha espaço em seus escritos posteriores. 

Rorty, principalmente durante a década de noventa, dialogou/debateu com as mais diferentes perspectivas filosóficas: universalistas neokantianos (Habermas, McCarthy), comunitaristas de raízes neo-aristotélicas e hermenêuticas, filósofos analíticos (Searle, Putnam, Willians, Davidson), feministas, pós-modernos e outros pragmatistas. Diante de sua proposta de conversação continua, podemos entender essa série diversa de interesses e controvérsias como uma marca da sua concepção de filosofia e política democrática.[2] Contudo, é interessante notar que Rorty nestes diálogos não modifica suas concepções anti-fundacionistas, mantendo seu naturalismo radical e sua idéia de justiça como lealdade ampliada (reafirmado seu etnocentrismo e negando espaço para o universalismo). Apesar de se afirmar ironista e insistir em falar da contingência de nossas crenças, Rorty parece muito pouco propenso a revisar suas posições. Renega e considera um retrocesso a defesa que Davidson faz de uma triangulação[3] como necessária para garantir a objetividade da verdade: para ele a verdade depende sempre da justificação, “e a justificação e o melhor-para-acreditar vão depender do público (e da série de candidatos à verdade) tanto quanto à bondade dos propósitos e à justiça das situações”.[4] 

Como vimos, as interrogações de Rorty se deslocam do sentido epistemológico para a dimensão ético-política na problematização do que seria “melhor-para-acreditar”. Nesse sentido, o questionamento sobre limites da interpretação toma uma direção cultural e política. Tentaremos mostrar brevemente como Rorty tenta limitar o alcance de algumas de suas formulações mais radicais com o uso da distinção público/privado. Para tanto, não fugiremos de discutir as repercussões ético-políticas de sua proposta.

Rorty, na introdução de seu Ensaios sobre Heidegger e outros, fez questão de deixar claro o seu distanciamento do termo pós-moderno. O pensador norte americano diz então que se arrepende de ter empregado essa expressão, para ele “o termo pós-moderno tem sido tão superutilizado que vem causando mais confusões do que esclarecimentos”.[5] Rorty acentua sua desconfiança em relação às metanarrativas e às visões totalizantes das transformações culturais:

Eu abdiquei da tentativa de encontrar alguma coisa em comum entre construções de Michael Graves, romances de Pynchon e Rushdie, poemas de Ashberry, vários tipos de música popular e escritos de Heidegger e Derrida. Tornei-me mais hesitante quanto às tentativas de periodizar a cultura, de descrever todas as partes de uma cultura como repentinamente se desviando e se orientando para uma mesma e nova direção, e quase ao mesmo tempo. Narrativas dramáticas podem ser muito bem, como MacIntyre sugeriu, essenciais para a escrita da história intelectual. Mas parece mais prudente e proveitoso periodizar e dramatizar cada disciplina e gênero separadamente, ao invés de tentar pensar em todos eles como sendo varridos por poderosas mudanças oceânicas.[6]

Pensando na filosofia, Rorty insiste em se posicionar contra a visão de que ela seria fundamento necessário da política ou da educação. Para o pensador norte-americano, é costume se exagerar a importância das transformações filosóficas e sua capacidade de repercutir em termos culturais. Muitas das especulações filosóficas alcançariam tal grau de abstração que não se prestam a qualquer aplicação prática. Existiria, então, um excesso de interpretação, diante do qual o pensador norte-americano fala em over-philosophication.

Este termo aparece como título de dois artigos de Rorty. O primeiro, de 1990, faz parte de num debate sobre a relação de sua filosofia com transformações educacionais e tem por título “Os perigos da sobrefilosoficação (over-philosophication)”[7]; o segundo surge dez anos depois, tem por título “The overphilosophication of politics[8] e trata da relação da filosofia com a política. A intuição básica dos dois artigos já surgia no primeiro parágrafo do primeiro artigo, quando Rorty explica o motivo de suas dúvidas em relação à importância da filosofia para a política e a educação.  O filósofo norte-americano afirma que

A política – ou ao menos o tipo de política na qual eu me interesso em participar – é o empreendimento de desenvolver instituições que protegerão o fraco contra o forte. A educação me parece dois empreendimentos razoavelmente distintos: a educação básica é principalmente uma questão de socialização, de tentar inculcar um sentido de cidadania, e a educação superior é principalmente uma questão de individualidade, de tentar despertar a imaginação do indivíduo na esperança de que ele se torne capaz de recriar a si mesmo. Eu não estou certo de que a filosofia possa fazer muito por qualquer desses empreendimentos. [9]

As dúvidas de Rorty quanto à pertinência da filosofia para a política podem ser vistas como uma reação ante a situação do cenário norte-americano como descrito em seu manifesto patriótico Para realizar a América.[10] Rorty percebe que a esquerda reformista norte-americana, a partir da década de sessenta, migrou para uma postura cultural, embaralhando público e privado e abandonando qualquer possibilidade de promover justiça social “dentro do sistema”, partindo para teorizações, cada vez mais abstratas, sobre formas de mudar os costumes corrompidos da sociedade “falogocêntrica”, “tecnocrática”, “judaico-cristã” etc. Habermas resume este movimento da esquerda, afirmando que “a desconstrução de textos filosóficos substituiu a crítica da economia política”.[11] A esquerda cultural teria se afastado de qualquer projeto de transformação legal dentro da democracia e, com isso, perdido sua dimensão prática em meio a elucubrações teóricas e retóricas.

 Habermas lembra que Rorty, em sua crítica à filosofia analítica, foi um dos que prepararam o solo para que a “política da diferença”, alimentada por autores como Derrida, Foucault e Heidegger, ganhasse espaço no cenário norte-americano. Rorty teria se dado conta das “consequências mentais” da valorização política destes pensadores e constatado que a esquerda cultural fundou uma “escola do ressentimento”, “na qual os estudantes desaprendem, não somente a indignação contra a injustiça social, mas também aquele pouco de esperança política que seria necessário para arregaçar as mangas”.[12]

O objetivo de Rorty estaria em resgatar a esperança e colocá-la no lugar antes dado para a razão. É isto que ele tentou fazer em Contingência Ironia e Solidariedade, de 1989, com sua ideia de Utopia Liberal e a distinção do espaço de autocriação privada da dimensão pública e argumentativa. Assim como John Dewey, Rorty acredita que o Estado de Bem-estar Social é a melhor forma de governo que o Ocidente já produziu. Em meados da década de oitenta essa crença parecia justificada: a adoção da democracia nos países europeus no pós-guerra veio acompanhada de desenvolvimento econômico e aumento da qualidade de vida. A esperança de que isso se repetisse em outros países parecia coerente, no entanto, o processo de redemocratização dos países da América Latina e nos antigos estados comunistas não atingiu os mesmos resultados: sem a ajuda das grandes potências (e sem o fantasma da Guerra Fria) a Democracia Liberal realmente existente não correspondeu aos sonhos de Dewey, nem de Rorty.[13]

Quanto a esse ponto provavelmente retrucariam: que outra opção teríamos hoje? Então, devemos tentar reformar as instituições existentes…

A perspectiva política rortyana pede um diálogo ininterrupto em que o “eles” deveria ser gradativamente incorporado a um “nós”. Neste sentido, qualquer idéia de um “vocabulário final” deveria ser rejeitada, o que mostra bem como a dimensão ético-política incide na negativa do filósofo norte-americano em aceitar a possibilidade de demarcação a priori de limites para a interpretação. Quando pensa questões como a “política de identidade”, este aspecto do pensamento de Rorty se torna mais claro, como numa entrevista em que Jurandir Freire Costa questionou ao pensador norte-americano se ele considerava que a ideia de identidade tenderia a apontar para um referente imutável. Rorty concordou e completou seu raciocínio:

Creio que na questão da política de identidade há sempre uma divisão entre essencialistas e antiessencialistas. Os essencialistas querem dar definições; os antiessencialistas dizem: ”Não! O problema é muito complexo para que se possa definir, trata-se de um jogo infinito de diferenças etc. ”. Eu acho tudo isso tedioso. Existe uma batalha estéril entre aristotélicos e derrideanos (de Jacques Derrida). Eu não sei o que fazer com isso. Para divertir-nos, podemos escrever coisas deste tipo: o que é um professor, o que é uma mulher etc. Mas, falando politicamente, nada disso é sério.[14]

Rorty vê consequências perniciosas tanto na postura de essencialistas aristotélicos (como seria Umberto Eco) que procuram determinar referentes estáveis, quanto na de descontrutivistas, que dissolveriam qualquer determinação num jogo de diferenças infindável. Para que a conversação democrática continue é necessária, para Rorty, o abandono da ideia de “política de identidade” como vem sendo tratada.

Rorty transfere os “problemas de fronteira” de uma posição epistemológica para uma ético-política: se na conversão contínua rortyana a ideia de limites da interpretação estaria sendo decidida pragmaticamente, sem a necessidade de qualquer teoria, a divisão público-privado como proposta pelo pensador norte-americano parece repor a necessidade de “guardas de fronteira”. 

Cabe reafirmar a crítica feita pelos descontrutivistas em relação à posição do neopragmatismo norte-americano: a democracia não é um sistema de governo em que o consenso é o mais importante, em verdade, sua característica fundamental seria a legitimação do conflito e a recusa em tentar eliminá-lo por meios autoritários e violentos.[15]

Teríamos aqui algo como “os limites do romantismo utópico”: a violência dos que ficaram de fora da “cidade ideal”, os que são estrangeiros e não tem reconhecidos seus direitos, sua voz. Quem decide onde termina o diálogo e começa a violência? Quem decide que são “eles” que terão voz no diálogo com “nós”? A questão de não provocar dor (para Rorty a pior coisa que um ser humano pode fazer é provocar sofrimento a um outro) deve incluir também a idéia de não oprimir…

Depois dos atentados de 11 de Setembro essas interrogações parecem ter ficado prementes para o próprio Richard Rorty. Ele passa a temer que a violência das periferias faça o Ocidente renegar seus ideais democráticos ante a iminência da perda de hegemonia econômica (o norte-americano antecipa “O século americano terminou, começou o século chinês”[16]) e a incessante ameaça de atentados terroristas. Quiçá aconteça um mergulho alienado na vida privada, como figuram as palavras de jovem Theo, protagonista do romance Sábado de Ian MacEwan, que com seus 18 anos renega qualquer utopia política:

Quando pensamos nas coisas grandes –a situação política, o aquecimento global, a pobreza mundial–, tudo parece realmente terrível, nada está melhorando, não há nada a esperar. Mas, quando penso pequeno, mais perto – você sabe, numa garota que acabei de conhecer ou na canção que estou compondo com Chas ou em fazer “snowboard” no mês que vem, tudo parece ótimo. Por isso, este será meu lema: Pense pequeno.[17]

As possibilidades de nos fecharmos em nossa comunidade paradigmática e excluir os diferentes aumentam alarmantemente. Parece mesmo que o próprio Rorty viu suas esperanças de futuro declinarem:

Chegamos obrigatoriamente na demanda de nivelamento entre países do Sul e do Norte. Não há como elevar no nível socioeconômico do baixo Equador sem que os países ricos reduzam drasticamente o padrão de consumo. Nenhum político se arriscaria tanto, seria inócuo. Está é a hipocrisia dos liberais: na verdade, só defendem a melhoria daqueles que já muito possuem, mesmo ao custo de injustiças às nações pobres. A briga deles agora é outra, lutam para manter o conquistado. A situação atual do mundo não permite alternativas.[18]

Parece-me que depois dos atentados de 11 de Setembro talvez precisemos de outras descrições que não deixem espaço para se conceber atentados terroristas como meros efeitos de linguagem ou performances artísticas. É preciso repensar o lugar do silêncio nessa Utopia de conversação contínua: o não-falar dos oprimidos; o silenciar de quem, sem argumentos, usa de sua hegemonia para “convencer” pela força e depois contar sua história; o não falar dos que não acham útil dizer qualquer coisa e querem apenas pensar em suas vidas privadas; e a falta de sentido para descrever o espanto ante a violência, a miséria e a banalização da vida. Talvez possamos aprender com Ferreira Gullar, que a poesia pode também incluir palavras sujas e que afetam o gosto refinado das elites autosatisfeitas e autoindulgentes. Não se trata de ir para além ou aquém da linguagem ­–como se isso fosse possível ­–ou de menosprezar o que o giro linguístico trouxe, devemos sim repensar a utilidade de afastar a teoria se for para aceitar as coisas como estão. Devemos lembrar que imaginação e melancolia andam de mãos dadas e se é para ser ironista e etnocêntrico, não devíamos deixar de ter em mente a lição de Quincas Borba e seu humanitismo (com a qual Machado de Assis criticava o positivismo, o darwinismo cultural e outras ideologias iluminadoras): ao vencedor as batatas?!


[1] RORTY, Richard. “Posties.” Review of Der Philosophische Diskurs der Moderne, by Jürgen Habermas. London Review of Books (September 3, 1987), 11–12. Citado em ESPINOSA, Gabriel Rodrigues. Consecuencias del Neopragmatismo: el espectro crítico de Richard Rorty.  Tesis doctoral. Universidad de La Laguna. (2002). Disponível em:  ftp://tesis.bbtk.ull.es/ccssyhum/cs148.pdf consultado em 03/04/2007.

[2] Um levantamento dessa série de conversações pode ser encontrado em ESPINOSA, Gabriel Rodrigues. Consecuencias del Neopragmatismo: el espectro crítico de Richard Rorty; Tesis doctoral. Universidad de La Laguna. (2002). Disponível em:  ftp://tesis.bbtk.ull.es/ccssyhum/cs148.pdf consultado em 03/04/2007

[3] A forma de triangulação proposta por Donald Davidson coloca o diálogo  como a situação fundamentadora da objetividade  (como diz, “a fonte da verdade objetiva é a comunicação interpessoal” (In: “Três variedades de conhecimento.” Disponível em: http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News&file=article&sid=10 consultado em 28/08/2007)). Davidson acredita que na interação de dois seres humanos (supostamente racionais) com um determinado estímulo (sendo que ambos compartilham o conceito de verdade  e que aceitem como participantes de um mundo compartilhado), teríamos no diálogo o processo de constituição de uma triangulação que nos garantiria a possibilidade de verdade objetiva.

[4]  RORTY,R. Verdade e Progresso, p. IX.

[5] RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros, p.13-14.

[6] Idem p.14.

[7] RORTY, Richard. ”Os perigos da Sobre-Filosoficação”. Filosofia, Sociedade e Educação. Ano 1, n.1, 1997, pp. 59-67..

[8] RORTY, Richard.”The overphilosophication of Politcs”. Constellations. v.7., n.1, 2000

[9] RORTY,Richard. “Os perigos da Sobre-Filosoficação”, p. 59.

[10] RORTY, Richard. Para Realizar a América: O pensamento da esquerda no século XX na América. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 

[11]HABERMAS, J. Era das transições, p.184.

[12] Idem. p. 184.

[13] Acerca da defasagem da posição liberal de Rorty consultar: TOSI RODRIGUES, Alberto. “Liberalismo e antimarxismo: Richard Rorty em diálogo com Dewey e Castoriadis.” UPL, mar. 2004, vol.9, no.24, p.9-30.

[14]COSTA, Jurandir Freire “Eu sou do contra”: entrevista com Richard Rorty. Folha de São Paulo 02/10/97 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs121010.htm Consultado em 28/05/2007

[15] MOUFFE, Chantal. “Descontrucción, prgmatismo y la política de la democracia”. In: Desconstrucción y pragmatismo. Buenos Aires: Paidós, 2005, p.26.

[16] RORTY, Richard. “Náusea em Londres.” Folha de São Paulo 05/02/2006 Disponível em:  http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0502200616.htm Consultado em  03/03/2007

[17] MacEwan, Ian. SábadoCitado por RORTY, Richard. “Náusea em Londres”. Folha 05/02/2006 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0502200616.htm

[18] RORTY, Richard. “Liberais Fajutos”.  Revista Pronto On Line Disponível em: http://www.revistapronto.com.br/Noticia.asp?ID=302  Consultado em 31/08/2006

Marcos Carvalho Lopes

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