por Johan Hattingh
Se os países ricos podem se adaptar ao aumento das temperaturas “simplesmente ajustando o termostato” – usando a metáfora do sul-africano vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu – os países em desenvolvimento enfrentam desafios muito mais dramáticos. Onde a solidariedade internacional aparece em tudo isso? Uma reflexão sobre uma solidariedade compartilhada fundamentada por uma consciência ética.
No enfrentamento aos desafios da mudança climática, o mundo de hoje precisa, mais do que nunca, de uma estrutura ética e de uma prática eticamente fundamentada de solidariedade internacional.
Essa necessidade surge, em primeiro lugar, da dura realidade de que os desafios mundiais e as megatendências do nosso tempo – a mudança climática, a movimentação das pessoas, as tensões geopolíticas, a segurança, e o terrorismo internacional – tornam-se cada vez mais integrados, porém, nossas respostas a eles são cada vez mais fragmentadas. Essa foi a principal mensagem de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em seu discurso no Fórum Econômico Mundial(link is external), em Davos, em janeiro de 2019..
Em segundo lugar, e talvez mais importante, a necessidade de solidariedade internacional também provém das causas e dos efeitos da própria mudança climática. A mudança climática é o produto de um mundo que já está profundamente dividido e, em seus efeitos e impactos, intensifica e multiplica as divisões e as vulnerabilidades que já existem.
Isso também se aplica, em âmbito subnacional, aos grupos sociais e às comunidades marginalizados. Esses são fatos políticos e sociais inegáveis, vivenciados por muitos como injustiças. Os países e os grupos mais pobres, por exemplo, estão muito mais vulneráveis aos riscos e às fatalidades da mudança climática, embora tenham contribuído muito menos, se é que contribuíram, para suas causas.
Do mesmo modo, os países e os grupos mais pobres já precisam se adaptar à mudança climática, embora tenham menos recursos para fazê-lo. Os países e os grupos em desenvolvimento dependem, portanto, da assistência para essa adaptação, embora as partes mais ricas do mundo não considerem tal assistência muito urgente. Por ora, os ricos não são diretamente afetados pela mudança climática ou, se são, podem se adaptar com relativa facilidade.
Essa assimetria foi perfeitamente capturada por Desmond Tutu, antigo arcebispo da Cidade do Cabo, na África do Sul, quando a apontou no Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)(link is external), ao afirmar que “para a maioria das pessoas nos países ricos a adaptação tem sido, até ao momento, um processo relativamente indolor. Suavizado pelos sistemas de aquecimento e arrefecimento, eles podem adaptar-se a um clima severo, bastando dar um toque no termostato” (p.168). Contudo, para inúmeras mulheres em países em desenvolvimento, a adaptação implicaria percorrer distâncias cada vez maiores para buscar água potável para suas famílias.
O leque de possibilidades
A necessidade de nos unirmos e cooperarmos uns com os outros em resposta à mudança climática está claramente lá, mas o mundo está dividido, e as perspectivas de superação dessas divisões são muito fracas.
Então, existe algo que podemos fazer quanto a isso? Há três pontos óbvios que podemos fazer para começar: expandir nossa compreensão conceitual da noção de solidariedade; remover dois dos obstáculos – o desenvolvimento humano e o emprego – que são muitas vezes usados como desculpas para não tratar da mudança climática; e desvincular o diálogo sobre solidariedade dos fatos políticos e sociais e ligá-lo aos princípios éticos.
Vamos abordar os principais temas em linhas gerais, observando como as considerações éticas já começam a surgir no diálogo sobre o conceito de solidariedade.
Expandir e aprofundar a noção de solidariedade
Popularmente, a solidariedade tem sido compreendida em tempos recentes como um apelo por unidade em círculos sindicais ou políticos no combate à exploração do trabalho ou à opressão. Em ambos os contextos, a solidariedade como conceito está ligada à compaixão e oferece apoio, materialmente ou de outro modo, às vítimas de práticas laborais injustas ou de injustiça política.
Todas essas conotações também estão presentes quando a solidariedade é evocada como base para o combate à mudança climática: unidade, identificação, compaixão, apoio e assistência. Mas, nesse contexto, seu significado é transferido a públicos-alvo e a contextos mais amplos do que aqueles de movimentos operários ou lutas de libertação.
Na batalha contra a mudança climática, as vítimas são geralmente associadas àqueles que sofrem diretamente – e, com frequência, de forma muito dramática e visível – devido a condições meteorológicas extremas (por exemplo, enchentes, furacões, secas, incêndios). Nesses casos, normalmente, a ajuda humanitária, nos Estados ou internacionalmente, é mobilizada com bastante rapidez para atender às necessidades imediatas das vítimas.
Nossa motivação para tais atos de solidariedade é, em geral, referida como solidariedade humana, baseada na consideração por aqueles semelhantes que sofrem e compartilham o mesmo destino que nós – seu destino é nosso destino, e não podemos ignorá-lo. Com frequência, isso é capturado por metáforas da sociedade como um organismo, ou toda a humanidade como uma família.
A mudança climática, entretanto, nos confronta com a interdependência de nós humanos uns com os outros e com os ecossistemas para nossa sobrevivência e prosperidade. Ecossistemas esses incorporados na biosfera, na Terra e nos sistemas planetários, todos desdobrando-se em processos de evolução natural ao longo do tempo. Por conseguinte, as noções de solidariedade terrestre, solidariedade planetária, e solidariedade intergeracional podem ser consideradas para elaborar sobre a realidade de que toda vida na Terra faz parte, por assim dizer, da mesma comunidade – a comunidade da vida que compartilha unida o mesmo destino.
Desenvolvimento humano versus clima?
Na comunidade internacional, o combate à mudança climática é muitas vezes enquadrado como um dilema. Os Estados costumam dizer que não podem entrar nessa luta porque devem primeiro garantir que seus cidadãos tenham oportunidades de desenvolvimento para sair da pobreza. A mesma desculpa é usada com frequência a respeito de empregos: se o combate à mudança climática coloca os trabalhadores em desvantagem, então eles não podem participar.
A discussão sobre empregos foi precisamente a desculpa usada pelos Estados Unidos para justificar sua saída do Acordo de Paris (COP21). Contudo, a redução da pobreza e a manutenção de empregos são, de fato, tão diametricamente opostos às ações de combate à mudança climática? Esse foi exatamente o dilema abordado no Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, com o título sugestivo: Fighting climate change: Human solidarity in a divided world(link is external).(Combater as alterações climáticas: solidariedade humana num mundo dividido, em traduçã livre).
Neste relatório abrangente, duas mensagens principais são comunicadas. Primeiro, que a mudança climática, definitivamente, terá um efeito negativo sobre o desenvolvimento humano de longo prazo, tornando mais difícil concretizar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (quando o relatório foi redigido, eram chamados de Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) e, eventualmente, pode até mesmo reverter a maioria dos avanços no desenvolvimento humano alcançados até este momento da história. Esta é uma mensagem alarmante, e coloca um grande ponto de interrogação no argumento de que as respostas ao combate às mudanças climáticas podem ser colocadas em segundo plano, enquanto, em primeiro lugar, erradicamos a pobreza no mundo.
Em resposta à necessidade séria e urgentíssima de desenvolvimento humano e redução da pobreza, a segunda mensagem mais importante do Relatório 2007/2008 é que o desenvolvimento humano e o combate à mudança climática não são duas agendas separadas. São duas dimensões da mesma agenda que estão inseparavelmente ligadas e devem ser perseguidas juntamente.
Em termos de políticas e projetos, isso significa que as medidas adotadas em resposta à mudança climática devem, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento humano e ter um impacto benéfico em ambas as áreas. Em termos éticos, a solidariedade no combate à mudança climática significa de forma inversa que os pobres e os vulneráveis não podem ser deixados para trás. Seus interesses também devem ser tratados, de fato, como uma questão prioritária, de forma tão sagaz e inteligente que a agenda de desenvolvimento humano e a agenda de mudança climática se fundam plenamente.
O mesmo argumento se aplica no que se refere à manutenção de empregos. Se os trabalhadores são deixados para trás no combate à mudança climática, os imperativos éticos da solidariedade são traídos. Claramente, se os empregos forem perdidos no combate à mudança climática, então isso significa que não utilizamos nossas mentes de forma tão inteligente e sagaz quanto deveríamos.
Um debate ético
É por essa razão que devemos transferir o debate sobre solidariedade do campo dos fatos sociopolíticos para o dos princípios éticos. Nesse sentido, a Declaração sobre o Princípios Éticos em relação à Mudança Climática (2017) da UNESCO é um bom lugar para começar. A solidariedade apresenta-se na Declaração como um dos seis princípios éticos que devem orientar os tomadores de decisão em suas respostas à mudança climática.
No contexto de fatos sociais e políticos, o diálogo é geralmente sobre uma falta de solidariedade, ou a impossibilidade de alcançá-la – transformando isso em uma desculpa conveniente para nada fazer, em vez de agir contra a mudança climática. Na esfera ética, o diálogo desloca-se para a solidariedade como uma forma de consciência e uma fonte de inspiração para ação – ou seja, como um compromisso e um ponto de partida, em vez de um pré-requisito técnico para ação.
Dadas as exigências éticas da solidariedade no combate à mudança climática, grandes incertezas permanecem em um mundo cada vez mais dividido. Uma noção de solidariedade radicalmente ampliada pode não facilitar a cooperação internacional. Contudo, pode ser uma fonte inestimável de inspiração e motivação para nos emprenharmos juntos na gigantesca tarefa de enfrentar a mudança climática.
Johan Hattingh
Professor de filosofia na Universidade Stellenbosch, na África do Sul, Johan Hattingh (África do Sul) é especialista nas áreas de ética aplicada, ética ambiental e ética da mudança climática. Ele serviu dois mandatos como membro da Comissão Mundial para a Ética do Conhecimento Científico e Tecnológico (World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology – COMEST). Também foi presidente do Grupo de Especialistas Ad Hoc convocado pela UNESCO, em 2016, para redigir o primeiro esboço da Declaração de Princípios Éticos em relação à Mudança Climática
Publicado originalmente no Correio da Unesco em: https://pt.unesco.org/courier/2019-3/uma-questao-solidariedade-internacional