Nossos sonhos utópicos sejam talvez a expressão do nosso direito de sonhar com um mundo sem miseráveis
Gonçalo Armijos Palácios*
Uma das primeiras críticas de Aristóteles à teoria platônica da comunidade de mulheres e bens tem a ver com a questão da unidade. Com efeito, como tínhamos visto, Aristóteles mostra que uma cidade não pode ser comparada a uma família. Uma grande família, por exemplo, pode viver se dedicando à mesma atividade produtiva, já uma grande cidade, não. O que é a força para uma família, sua unidade, representaria o fim de uma cidade mais ou menos numerosa. Para ser autosuficiente, diz Aristóteles, uma cidade precisa de diversidade.
Com relação à propriedade privada, Aristóteles encontra sérios problemas. Ele diz: “a propriedade comum a maior número de donos recebe atenção menor; os homens cuidam mais de seus bens exclusivos, e menos do que eles possuem em comum…”[1] A crítica de Aristóteles não é desprovida de base pois a tese do interesse comum se sobrepondo ao particular pode ser verdadeira se aplicada a comunidades pequenas, mais ou menos isoladas ou primitivas. Pode ser aplicável a pequenas comunidades de pescadores ou caçadores, por exemplo Quando, porém, consideramos comunidades mais desenvolvidas economicamente e, portanto, mais complexas, a tese já não se sustenta. Dificilmente poderia se aplicar a comunidades como a ateniense da época de Platão e Aristóteles, para citar um caso, em que já existiam grupos econômicos claramente diferenciados (lavradores, comerciantes, artesãos) e um economia complexa, além de classes claramente diferenciadas: os livres e os escravos.
A comunidade familiar dos governantes, proposta por Platão na República, não se limita às mulheres, estende-se também aos filhos. Isso traz outra série de problemas, segundo Aristóteles, pois inicialmente só se saberia quem é a mãe, nunca o pai. E, com o passar do tempo, e pela maneira como a criação e a educação dos filhos dos governantes é pensada por Platão, inclusive as mães não saberiam quem são seus filhos. Isso levaria os adultos, diz Aristóteles, a olhar “cada um [dos meninos] com indiferença”. E conclui: “Mais ainda, cada um fala de seus concidadãos que estão prosperando ou fracassando como ‘meu filho’ somente no sentido da fração que cada um deles é do todo, significando ‘meu filho e filho de não sei quantos mais’”. (1262 a) Em comunidades muito pequenas isso pode não acarretar problemas. Com efeito, comunidades matriarcais se organizavam assim – com a diferença de que as mulheres sabiam quais eram seus filhos. Naquele tipo de sociedade não havia a possibilidade de todas as crianças serem separadas de suas mães – inclusive por ser necessário sabê-lo para evitar uniões entre consangüíneos. Esse, precisamente, é um problema no caso da proposta platônica: haveria sempre a possibilidade de tais uniões serem freqüentes. Aristóteles não deixa de ter razão, portanto, ao concluir: “na realidade, é melhor para uma criança ser hoje o sobrinho certo de alguém do que o filho nas circunstâncias descritas acima”.
Tínhamos visto que Platão escolheu como estratégia argumentativa o recurso à natureza das coisas. Note-se que o mesmo método é usado por Aristóteles com resultados exatamente opostos. Tanto um quanto o outro se fundamentam na natureza humana. Um, Platão, para afirmar, por exemplo, que quem nasce para governar deve governar; o outro, Aristóteles, para manter que a comunidade de filhos e a proibição da propriedade privada vão contra as inclinações humanas. Para fundamentar sua posição, este afirma: “há dois motivos para as pessoas se preocuparem com as coisas e gostarem delas: o sentimento de propriedade e o de afeição, e nenhum desses motivos pode subsistir entre os componentes de tal cidade [a proposta por Platão]”. (1262 b)
A propriedade privada e a história do pensamento ocidental
O problema da propriedade privada, como mostram os textos dos filósofos discutidos nesta série de dez artigos, acompanha o pensamento filosófico-político ocidental desde seu início. Para cada argumento que pretende demonstrar a necessidade de suprimi-la aparece outro que quer demonstrar sua inviabilidade.
A discussão não termina com a crítica aristotélica. Na Renascença e no início da Modernidade ela reaparece e cobra novos brios. Vimos isso na discussão da Utopia de Thomas More. Mas o problema foi também discutido por Maquiavel, na mesma época, e por Locke e Rousseau depois, nos séculos 17 e 18 – sem mencionar, claro, Marx, cujas propostas feitas desde a metade do século 19 atravessaram o século 20.
Voltando ao início do debate podemos perguntar: mas quem tem razão? A resposta vai depender do tipo de sociedade que queremos. Uma teoria não pode ser rejeitada ou admitida sem ser contrastada com os fatos. Paradoxalmente, a história parecer confirmar tanto os defensores da propriedade privada como seus detratores. O curioso é que, se pudéssemos pôr os filósofos para olharem alguns períodos recentes pelos quais o mundo passou, em muitos casos todos eles concordariam em rejeitar certos sistemas políticos. Penso que, por exemplo, os igualitaristas Platão e Marx condenariam o socialismo stalinista, assim como os defensores da propriedade privada, Aristóteles e Locke, condenariam a acumulação irracional de riqueza que vemos nos países dependentes, como os da América Latina e da África.
De qualquer forma, as discussões continuarão enquanto haja miséria, enquanto uns se abastem com superfluidades e outros não tenham o que comer nem um teto que os abrigue para dormir.
[1] Aristóteles, Política, Livro II, Cap. I, 1262 a.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |