Gonçalo Armijos Palácios
Não deixa de me incomodar a expressão “ética na política”. Fala-se em “ética na política” como se houvesse um conjunto de princípios que verdadeiramente regulasse ou orientasse o agir daqueles que estão no poder e como se tais princípios fossem essencialmente corretos. Ser franco, por exemplo, não é mostra de que se é ético? Não nos obrigam a dizer a verdade desde crianças nos ensinando que isso faz parte de uma atitude ética? Somos, assim, levados a respeitar as pessoas que são sinceras pois isso será, entre outras coisas, sinal de honestidade e bom caráter. Ora, por ser franco — franco demais — um colaborador de um governo recente caiu em desgraça. Mas ele simplesmente disse o que pensava ser verdadeiro: “o que convém, a gente mostra, o que não convém, a gente esconde!” Azar para ele que a franqueza foi testemunhada não só pelo seu interlocutor como por pessoas que assistiam ao programa e aquela declaração, sem seu conhecimento, estava sendo transmitida. (Na verdade, tal declaração foi feita num intervalo do programa, quando entrevistado e entrevistador achavam que estavam fora do ar, mas não estavam…)
“Há mentiras e há mentiras”, reza o dito popular. Assim, podemos manter que há também éticas e éticas. Sem a menor dúvida, a ética do poder é outra, contém valores que não podem ser pensados nos termos em que pensamos os valores que ensinamos a crianças. O Príncipe de Maquiavel não deixa de causar espanto até hoje por manter que, por exemplo, o governante não deve manter a palavra dada se isso lhe for prejudicial. Os valores do poder, sem dúvida, são outros. Mas devem ser tão distintos dos valores pelos quais o comum dos mortais se orienta?
Os termos “ética”, “ético” vêm do grego ethos — costume, hábito. E nossos termos latinos guardam um dos sentidos do grego que nos sugere “força”. Falamos em “força do costume”, “força do hábito”. Pela força do contínuo fazer os homens adquirem, em sociedade, certos hábitos. Tais hábitos são, uns, considerados bons para o convívio em comunidade, já outros, considerados nocivos.
Pode, aqui, aparecer um conflito; aquele entre o que é bom para o indivíduo mas não é bom para a sociedade, e o que é ruim para o indivíduo mas bom para a sociedade. O mandamento “Não desejarás a mulher do próximo”, por exemplo, pode ser ruim para o indivíduo e bom para a sociedade. Mas desejar não é simplesmente fruto do hábito, é um impulso natural. Como querer não desejar a mulher do próximo? Como sinceramente não fazê-lo? Podemos com todas as forças do nosso ser querer não desejar a mulher do próximo, sem consegui-lo. (Há uma passagem comovedora numa das obras de Dostoiévski: aquela em que um eremita se corta o dedo de uma mão para não desejar uma mulher que foi procurá-lo com o único desejo de seduzi-lo). Afastando-nos do plano literário e religioso, e voltando ao político, podemos dizer que, enquanto desejo, para a sociedade tanto faz que homens desejem as mulheres dos próximos e as mulheres desejem os homens das próximas. Cada um tem direito de desejar quem for. O problema, socialmente, está em agir em conformidade com o desejo pois tal ação pode ter conseqüências que a sociedade, compreensivelmente, não tolera.
Mas o fato é que, por mais que existam imperativos éticos para que os cônjuges não traiam suas caras metades, as traições ocorrem — mesmo sendo punidas pelas autoridades civis. Mas quais são as conseqüências sociais das traições maritais? São mesmo muito graves? Caso elas sejam descobertas, é possível que tragam conseqüências graves para os envolvidos. Caso elas não sejam descobertas, é possível que nada de ruim ocorra, socialmente falando. Dito isso, passemos ao que realmente me interessa discutir.
A sonegação de impostos, por exemplo, descoberta ou não, traz grandes prejuízos ao Estado e, obviamente, aos cidadãos em geral. Se é verdade que os seres humanos são ambiciosos e egoístas, então todos teremos a tendência a sonegar impostos, favorecendo-nos individualmente em curto prazo, mas prejudicando os outros e a nós mesmos no longo prazo.
Assim, como há o natural desejo de o homem desejar a mulher do próximo e a mulher, por sua vez, o homem da próxima — e dos dois, homem e mulher, desejarem os que também não estão tão próximos assim —, podemos dizer que, caso sejamos por natureza ambiciosos e egoístas, haverá a tendência a querermos nos apropriar das coisas — não só de outras pessoas — em alguma medida, maior ou menor, dependendo da nossa natureza individual e das expectativas que nos habituamos a ter desde a mais tenra infância.
Parece, então, que estamos fadados a desejar ter não só os corpos dos outros — para usar a expressão de Hobbes — mas coisas, muitas coisas — para alguns, quanto mais, melhor.
Este problema da apropriação foi tratado desde a Antigüidade. Não é por acaso que Platão mantém na sua República que os governantes (ou “guardiães” como os chama), para não prejudicarem o Estado, devem possuir tudo em comum, inclusive mulheres. Todos os guardiães possuindo todas as guardiãs, nenhum deles possuiria uma em particular. Mas, o que era mais importante, ninguém, guardião ou guardiã, teria posses — nem sequer era permitido que tocassem em ouro ou prata, mesmo que o ouro não fosse deles.
Os problemas que a existência da propriedade privada pode trazer para o Estado são novamente tratados por Thomas More, na obra que estamos refletindo nas últimas semanas, a Utopia. Perto do final do Livro I, diz Rafael Hitlodeu, personagem principal do diálogo:
Para falar com toda a sinceridade, meu caro More, não vejo como se possa pensar em justiça ou prosperidade verdadeiras enquanto existir a propriedade privada, e todas as coisas tiverem no dinheiro o seu supremo parâmetro — a menos que considereis justo que as melhores condições de vida sejam desfrutadas pelos piores dentre os homens, ou que se possa chamar de próspero um país no qual toda a riqueza esteja nas mãos de uma minoria — que mesmo assim não vive totalmente feliz, enquanto todos os demais se arrastam numa vida nada mais que miserável.[1]
Estão falando da Utopia deles ou do Brasil nosso? Decida por si mesmo…
[1] More, Thomas, Utopia, São Paulo : Martins Fontes, 1999, p. 65
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |