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Utopia IX: De como Aristóteles criticou Platão

Gonçalo Armijos Palácios

Os trechos em que Aristóteles critica Platão mostram que a Filosofia não está feita de verdades eternas, mas de eternos debates

            No artigo anterior recriamos o argumento platônico da igualdade entre mulheres e homens, argumento que o levou à conclusão de que:

… não há na administração da cidade nenhuma ocupação … própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante entre ambos os seres… (República, 455 d)[1]

            Queira o leitor refletir sobre a ousadia de tal conclusão considerando-se que foi proposta 2400 anos atrás numa sociedade em que as mulheres nem podiam votar – não digamos ocupar cargos públicos – e só saíam às ruas para participar de cerimônias religiosas. Na rua só circulavam as concubinas, as prostitutas, as escravas e as mulheres que, por ser pobres (viúvas ou sem família), não tinham ninguém para fazer as coisas para elas.

            Se tantos consideram ainda hoje inadmissível que se afirme a igualdade entre homens e mulheres, imagine-se, então, naquela época. Platão não podia ignorar quão chocantes suas propostas eram e uma das estratégias para sustentar suas teses foi a de apelar à natureza das coisas. Assim, o argumento poderia ser resumido deste modo: se quem nasce com a habilidade natural para caçar deve dedicar-se à caça e quem nasce apto para pescar, que pesque, obviamente, quem nasce naturalmente dotado para administrar a cidade, que governe. Ora, desde que nada há na mulher que a faça diferente ou inferior ao homem, aqueles que nascem naturalmente inclinados para governar, homens e mulheres, devem governar. Devem, pois, governar juntos, formando uma grande família que compartilharia tudo, desde a habitação aos filhos – filhos que seriam comuns por serem “de todos e de todas”.

            A mesma estratégia argumentativa levou Platão, como vimos num artigo anterior, a proibir aos governantes de sua cidade ter propriedades. Pois se, por natureza, os governantes têm a capacidade para governar, e cada um nasce com determinada habilidade e não outra, eles nasceram para zelar pelo interessa e o bem públicos, não, como os negociantes, para trabalhar em prol dos seus próprios interesses.

            Em suma, Platão desenvolve um argumento baseado na natureza das coisas e tenta mostrar que as leis da cidade deveriam se adaptar a ela. Reconhece, porém, que a aparente inviabilidade de sua proposta se deve ao fato de as cidades terem se organizado contra a natureza das coisas: “Pois não é impraticável nem um mero desejo legislar como o fizemos desde que fizemos as leis de acordo à natureza; mas são as leis hoje existentes que são contra a natureza.” (456 b-c) E é o fato de os costumes e as leis terem ido contra a natureza das coisas que torna seu argumento tão inadmissível para os membros das sociedades baseadas na ambição e no lucro privados. Em algumas sociedades, inclusive hoje, é ‘natural’ a prática da circuncisão feminina, apedrejar até a morte as mulheres adúlteras ou, como na China, deixar as recém-nascidas morrer de fome ou de doença simplesmente por não terem nascido meninos. São práticas como essas, sancionadas pelo costume e as leis, que realmente são contra a natureza e cuja eliminação poderia ser considerada, nesses lugares, utópica e inadmissível.

            Portanto, é o fato de os governantes terem tudo em comum, habitação, filhos, além de uma mesma tarefa, governar a cidade, que os torna uma grande unidade, um grupo homogêneo cujo único interesse é o bem público. Mas tal interesse pelo bem público só é possível pela ausência, naquele grupo, das condições que levam à cisão e ao aparecimento de conflitos de interesse: a propriedade privada. Esse, em resumo, é o espírito do argumento platônico.

Crítica de Aristóteles

            Chegamos por fim ao que tinha prometido, as críticas de Aristóteles à teoria de Platão da propriedade privada e da comunidade de mulheres e filhos. Na sua Política, Aristóteles afirma:

Cumpre-nos adotar como ponto de partida o ponto de partida natural para investigações como esta: devem todos os cidadãos ter a propriedade de tudo em comum, ou nada devem ter em comum, ou algumas coisas devem ser propriedade de todos e outras não?[2]

            Perceba-se que a discussão sobre a conveniência da existência da propriedade não é recente. Ela acompanha o Ocidente desde a Antigüidade. No início do Livro II da Política, Aristóteles oferece “estudar as constituições atualmente adotadas por algumas das cidades tidas como bem governadas, e igualmente quaisquer outras propostas por certos filósofos e consideradas dignas de atenção.” Diz Aristóteles:

Por exemplo, hipoteticamente os cidadãos podem ter os filhos, as mulheres e os bens em comum, como na República de Platão, na qual Sócrates diz que deve haver comunidade de filhos, mulheres e bens. Qual é, então, o melhor sistema? O adotado atualmente ou a legislação proposta na República?

A partir daí, Aristóteles passa a criticar as propostas de Platão. Sugiro a leitura desses trechos que mostram a maestria e a contundência da argumentação aristotélica.

            Há muitas dificuldades, diz, na teoria da comunidade de mulheres “e o princípio no qual Sócrates baseia a necessidade de tal instituição não é firmado por seus argumentos”. (1261 a, ff) (Lembremos que Sócrates é mencionado por ser o personagem que Platão escolhe na maioria das suas obras para defender suas próprias teorias.) Como Aristóteles mostra, o argumento platônico não tem uma sólida base argumentativa, o que representa sua primeira dificuldade. Além dessa, Aristóteles apresenta outra não menos grave e que se relaciona com o assunto que motivou esta série de artigos:

Ademais – continua – o esquema, como um meio para atingir o fim por ele atribuído à cidade, é literalmente impraticável, e ele não diz em parte alguma como devemos interpretá-lo. Refiro-me ao ideal da mais completa unidade possível de toda a cidade, que é a hipótese adotada por Sócrates.

            Com efeito, Platão afirma na República que o que destrói a cidade é a divisão de interesses que se desenvolve no seu seio. Tal unidade, pensava Platão, só poderia ser alcançada se todos – ou a maioria – tivessem os mesmos interesses, o que só se daria se os cidadãos concordassem em dizer “meu” e “não meu” às mesmas coisas. Diz Platão na República (referindo-se ao individualismo dos sentimentos que dividem os cidadãos):

Ora, esse fato não provém de os habitantes da cidade não estarem de acordo em aplicar expressões como estas ‘meu’ e ‘não meu’, e do mesmo modo quanto ao que lhes é estranho? (462 c)

Platão supõe – equivocadamente segundo seu discípulo – que a cidade deve tender à unidade. Aristóteles mostra por que esse pressuposto é um grave erro:

É claro, antes de mais nada, que se a imposição da unificação for além de certo ponto, já não haveria uma cidade, pois a cidade é por natureza uma pluralidade; se sua unificação avançar demasiadamente, a cidade será reduzida a uma família … logo, mesmo que qualquer legislador fosse capaz de unificar a cidade, ele não deverá fazê-lo, pois com isto destruiria a própria cidade.” (!) (1261 b)

Antes de continuarmos com a análise da crítica de Aristóteles, permita-se-me observar o seguinte. Os trechos que acabo de reproduzir desses dois grandes filósofos dizem muito sobre o que é a filosofia. A filosofia não é, como muitos acreditam e esperam, um pacífico templo ou santuário em cujas paredes estão pendurados, como quadros, verdades eternas e intocáveis. A filosofia é, pelo contrário, um mar de dificuldades contra cujas tempestades os filósofos se debatem, debatendo também entre eles, sobre qual o modo correto de enfrentar os problemas e quais os caminhos para resolver os desafios. Dificilmente dois filósofos concordam sobre quais são (ou onde estão) os verdadeiros problemas e quais as soluções. Mais sobre este duelo entre Platão e Aristóteles na próxima semana.


[1] Platão, República. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 1993.

[2] Aristóteles, Política, Livro II, Cap. I, 1261 a.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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