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Vitórias e Derrotas são reflexos de luta

ensaio de Severino Ngoenha, Samuel Ngale, Augusto Hunguana

“Moçambicanos, moçambicanas, operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações e das concessões, trabalhadores das minas, dos caminhos de ferro, dos portos e das fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens patriotas. Em vosso nome a Frelimo proclama hoje solenemente a insurreição geral armada do povo Moçambicano contra o colonialismo português, para a conquista da independência total e completa de Moçambique”.

Este discurso, enunciativo e fundacionista, pronunciado por Eduardo Mondlane a 25 de Setembro de 1964, foi retomado, ipsis verbis por  Samora Machel a 25 de junho 1975, com a substantiva substituição do Epíteto (do filósofo estoico Epíteto) insurreição armada pelo flamipotente, independência de Moçambique.

Entre a insurreição armada e a proclamação da independência escoaram dez longos e lancinantes anos -feitos de batalhas ganhas e perdidas, de sangue e mortes (entre as quais do próprio Mondlane) -, mas com um fim vitorioso/glorioso. Da proclamação da independência advieram – muitos e poucos – titubeantes quarenta e nove anos, destituídos de toda e qualquer uniformidade.

Quarenta e nove anos na vida de um indivíduo é muita fruta, para um casal são vésperas das bodas de ouro. Porém, na vida de uma nação é muita pouco tempo. Portugal reclama o seu nascimento com o tratado de Zamora em 1143, a França reivindica o seu nascimento a Clóvis no século VI, para não falar da Itália – unificada no século XIX –  mas fazendo sempre referência a Roma -, da Grécia que se pensa herdeira de Péricles ou do Egipto que se reivindica dos faraós.

Contudo, por quanto tenham sido árduos, os dez anos de luta pela independência; com as suas feridas, dores, fragmentações, lutos (…), foram só o programa fraco – o que o filósofo Isaiah Berlin chama de liberdade negativa –  porque o programa forte – a liberdade positiva –  engodou apenas com a nossa primeira -atabalhoada- experiência de autopoesis (autogoverno) cujo telos (objectivo e finalidade), era levar o povo a paz, ao progresso e a felicidade (Amílcar Cabral).

Franz Fanon, no Les Damnés de la Terre (1961), tenta antever os possíveis desafios para as recém conquistadas independências (da primeira vaga), em alguns países africanos. (Involuntário) Profeta de mau auguro, ele previu que a elite local caísse na armadilha de se tornar marionete dos antigos colonos (que Hegel chama mestres), que eles acabavam de derrubar. Pior, que a intelligentsia africana se alienasse e, por isso, incapaz de ajudar a encontrar soluções para os problemas emergentes (…).

O Presidente de transição do Burkina Faso, o intrépido e pan-africanista Ibrahim Traoré, confirma a preanuncio de Fanon, acusando a elite da velha guarda e as lideranças atuais, de se limitarem a fazer peregrinações miserabilistas, na  mendicidade de um óbulo,  enquanto o continente transborda de recursos naturais e de jovens, que fazem a fortuna de outros.

Na sua primeira visita a Moçambique independente, Julius Nyerere advertiu que “estávamos no mar alto, estávamos independentes, mas não tínhamos ainda alcançado os objetivos pelos quais o povo lutou. O mar alto tem que ser atravessado, e a medida que cada passo for dado, surgiriam dificuldades e duvidas por parte daqueles que não querem que a África se desenvolva em liberdade (…)”.

As nossas adversidades – aporeticas – começaram já em 1976 com a invasão de Chicualacuala pela força aérea rodesiana e continuaram, durante dezasseis -longos e dramáticos- anos, que desestruturaram o país e, sobretudo, desnortearam o nosso sentido de pertença, de valores e de prioridades. Os dolarcraticos cidadãos que a segunda república pariu, longe dos valores que estavam na génese militante da moçambicanidade, se parecem com as elites pecuniocratas  descritas por Fanon que, escravas do dinheiro e marionetes dos poderes neocoloniais, hipotecam as nossas liberdades e nos empurram a (re) submissão, da qual nos libertamos com dor e sangue.

Ababelados e completamente alinhados com os contra-valores que estiveram na origem da nossa opressão, desvirtuamos a política e transformamos o seu ministerium (serviço) em função privilegiada para a cleptocracia/ladocracia elevada a virtude teologal.  Abdicamos da sacralidade da autopoesis e, enfeudados aos opressores, confiamos a governação das nossas economias aos peritos do FMI e do BM, pagos para defender os interesses dos seus mandatários e acionistas, aqueles mesmos contra os quais lutamos para obter a independência.

A queda vertiginosa  da soberania em curso, resulta de uma imbricada cumplicidade entre interesses  internacionais (países e multinacionais) e de moçambicanos cooptados, o que o sociólogo peruano, Aníbal Quijano, chama de colonialidade. Isso inclui as maneiras através das quais os líderes actuais replicam os sistemas de coerção e opressão, que moldaram o domínio colonial.

O que é que causa a crise do ideal de uma moçambicanidade, nascido de um projeto tão promissor? É hoje uma verdade a la Palisse que as discrepâncias económicas, tecnológicas e militares entre o Ocidente e nós, são  as maiores que a história jamais registou; maiores do que no século XV quando se institucionalizou a escravatura, maiores do que no século XIX quando se impôs o colonialismo. Porém, o factor mais importante para as trevas e o abismo em que nos encanelamos, tem a ver com a trivialização do ideal de liberdade, que só pode ser de um(s), se for de todos (John Stuart Mill). O solipsismo, a satisfação do enriquecimento de poucos em detrimento da maioria, a atitude complacente em relação à pobreza flagrante e ao fosso cada vez maior entre as elites e as massas, é um sintoma claro e grave da perda do sentido do comum (communia).

Já Maquiavel (o pai do pensamento político moderno) chamava atenção para o perigo que a discrepância entre a ética e a prática política, entre os valores comuns (partilhados) e as contrarrazões que motivam a elite política, podem provocar como insatisfação generalizada, como a alienação, a crise de identidade o que periga, inexoravelmente, toda e qualquer soberania nacional.

Hoje este perigo é acrescido pelos ventos do retorno do supremacismo sociobiológico, de um ultra liberalismo agressivo e desenvergonhado, da aceleração da corrida na busca de recursos – e mercados -, com o perigo de se usarem – como outrora – os nossos países e continente como  terreno de batalha, ou até de nos condenarem – no nome das mudanças climáticas -,  em reservas (Retorno do Bom Selvagem) de oxigénio e biodiversidade.

A encruzilhada ou dilema em que estamos mergulhados é simples na sua dramaticidade: morrer como nação ou com élan de orgulho e pragmatismo, mudarmos radicalmente de postura; inçarmo-nos a altura do tempo e escrever a  história ou sucumbi-la!

Hoje somos um país falhado, falido, assistido, desestruturado, desunido e, pior que tudo, com uma elite política – que se confunde com a elite económica- desconectada e indiferente a realidade do povo. Ministros (lunáticos) que não sabem o que é um my love, ministros em cujas estatísticas e relatórios cabem três refeições por dia para cada moçambicano, ministros que (nos seus sonhos freudianos) conferem três automóveis a cada família.  O imbróglio do último congresso da Renamo ou as vergonhosas eleições internas da Frelimo para a Assembleia da República e para governadores provinciais demonstram ulteriormente, se ainda fosse necessário, a dimensão mercantilista e pecuniocratica  da nossa política.

Onde nos perdemos (Jorge Rebelo)?  O discurso de Nyerere em 1975,  chamava a atenção para um colonialismo que nunca se rendeu, para o perigo da alienação de alguns que não hesitam em desviar/despojar a luta e o trabalho de todos  para seu próprio benefício (…).

Talvez não tenha sido, in primis, na supremacia dos inveterados exploradores que (nos) perdemos, mas numa concupiscência intrínseca, feita de ambições desmedidas de egos e de falácias de credos e doutrinas absolutistas, que se acreditava poderem prescindir do diálogo, de compromissos e de consensos; tudo que faz uma nação (Ernest Renan). Se queremos ter alguma chance para que os quarenta e nove anos tenham sido um epifenómeno, uma derrota episódica nunca guerra que somos condenados a vencer, para não soçobrarmos de novo numa dominação  – sob novas formas, mais perversas e mais sofisticadas -, temos que desatar, com urgência, os nós que nos estrangulam e,

com os fios de prumo, costurar novos tecidos axiologicos, para repartir para uma nova forma de nacionalismo, mais em fase com os desafios do tempo presente. Transitar de uma liberdade (nacionalismo) de território e de bandeira – que, sem fôlego, tornou-se um flatus vocis -, e evoluir  em direção a uma liberdade (nacionalismo económico e social) que dá primazia e assume com responsabilidade, as necessidades do povo e da nação (Das Independências as Liberdades). Não há independência, autonomia, soberania sem capacidade de responder ao que a liberdade implica como responsabilidade (B. Washington). Por isso, não nos podemos cingir a considerar as forças (endógenas e exógenas) destruidoras e desmoralizadoras que decompõe a nossa unidade e nos levam ao declínio, é imperioso e urgente traçarmos um programa de renovação cultural,  trabalharmos para reencontrar de novo a mística e o  espírito (Bildung) da nação. Onde haurir as forças, os modelos e exemplos suscetíveis de nos ajudar a remoçambicanizar o sentido dos valores  (axiologia) e das prioridades?

Natura non facit saltus. A identidade de uma nação não é um dado imediato, mas resulta da construção de uma memória colectiva. A geração da independência (a nacionalista e anti colonialista) – forjada na luta contra a dominação – pode ser o lugar simbólico da memória. Ela permite repensar numa consciência histórica fundada sobre uma mística nacional, única capaz de refundar um sentido crítico em relação a penumbra do presente; recriar a unidade de sentido, criar um projecto de restauração. Sim, de restauração, porque precisamos com coragem, vontade, força e determinação retomar o caminho da emancipação e da moçambicanidade (alma colectiva e sentido de pertença). A figura histórica de Mondlane deveria nos mobilizar e motivar, a todos, a retomarmos o caminho da Luta (r) por Moçambique. A voz carismática de Machel deveria continuar a perturbar o nosso sono de justos, com a sua insistência sobre a necessidade da unidade (entre todos), do trabalho (contar com as próprias forças), da vigilância (em primeiro lugar sobre nós próprios); num sentido renovado e actual.

O caminho da história não é linear (J.B. Vico), mas também não propõe nada ao inverso; ele propõe sempre algo de novo, mesmo nas configurações reconhecíveis. Por isso, não se pode tratar de uma luta – anacrónica e passadista – da Frelimo contra a Renamo, dos enriquecidos contra os empobrecidos, dos jovens contra os velhos, do Sul contra o norte. O desfecho dessas lutas intestinais e fragmentárias, teriam um desfecho óbvio: a derrota de todos.

Para que qualquer visão (política) de futuro seja implementada com sucesso, é necessário que ela compreenda e imponha uma forte ligação entre as diferentes elites e entre estas com as massas; que haja um alinhamento dos valores éticos das elites eos desejos, as necessidades, os anseios dos

mais simples e humildes. Os cidadãos – para se engajarem com a polis e com os seus desafios – precisam de ter a certeza de que os seus líderes estão em sintonia e empatia com a sua realidade, e que estão, mordicus, semper devotos a causa da colectividade.

Os aniversários da independência – os 25 de junho de cada ano – deveriam ser momentos de avaliação crítica de como estamos como país; de renovação do nosso compromisso com Moçambique. A nossa única e perifrástica chance de futuro, exige que reabilitemos a mística da nação, que juntemos as nossas forças (como reza o nosso hino nacional); prioritariamente entre moçambicanos, mas também em solidariedade com todos aqueles que na região, no continente e no mundo, se batem pela causa liberdade.

Vitórias e derrotas são reflexo de luta. Esta feliz expressão de Samora Machel nos ensina que as batalhas se ganham e se perdem, mas quando a questão é a liberdade, nunca podemos-nos permitir de abdicar da luta!

Severino Ngoenha, Samuel Ngale, Augusto Hunguana

Marcos Carvalho Lopes

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