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Wittgenstein lendo (e criticando) a si próprio

A linguagem é muito mais do que chamar ‘pão’ ao pão e ‘vinho’ ao vinho

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            As Investigações filosóficas de Wittgenstein mostram, de maneira notável, a não linearidade e a falta de continuidade da filosofia. Mostram, com efeito, que devemos falar de teorias filosóficas e não, propriamente, de filosofia — isto é, de a filosofia, una, contínua, cumulativa, unidirecional etc.

            Depois de escrever e publicar o Tractatus, Wittgenstein, por acreditar que tinha resolvido todos os problemas da filosofia — como vimos — passou a se dedicar a outras coisas (de jardineiro a arquiteto, passando por professor numa escola para crianças). Volta a suas reflexões filosóficas somente em 1929 e este ano marca o início de um período em que se afasta completamente das ideias centrais do Tractatus. O período que vai de 1930 a 1945, ano em que pensava publicar as Investigações filosóficas, compreende os “últimos quinze anos” mencionados no Prefácio dessa última obra. É, precisamente, o período em que, por discussões com outros filósofos, assim como por críticas recebidas, abandona as ideias que defendera no Tractatus.

            No início do Prefácio das Investigações, Wittgenstein diz que “Os pensamentos que publico no que segue são o resultado de investigações filosóficas que têm me ocupado os últimos dezesseis anos”.[1] Interessa o que diz alguns parágrafos depois:

Quatro anos atrás tive ocasião de reler meu primeiro livro (o Tractatus Logico-Philosophicus) e de explicar suas ideias a alguém. Subitamente me pareceu que deveria publicar aqueles velhos pensamentos e os novos juntos:que os últimos só poderiam ser vistos sob a ótica correta (…) contra o pano de fundo do meu velho modo de pensar. (p. vi)

            Na edição alemã, de fato, o filósofo austríaco diz que queria publicá-los num texto só, lado a lado. Já ouvi dizer que não há grande diferença entre o Tractatus e as Investigações. Mas, pelas declarações do próprio Wittgenstein, os dois textos não só diferem como se opõem nas suas teses centrais. Não pode ser mais claro afirmar que há um velho e um novo modo de pensar. Mesmo assim, o filósofo é mais explícito ainda no parágrafo seguinte: “Pois desde que comecei a me ocupar com a filosofia de novo, há quinze anos, tenho sido forçado a reconhecer graves erros no que escrevi naquele primeiro livro.”

            Erros graves que abandonou, segundo reconhece, pelas críticas feitas por Frank Ramsey e por P. Sraffa. As Investigações são escritas na forma de parágrafos e grupos de parágrafos numerados. No primeiro parágrafo, Wittgenstein reproduz um trecho de Agostinho, no qual o filósofo afirma que aprendemos a linguagem por atos ostensivos, ou seja, alguém apontava para ele um objeto e dizia seu nome. Essa concepção filosófica da linguagem, diz Wittgenstein, descansa numa ideia “primitiva” de como a linguagem funciona. A ideia de que a linguagem consiste essencialmente dos nomes dados às coisas. Essa, justamente, é a ideia de linguagem do Tractatus, ideia que as Investigações se propunham combater.

            Um dos problemas com essa visão da linguagem é que se pressupõe que ela consiste, fundamentalmente, de substantivos. Diz Wittgenstein:

Agostinho não diz nada sobre haver alguma diferença entre classes de palavras. Se descrevemos o aprendizado da linguagem dessa maneira, acredito, estamos pensando primeiramente em substantivos como “mesa”, “cadeira”, “pão”, e nos nomes das pessoas, e só secundariamente nos nomes de certas ações e propriedades; e das demais classes de palavras como algo que toma conta de si por si mesmo.(Par.2)

            A concepção de linguagem pressuposta por Agostinho é, de fato, a que está presente no Tractatus. Naquela obra, Wittgenstein pensava que a essência das palavras era a nomeação, isto é, a denotação. Nela, partia-se de fatos básicos (um cão latindo, por exemplo) chamados “atômicos”, que eram referidos por proposições simples (“o cão late”). Já fatos complexos (uma mãe alimentando um menino que brinca com seu cabelo e olha para o irmão ao lado), seriam referidos por proposições mais complexas (“a mãe alimenta o filho quem, enquanto olha para o irmão que está ao seu lado, brinca com seu cabelo”). Agostinho deixa de fora termos sem os quais não nos poderíamos comunicar como o fazemos e que não possuem significado referencial,como ‘porém’, ‘não obstante’, ‘ainda’, ‘todavia’, ‘sutil’ etc.

            Isso, no entanto, não foi só esquecido por Agostinho como tampouco recebeu devida atenção por parte do jovem autor do Tractatus. Para Agostinho e o jovem filósofo, a linguagem consistia fundamentalmente em nomear coisas e referir fatos.Para o último Wittgenstein, pelo contrário, a linguagem não só não se reduz a atos denotativos, referenciais, como vai além de qualquer tentativa de definição exata. Ela, aliás, resulta tão indefinível como aquela outra atividade tão própria de nós e outros mamíferos: brincar. Que de fato é jogar? Como poderíamos definir o que um jogo? É possível dar uma definição que consiga incluir jogo de cartas, xadrez, brincar de bola e brincar com um bebê que já começa a se comunicar e desfruta de certas brincadeiras?


[1] Wittgenstein, L. Philosophical investigations. (Trad. De G. E. M. Anscombe) Nova Iorque : Macmillan, 1968, p. v.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. De facto. Wittgenstein afirma que o mais importante não são os nomes, mas o que os nomes deverão representar na mente do sujeito. Por essa razão, a vida dele é dividida em três etapas: O Wittgenstein I, Wittgenstein II e Wittgenstein da fase da maturação.

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