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A Arca de Noé

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage do Amaral e Carlos Carvalho

Reza a Bíblia (o que encontra eco em outras tradições antigas de pensamento) que o Deus vetero-testamentário (Iavé, Eloim) excedido pelo comportamento do homem, que de sapiens só tinha o nome, decidiu que era tempo de castigar a espécie. Para fazê-lo, não escolheu nenhum vírus, mas uma punição que vinha da força das águas: o dilúvio. Mas como se lembrou que era Deus e entre as suas prerrogativas metafísicas havia a compaixão, viu-se obrigado a salvar, como para um jardim zoológico, alguns Noés  humanos  e casais de outras espécies, entre os pouquíssimos que, em termos de inocência, ainda recordavam Adão e Eva (antes da maça)  do jardim do Éden, aqueles que, contrariando as teorias de Darwin, Lamark e Spalazzani não tinham cedido ao evolucionismo e, resistindo à ciência contemporânea, não sucumbiram às transformações genéticas e inserções nano tecnológicas do pós-humano.

Os escritores bíblicos do Antigo Testamento, que puseram tanta raiva na acção desse deus intolerante e vingativo, ainda não conheciam os foguetões de Elon Musk, da NASA, dos russos e dos chineses (que os podiam levar para Marte); nem tinham ouvido falar dos Boeings e dos Airbus; mesmo os transportes que flutuam nas águas, eles não conheciam: os navios negreiros, o  Titanic, os packboats, os porta-aviões; por isso, coitados, limitaram a própria imaginação a uma arca, pequena, perigosa e turbulenta, sem sequer o pascaliano porto seguro, onde atracar.

A ideia de uma raça pura  (apesar dos desmentidos da biologia e dos estudos sobre o ADN) sempre atormentou os homens. Assim,  antes das buscas nos mares  dos tesouros de  navios naufragados, ideólogos racialistas, eugenistas, supremacistas  procuraram o lugar onde atracou a arca, para justificar os seus preconceitos, criar  hierarquias raciais e políticas arianas.

Por isso, sem surpresa, o Covid 19 foi visto por muitos, não como a fúria de Deus (vetero- testamentário, ou da teologia da punição da Escolástica da Idade Média) mas como corolário da ascendência divina do homem (Harari) que, ao mesmo tempo que busca a imortalidade para alguns poucos, parece também tentado pela eliminação evolucionista dos que lhe aparecem, darwianamente, não seleccionáveis para o progresso.

Por isso, as previsões no início da Covid, que previam, enfim, a dizimação dos descendentes do maldito Caim – para os criacionistas – e dos descartados da selecção natural – para os evolucionistas – soava como um esconjuro ou como uma façanha científica. Afinal a ciência (a manipulação genética, até entre espécies de reinos diferentes), não faz mais do que acelerar processos que, em todo o caso, com o tempo, se realizariam na natureza…

A angústia de muitos racialistas amadores (Filomeno Lopes),  que se desesperavam face à teimosia e renitência dos africanos (e latino-americanos, asiáticos) que,  temerários, temiam  permanecer na  barca dos sobreviventes do dilúvio da Covid-19 – ao mesmo tempo que morriam os europeus – soava como uma apostasia  e prova de que alguma coisa na mecânica sociobiológica e eugenista, tinha falhado. Mas os mais sabidos (os pós-homens em acto), sabiam que o vírus acabaria por atingir o seu alvo e só podia ser parado pelo antídoto das vacinas (verdadeiro Kairos), que só as bigfarmas do ocidente sabiam produzir. Os africanos não perdiam em esperar, a sua pobreza endémica e ignorância científica impedi-los-ia de comprar ou fabricar a vacina (mesmo que se retirassem as patentes), o que acabaria  por condená-los. Assim, diferentemente da escravatura, do colonialismo, dos ideias do nazismo, a sua eliminação não comportaria nenhuma culpabilidade moral. Até porque lhe demos a COVAX (que vacinou dois porcentos da população do terceiro mundo, segundo a OMS), que na realidade serve para manter aqueles poucos necessários (como os animais na arca) de que o sistema precisa para as tarefas pesadas e domésticas e para mostrar aos nossos descendentes – juntamente com os mamutes e dinossauros – a diversidade das espécies por que  passou a evolução .

Muitos países ricos vacinaram a quase totalidade da sua população mas também compraram quantidades de vacinas acima das suas necessidades (EUA, Canadá, Suíça) como que a dizer: vamos comprar todas para que estes pobres não subam para a arca e não perturbem a viagem  que, doravante,  é por foguetões, inteligência artificial, datismo e a meta é a imortalidade de poucos e a conquista de Marte, a caminho da conquista de toda a galáxia

Este darwinismo social teria a vantagem de não ver emergir Las Casas, Sartres, Oscar Wells, Bertrand Russeis, Chomskys (…) e outros cristãos e humanistas a culpabilizar o eleito e vencedor da selecção natural pela morte daqueles que escaparam – indevidamente – do dilúvio, como algumas negros escapam ainda hoje de naufrágio no Mediterrâneo.

Só que a astúcia da razão (Hegel) vem de onde menos se espera. O virologista e prémio Nobel, Luc Montagnier, afirma, peremptório, que devido ao problema conhecido como “aumento dependente de anticorpos”, todos os vacinados morrerão, irremediavelmente, num período de dois anos.

Se for assim, o cenário se inverte, só permanecerão na arca da vida os não vacinados, o pobres, enquanto os ricos (americanos, canadianos, japoneses, europeus) já eram…

Os mexicanos, amassados no muro de Trumph[, só têm que ter a paciência de esperar. Enquanto isso, podem ir escolhendo, pelos computadores e smartphones, o Estado, o distrito, o  quarteirão, o prédio com que vão ficar – um pouco como as casas nacionalizadas em Moçambique, depois da fuga dos portugueses. Os Africanos amassados nos centros de escravatura nos países árabes do sul do Mediterrâneo – financiados pela Europa – têm só que esperar, para depois escolher em qual das cidades europeias ir viver.

Mas o que farão os ricos durantes os dois anos que lhes restam de vida? Os faraónicos meteram toda a riqueza em sarcófagos, hermeticamente fechados e sobretudo escondidos – até para eles próprios – tanto mais que hoje, mais do que no passado, a esperança científica da ressurreição da carne toma seriamente corpo. Os Luiscatorzianos, “après mois le deluge”, destruíram tudo, fazendo recuar a humanidade à Idade da Pedra, como avisou George Bush, antes da invasão do Iraque e como se repetiu na Síria, na Líbia (…). Os bill gatistas, arrependidos pelo bem que não fizeram, criaram fundações caritativas, darão esmolas aos pobres, perdoarão as dívidas (ocultas e visíveis); afinal há sempre esperança de uma possível e tardia redenção (…). Enfim os jogadores, aqueles que passaram a vida a representar papéis sociais (George Mead), diante da inevitável morte  tiram as máscaras e – que se lixem as formas, os princípios, os  valores – lançam-se, na promiscuidade assumida, na formicação, na sodomia, no sadismo, na violência infantil e até em matanças indiscriminadas…

No meio deste teatro dantesco e a alguns dias do acto fatídico, os Bigdatas, as BigFarmas, a biotecnologia e a inteligência artificial (os novos deuses de Silicon Valley) afirmam, com provas e de uma maneira apodíctica, que afinal de contas, o SUPOSTO prognóstico de Montagnier era um vero-falso, como na arte contemporânea: os (ex) ricos não vão morrer, aliás estão destinados à imortalidade.

 Os mexicanos, que entretanto deixaram de lutar e trabalhar, já não terão as cidades ou o que resta delas; os africanos não poderão se apoderar do que resta das máfias, camorras e quejandos. Da parte do ocidente, os faraonistas não conhecem a localização dos seus tesouros escondidos; cidades,  saber e fábricas foram destruídas; riquezas desbravadas na azáfama de salvar o salvável das almas; a humanidade dos pretensos super-homens desvendada.

E agora, o que fazer? Subir para a arca ou deixar-se submergir pela força das águas? Cada um de nós está confrontado com este angustiante drama existencial  da arca e do dilúvio que atravessa o quotidiano das nossas vidas.

O homem, as nações e a humanidade estão, e sempre estiveram, na corda bamba; num difícil equilíbrio entre o dilúvio e a arca; entre a vida e a morte. Biden, o pós-Trump, optou, finalmente, por engajar os Estados Unidos na cruzada existencial contra as mudanças climáticas, mas com o cuidado de deixar de fora aqueles que mais sofrem com elas e, para completar o cenário, as grandes naves de turismo estão de volta em Veneza e nas venezas deste mundo, e com elas o re- desaparecimento das baleias e outras espécies…

Esta é a arca do não é (Bento Baloi).

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage do Amaral e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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