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A crítica aos poetas (II)

Não é o poder soberano do legislador que torna sua decisão justa, é o poder da justiça que torna a decisão do legislador soberana

Gonçalo Armijos Palácios

Platão critica Hesíodo e Homero por inculcar entre os antigos gregos valores contrários aos que deveriam vigorar numa sociedade justa. Mas é procedente tal crítica? Pensemos na obra em que Hesíodo relata a origem dos deuses, sua Teogonia. Que devemos concluir daquelas passagens em que o poeta relata os primeiros feitos dos deuses? Podemos concluir com segurança que o poeta aprova os atos de violência divina por ali narrados? Uma leitura superficial poderia nos convencer disso, mas a articulação do relato parece apontar numa outra direção. Uranos, com efeito, mandou prender seus filhos no Tártaro, mas nada há no poema que justifique tal atitude, a não ser que se tratava de filhos “temíveis”. Desde o início, diz o poeta, os filhos eram detestados pelo pai. Mas não diz por quê. Além de prendê-los, diz o poeta, o pai “alegrava-se na maligna obra”. Introduzindo Uranos dessa maneira, quem ouvia o mito só podia sentir horror a essas ações e desejar o castigo do seu autor. A indignação daquele ouvinte, contudo, não deixa de ter respaldo no mito. A própria Gaia (a deusa Terra), se ofende com semelhante ato e urde um plano para vingar tal violência. Estando seus filhos presos no Tártaro, mas ainda vivos, esperaríamos que uma mãe fizesse o possível para liberá-los. E é exatamente isso que Gaia faz. Diz o poeta: “Por dentro gemia a Terra (Gaia) prodigiosa… e urdiu dolosa e maligna arte./ Rápida criou o gênero do grisalho aço,/ forjou grande podão e indicou aos filhos./ Disse com ousadia, ofendida no coração:/ Filhos meus e do pai Estólito, se quiserdes ter-me fé,/ puniremos maligno ultraje do vosso pai,/ pois ele tramou antes obras indignas!” O plano urdido por Gaia não é arbitrário nem concebido por motivo fútil. Trata-se da libertação injusta de seus filhos e da punição de um ofensor. Cronos se oferece para levar a cabo o plano, e com pequena mais afiada foice, ataca o pai e o mutila. Cronos, o Tempo, é descrito pelo poeta como ardiloso, de intenções ocultas, manhoso, curvo.

Note-se que mesmo hoje temos uma concepção do tempo semelhante. Dizemos, por exemplo, “o tempo dirá…”, “não sabemos o que o futuro guarda para nós” etc. Noutras palavras, o tempo tem para nós ocultos planos. Nesse sentido, tem segundas ou ocultas intenções. O deus Tempo não é transparente. No contexto do poema, Cronos talvez não luta com o pai Uranos e o destrona por motivos aceitáveis, mas por um desejo oculto, visando seu próprio interesse. De fato, ele assume o lugar do pai.

Na passagem que estamos discutindo, para a ação de Cronos, justa, do ponto de vista de reparar uma injustiça, Gaia se vê na necessidade de criar o metal que deveria ser usado para levar a cabo seu plano, o aço do qual a foice seria forjada. Perceba-se que para uma ação, em princípio justa, o metal com o que são feitas as armas é criado. Está o poeta insinuando que as armas só devem ser usadas por motivos e com propósitos justos? Muito provavelmente, pois a ação de Cronos, injusta do ponto de vista de sua motivação, a ambição de poder, não fica sem punição. Essa ambição o levou a devorar seus próprios filhos. Zeus foi salvo por um ardil de sua mãe Réia, esposa de Cronos, que o parira e criara Zeus em segredo. Zeus, quando adulto, destronou Cronos, pondo, assim, as coisas no seu devido lugar. E tudo isso, diz o poeta desde o início, estava decidido, era necessário que assim fosse, estava em seu destino.

Vistas as coisas desse ângulo, essa seqüência de violência de pais contra filhos, e de filhos contra pais termina com uma ação reparadora: os que ultrapassam seus devidos limites foram legitimamente punidos. Mas Zeus também libertou seus tios, Trovão, Relâmpago e Brilho, que Cronos “em desvario prendeu”. Em agradecimento, estes lhe deram o trovão, o raio e o relâmpago. Além de ter desfeito uma injustiça, vemos, Zeus foi merecidamente recompensado.

Tudo isso Platão olhava com preocupação, pois supunha que a interpretação mais fácil, especialmente por parte das crianças, seria o de inferir que era correto se o filho matasse o pai, se o pai ferisse o filho ou se o irmão prejudicasse o irmão. Mas pelo que lemos na Teogonia de Hesíodo, nenhuma dessas conclusões seria facilmente inferida. O que vemos, pelo contrário, é que quem age por motivos escusos termina sendo punido. Já desde o início da Teogonia (versos 80-90, por exemplo) Zeus é apresentado como um deus justo: “Todos olham para ele discriminando sobre as sentenças com reta justiça. Ele falando com firmeza na agora rapidamente e com sabedoria a grande disputa pára. Portanto, os prudentes reis ao povo ferido procuram compensá-lo facilmente, persuadindo com gentis exortações”.

Estes versos são importantes por estabelecer um nexo entre Zeus, a autoridade máxima, depositário do critério de justiça, e os reis, que deviam decidir as querelas entre os homens, a exemplo de Zeus, de uma maneira equânime. Vemos em todas essas passagens que o ato justo restabelece a ordem, compensa e retribui. A Teogonia de Hesíodo, portanto, está mais próxima da idéia de que existe uma justiça que a todos submete do que poderíamos esperar se confiássemos totalmente nas críticas de Platão.

O que se deve concluir das passagens de Hesíodo na Teogonia não é o que Platão teme, o desrespeito da justiça, mas o contrário. Resulta claro que os atos divinos, mesmo dos que detêm o poder supremo, como no caso de Uranos e Cronos, não se identificam sem mais com o que é justo em si. Seu poder de arbítrio não torna a execução do mesmo, justa. Há um parâmetro de justiça, de bem e de mal, que está além das vontades dos deuses. Isso concorda plenamente com aquela passagem do Eutífron, de Platão, em que Sócrates leva seu interlocutor a concluir que as ações são piedosas não por serem amadas pelos deuses, mas que os deuses as amam por já serem, antes, piedosas. De modo análogo, a justiça não é determinada pelo arbítrio divino, pois até o arbítrio divino deve respeitar a justiça, ou sofrer as conseqüências do ato contrário, como foi o caso de Uranos e Cronos.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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