A historicidade do pensamento determina a historicidade dos conceitos que nossa fala exprime
Gonçalo Armijos Palácios
Muitos concordam que o ser humano e, portanto, filósofas e filósofos são seres históricos, não obstante, parecem esquecer que esses seres históricos só podem, como consequência, exprimir seus pensamentos por meio de conceitos temporal, geográfica e culturalmente condicionados. Dessa forma surge um paradoxo: como é possível que a historicidade do ser humano, incluída sua linguagem e os conceitos que ela exprime, permita a existência trans-histórica do que chamamos “filosofia”, tendo em mente todas essas rupturas e descontinuidades? Noutras palavras, dadas essas rupturas temáticas e conceituais, como podemos falar de filosofia como se ela fosse una, como algo sempre idêntico e impassível ao passo do tempo?
A solução do problema está relacionada com a própria natureza humana.
O ser humano já se problematizou por uma infinidade de coisas. Muitos desses problemas foram recorrentes, outros foram, de uma ou de outra forma, deixados para trás. Se olharmos para o ato do filosofar o que vemos é uma circunstância específica que aparece praticamente sempre.
Essas ocasiões podem ser descritas assim: um ser humano se defronta com um problema que só pode ser resolvido teoricamente. Ora, problemas puramente teóricos podemos ter também nas matemáticas. O que faz dessa problematização específica uma que seja considerada filosófica ou matemática? A resposta é simples, e por eliminação. Os problemas nas matemáticas são resolvidos com métodos especificamente matemáticos. Pode haver vários métodos, mas são esses e são outros. Além do mais, seus objetos são, também, específicos, são os objetos matemáticos, números, figuras geométricas, etc. O mesmo com os objetos da física teórica. Ela trabalha com objetos físicos e suas propriedades, e sobre eles levanta hipóteses e descobre problemas que pretende resolver com os métodos tradicionalmente apresentados na física.
Quando se trata de problemas empíricos, a situação é mais simples ainda. Empiricamente podemos resolver problemas apelando à experiência e a procedimentos empíricos.
Nos casos citados anteriormente, os problemas podem ser resolvidos com algo que já seja conhecido pelo ser humano: procedimentos algorítmicos, cálculos, pesos, observações e constatações, sejam lógicas ou empíricas.
Ocorre que muitos problemas um dia considerados filosóficos não são nem podem ser mais considerados filosóficos. Aí temos outro paradoxo. O que nos leva de volta aos pré-socráticos. Se pensamos o problema do princípio de tudo com olhos contemporâneos, vemos que três pensadores gregos, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, estavam lidando com um problema que até hoje não conseguimos satisfatoriamente resolver e que pertence a uma ciência determinada: a cosmologia. Supomos que, eventualmente, o avanço da física, da cosmologia e da tecnologia poderá ajudar a resolver satisfatoriamente esse grande problema. Pois hoje temos a possibilidade real de ver no passado. Nossos mais potentes telescópios conseguem chegar a ver aquela matéria que é consequência da grande explosão, o que cientista nenhum põe hoje em dúvida. Essa é a grande diferença entre um problema pertencente a qualquer ciência natural, empírica, e à filosofia. Na filosofia não podemos olhar empiricamente para nada com o intuito de resolver problemas. Só temos mesmo o pensamento puro. E, à diferença das matemáticas ou das ciências puramente teóricas, não somos limitados por procedimentos considerados aceitáveis nessas ciências, os métodos de inferência que, por exemplo, as matemáticas utilizam canonicamente.
A realidade não é, por outro lado, dividida de forma a permitir ou exigir um procedimento determinado para lidarmos com ela. De um ponto de vista, o homem é um ser empírico e seus problemas, por serem os problemas concretos de um ser empírico, são também empíricos.
O problema da justiça, por exemplo, não é um problema que não diga respeito a situações concretas, empíricas dos seres concretos e empíricos que somos. Num sentido lato, um número majoritário de problemas filosóficos — se não todos — é empírico. Mas esses problemas, nesse sentido empírico, têm a particularidade de terem de ser resolvidos teoricamente, não empiricamente, como resolvemos problemas tecnológicos.
O anterior nos leva à questão da natureza do pensamento filosófico. Vejo a tendência, na filosofia, a se conceber uma diferença de natureza entre o pensamento filosófico e qualquer outro tipo de pensamento. Esta concepção, parece-me, está inserida numa visão mística da filosofia — mesmo que isso não seja reconhecido. Tenho a impressão de que, tradicionalmente, se apresenta a filosofia como uma atividade que lida diretamente com questões ultraterrenas e que produz verdades sobre-humanas. Questões e verdades que estariam fora do alcance do comum dos mortais. Isso parece explicar por que os filósofos clássicos, os “grandes filósofos” são apresentados como seres iluminados, como pessoas com uma espécie de acesso sublime a uma dimensão supra-histórica em que pairam verdades eternas. Talvez isso tenha levado a muitos a não querer ser chamados de “filósofos” e sim, “unicamente”, de “professores de filosofia”. Passa-se, assim, a ideia de que o tipo de pensamento do filósofo é intrinsecamente diferente do de qualquer mortal pensando suas coisas.
Esta imagem do filósofo, do pensamento filosófico e da filosofia é extremamente difícil de desconstruir. No entanto, os procedimentos racionais que levam a cabo os filósofos não são diferentes dos que realizam as pessoas comuns quando procuram, com seu pensamento, chegar a conclusões que resolvam suas disputas, argumentos ou problemas. Uns dos melhores textos para desmitificar essa ideia do caráter sublime do raciocínio filosófico são os diálogos de Platão. Neles podemos ver claramente como surge um problema filosófico (sempre por questões empíricas concretas), como se argumenta para se sair da dificuldade ou se chegar à conclusão e como se estabelecem teorias filosóficas. Em nenhum desses diálogos podemos ver alguma forma de raciocínio que um ser humano comum não tenha já empregado. O mesmo vale para os processos nas ciências naturais. Outros diálogos, os de Galileu Galilei, por exemplo, servem para mostrá-lo. Assim, a obra de grandes filósofos e cientistas mostra, sem sombra de dúvida, que a natureza do pensamento filosófico é a mesma que a dos processos mentais que empregamos para solucionar problemas que sabemos que só por meio de reflexões podemos resolver. De místico ou sublime, o pensamento filosófico tem tão pouco como o ato de calcular.
Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção – Edição 1847 de 28 de novembro a 4 de dezembro de 2010