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FILOSO(MOÇA)FEMAS – Que peut la philosophie?

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

O oximoro ou a aporia desta pergunta/afirmação de Paulin Hountondji (um dos mais ilustres filósofos africanos contemporâneos); é o reconhecimento (desesperado) da impotência da filosofia (africana) em escancarar as portas, hermeticamente fechadas, para uma política democrática,  uma economia equitával, uma sociedade justa em África. A filosofia esbarra com as portas de resistência das tradições, das etnicidades, das crenças, das religiões, das raças, do dinheiro, dos poderes, dos interesses internacionais.

Mas a filosofia  não é uma estéril discussão retórica e sofista, não é um anúncio profético da verdade de uma sociedade, mas o perseguir existencial de ideais. Numa entrevista com Marcelino dos Santos, já muito debilitado, se lhe perguntou se sentiu, durante a luta, mais próximo das ideias de Mondlane ou de Cabral ao que, num sobressalto que parecia quase um testamento, retorquiu com veemência e convicção: “os nossos ideais eram superiores às ideias deste ou daquele”.

Mais do que a Academia de Platão ou do Liceu de Aristóteles a escola que mais fez para a difusão dos ideais filosóficos, foi a escola dos soikós (filósofos do pórtico), fundada no século III antes de Cristo por Zenão de Cíntio. Como era um meteco (estrangeiro) em Atenas e por isso não podia ter a propriedade de uma casa, reunia-se com os seus discípulos na Stoa Poikile  (pórtico), um espaço público (publicus – relativo ao povo) com vista para a Ágora.

Desde então, os seus ideais não cessaram de interpelar os imaginários individuais e colectivos – foi levado a Roma por Diógenes, influenciou a patrística, esteve presente no Renascimento, foi reivindicado na época moderna por Nietzsche, Foucault e hoje pela psicologia clínica. Gerações inteiras continuam a atravessar a filosofia através dos pórticos inaugurados pelos estóicos, outros continuam a derrubar portas abertas e outros ainda, como Hountondji, a esbarrar contra portas que não se lhes  abrem.

Um pórtico (porticus) não é uma porta. ‘Porta’, palavra de origem celta (Émile Benveniste) quer dizer atravessar! Mas sabemos verdadeiramente o que é uma porta e para onde ela nos leva? Por quantas portas passamos por dia? Mas as portas falam, elas são uma barreira simples e complexa que vai da capulana (com os seus múltiplos usos e insinuações que vão para além do museu imaginário de André Malraux) passando por portas de ferro, dos portões dos castelos  (os de Versalhes foram construídos com a madeira mais dura que existe e chama-se Moçambique a qual, entre nós, os artistas macondes usam para lapidar estátuas Ujamas – apelo à abertura a uma fraternização familiar e humana – e os shikanis – onde as portas se fecham por medo do diabo, do outro, ou pela sua diabolização. As portas são também as incríveis etiquetas das fronteiras, das barreiras, dos stops, das proibições, tudo o que nos impede e regula; sem contar com os homens e mulheres que lhes  dão vida: os guardas suíços do papa, os guarda-fronteiras, porteiros, mas também as decorações, as pompas fúnebres e os terríveis portões das prisões. Hoje as portas rivalizam e vão de simples portas de capulanas (para as mais humildes) até às respostas armadas das ricas residenciais, passando pelas portas de zinco, de alumínio, de madeira; portas com cães, com guardas, com atiradores, com alarmes, com fios elétricos, com códigos e até com tudo isso junto.

Mas como de facto entender uma porta? Trata-se de uma  simples passagem, uma proteção, um fechamento ou podem também ser abertura ao mundo e aos outros? A maneira como  a ‘porta’   é compreendida nas diferentes línguas, esconde ensinamentos importantes. Em latim fala-se de domi (a casa própria) e foris (no exterior, fora); o chinflalo changana quer dizer fechar, o makua mukora é  neutro, o thur  alemão, na sua definição, implica um exterior, um fora: ela é concebida como uma interioridade, materialmente como alguma coisa que protege o interior das ameaças externas.  Cada língua organiza, secretamente, os dispositivos para exprimir as suas defesas, as suas desconfianças (o chingondo dos sulistas, o viente do norte) como também a sua possível hospitalidade (bela ku nyumbani ). A porta implica um dentro e um fora, um bem estar e um perigo e, por isso mesmo, uma filosofia separatista do mundo nos antípodas do pórtico…

Porticus (filosófico), é uma estrutura arquitetônica (cobrindo a entrada de um edifício ou de um templo) aberta; o porticus da escola de Zenão era um pronaos “diante”, não de um templo ou palácio mas da Ágora. Desde a sua génese a filosofia é um espaço público (aberto), com a vista voltada para a ágora (o lugar do comum, da comunia, da comunidade).

O acento do estoicismo ( e da filosofia)  é sobre a liberdade interior inviolável de cada um,  mas também sobre o que não se deve fazer contra outrem e sobre a necessidade de um apego à vida pública e à resistência contra a opressão como fundamento da comunidade e da humanidade em geral.

Os mais significativos portadores deste ideais e valores (susceptíveis de nos interpelar,  interrogar as nossas práticas e a nossa maneira de estar hic et nunc) são os mais extremos que se podem imaginar; eles vão do ex-escravo Epiteto, passando pelo endinheirado Seneca, até ao imperador Marco Aurélio.

De todos eles Epiteto, nascido escravo no primeiro século da nossa era numa das províncias romanas, foi o mais marcante. Depois de emancipado, ele tornou-se no mais célebre professor de filosofia do seu tempo e uma das figuras principais do estoicismo. A sua contribuição é capital.  Ele apreende os limites da vida e da ação – operando uma distinção fundamental entre o que depende de nós e  que não dependem de nós – na busca da felicidade e na necessária adequação com o mundo. O ex-escravo nunca confundiu a liberdade e a felicidade com o lugar social ou a  sua emancipação com veleidades de poder ou da acumulação de riquezas. Para ele a vida tinha que ser concebida como um peça de teatro na qual nós somos os actores. A realização (eudemonia) consiste em jogar bem o papel que nos foi atribuído sem pretendermos ser cenaristas. O que conta, não é o lugar que ocupamos mas a maneira como ocupamos o nosso lugar. Para este teatro, antes dos feminismos, Epiteto (Manual) foi apologista da extensão da iniciação filosófica para as mulheres.

O milionário Seneca (contra o excessos de Nero de quem foi preceptor e por quem foi condenado ao suicídio) defendeu o uso parcimonioso da riqueza e o seu uso para o bem comum. Marco Aurélio – último imperador da Pax Romana – aceitou a função de imperador por sentido de dever mas defendeu sempre (com os factos da própria vida) que é possível viver na corte sem guarda-costas, sem vestuário de parada, lampadários, estátuas e todos os faustos Luís-catorzianos que se tornaram símbolo de governação (e que, infelizmente, são ostentados diariamente no nosso País aos empobrecidos moçambicanos); que é possível governar contentando-se com uma vida simples, sem com isso negligenciar os deveres do estado (‘Pensamentos”). Ele foi um imperador com gostos austeros, impávido diante das tribulações da vida e um chefe de guerra clemente, que soube perdoar os seus inimigos.

Apesar das diferenças de temperamento, de sensibilidades, de épocas, posições sociais, os estoicistas tiveram uma postura comum que transmitiram às futuras gerações dos que se dizem filósofos. Escravo, milionário ou imperador, o homem é verdadeiramente grande se ele vive para os outros e dá primazia às comunidades em detrimento dos interesses individuais. Os seus princípios – antes de tentativas de mudanças de regime ou marxianas de sistema – postulam o primordial respeito pelas regras existentes e, essas regras, se  são conformes às leis devem ser aplicadas a todos, a começar para si mesmos; rezam que, ao invés de dizer em que cubículo da terra (Sul, Centro ou Norte) o teu pobre corpo foi deitado no seu nascimento, é preciso resistir à fascinação do etnocentrismo (etnia, tribo, região ou, até, nação com os seus costumes) e direccionar o olhar  para o mundo, para o cosmopolitismo, governado pela razão.

Filosofar é, para eles, esforçar-se por viver como filósofo e não se limitar ao pensamento especulativo. Por isso, quando as circunstâncias o exigirem,  o sábio fará política (os discípulos de Epiteto seriam futuros notáveis e membros das elites imperiais) mas fazendo-a, ele agirá sempre de maneira justa para com a comunidade, fazendo com que o seu interesse particular coincida com o interesse geral e estará sempre pronto a Cincinnatus (lenda ligada ao cônsul Lucius Cincinnatus que aceitou abandonar a sua charrua para salvar Roma mas que terminada a sua missão, renunciou e abandonou as glórias do palácio e voltou aos seus trabalhos humildes do campo).

As afirmações/perguntas de Hountondji, que relevam de uma concepção juridicionista e omnipotente da filosofia, devem ser revertidas para “que doit faire la philosophie ?” (o que deve fazer a filosofia?) Não se trata de optar por uma filosofia da travessia (Bidima), porque a filosofia  está sempre a caminho; aliás, ela mesma é um caminho, a história de uma travessia contínua com homens e na busca de homens (Diógenes, Nietzsche) pelos labirintos dos tempos e dos espaços para com eles fazer a ecumene, comunia, um universalismo de tout le monde ( Eduard Glissant).

A filosofia está sempre na fronteira, no limite, na porta, com o dever ingrato de sempre bater às portas dos palácios (interiores e exteriores) em nome da Justiça; ela junta a sua voz à voz daqueles que esperam atrás de portas (que não se lhes abrem) e continuam a esperar, aos ouvidos daqueles que são obrigados a escutar por detrás das portas, aos olhos daqueles que são obrigados a olhar pelos buracos das fechaduras, aos que batem o nariz nas portas, aos desempregados que batem às portas na busca de trabalho e são recusados pela ideologia da competência (Marilena Chaikh), da ideologia partitocrática do cartão vermelho, aos estrangeiros nas portas das embaixadas, ou aos que procuram salvação para si e para os seus através da  emigração, aos que estão atrás das grades em nome de leis que servem para punir, vingar e não fazer justiça, dos infelizes que formam as bichas da fome e da pobreza; dos garimpeiros em busca de sobrevivência enterrados vivos pelas mineradoras de ‘patriotas’ e ‘libertadores’; ao lado de homens -que sempre respeitaram animais- que são punidos acusados de caça furtivo para defender ecologismos e parques de predadores, de camponeses expulsos das sua terras, dos pescadores sacrificados no nome do gás, dos que eram nos cabo delgados do mundo procurando as portas de segurança, das crianças largadas e obrigadas a arrombar portas de carros, casas à procura de pão e depois presas e encarceradas, dos jovens condenadas ao extremismo, ao fanatismo e ao terror das armas como única porta de sobrevivência, dos impedidos – contra a constituição – de manifestar para gritar o seu próprio desespero; mas também dos felizardos que fazem concertos (superlotados) com as caixas fechadas,  dos que não abrem as suas portas por medo ou egoísmo, das pessoas generosas que deixam as suas portas escancaradas; a todas essas portas que atravessamos, as portas que nos esperam… Pois não há portas, barreiras ou fronteiras que não possamos atravessar (Eduard Glissant). Mas as barreiras, portas e fronteiras mais ‘difíceis de atravessar’, são as resistências das mentes e dos corações abesantados pelo narcisismo, egoísmo, pecuniocracia; são elas que criam os etnocentrismos, racismos, regionalismos – usando identitarismos para as suas veleidades e ambições monstruosas de poder, que nos põem em inferioridade e nos fazem regredir à dependência. Os maiores fechamentos/obstáculos são os do egoísmo das mentes, os da pequenez dos espíritos, dos corações; eles provocam raivas, rancores, vontades de vingança, de retaliação, mãe de todas as guerras que impedem a comunidade de ser, existir e crescer.

Fechar-se num passado (partido) histórico e, em nome dele, destruir perguntas de esperança de muita criança  é agir  pior do que o colonialismo; fechar-se nos seus interesses egoistas e impedir um outro futuro para milhares de jovens, é legitimar o terrorismo como outrora, o colonialismo legitimou a nossa guerra de libertação.

Não há nada de mais anti-filosófico que os fechamentos étnicos, tribais, raciais, religiosos e até nacionais. A filosofia é a abertura dos pórticos arquitectónicos, geométricos mas sobretudo mentais; é a  contínua busca da universalidade humana. A filosofia é a busca existencial permanente de um mundo sem metecos (refugiados, apátridas), e a filosofia moçambicana tem vocação a buscar um Moçambique sem diferenças (de tribos, raças, religiões) senão daquelas que contribuem para valorizar e engrandecer o ecúmeno do conjunto (do Rovuma ao Maputo, do Zumbo ao Índico).

A filosofia tem vocação a transformar,  xipfalos que servem para fechar, em porticus que ligam, criam laços e fazem moçambicanidade.





por Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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