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A filosofia africana e “falar no lugar de outras pessoas”

Geovane Novais me enviou por email algumas questões referentes ao artigo “O Brasil e a filosofia africana”: “Como estimular os estudos da filosofia africana nas escolas?”; “Onde encontrar referências seguras sobre o tema?” e “Será possível relacionar a cultura afro com a filosofia africana?”. Esta foi minha resposta para suas questões.

Yoruba Man with Bicycle, Nigeria, 20th century. Wood, pigment. Image courtesy Perspectives: Angles on African Art, ed. Susan Vogel, 1987.

Caro Genovane,

Suas questões não podem ser respondidas, já que são tema de um debate contínuo para o qual constantemente devemos estar atentos. Existe já legislação que parece ser adequada para falar de necessidade legal do estudo de filosofia africana, indígena e afro-brasileira, mas isso esbarra em dois preconceitos iniciais: (1) das pessoas formadas em filosofia que não reconhecem essas perspectivas como sendo fonte de filosofia, mas como uma deturpação do “universal” em favor de uma “antropologização” relativista (falas como “Isso não é filosofia, é antropologia ou história ou sociologia etc.?” são comuns e não triviais, já que  as licenciaturas em filosofia tem cuidado pouco destes temas); e (2) das dificuldades de contextualização dessas temáticas dentro do currículo para quem não surjam na forma de apêndice exótico que é deixado para o fim do livro, o fim do ano, o fim da aula… como não há tempo para tudo, acaba esquecido ou deixado de lado.

Quando se fala em filosofia africana temos um problema que é comum a todas as áreas de investigação que tratam de África: as perspectivas afro-brasileiras, ligadas a discussões sobre a escravidão, racismo e a herança africana na cultura brasileira; tendem a engolir tudo o que se refere à África. Isso é um problema delicado, já que de acordo com certa reivindicação política pan-africanista os descendentes de africanos na diáspora deveriam também se pensar como filhos da “mãe África”. Porém, a África imaginada na diáspora tende a ser aprisionada em estereótipos anacrônicos e caricaturais que reduzem o continente a certa unidade imaginada, como se falássemos da Idade média dos romances de Tolkien…

Essa situação precisa sem problematizada, levando em conta o perigo e a responsabilidade implícitos na tentativa de “falar no lugar de outras pessoas”, o que não significa que deveríamos nos calar, mas pressupor uma interrogação “isso vai permitir a emancipação ou o fortalecimento (empowerment) das pessoas oprimidas? ”. A necessidade dessa constante autoavaliação é algo que a filósofa Linda Alcoff destaca, já que “a prática de falar pelos outros frequentemente nasce do desejo de domínio, para privilegiar a si mesmo como alguém com um melhor entendimento da verdade sobre a situação do outro; ou, como podendo defender uma causa justa e assim conseguir glória e prazer. E o efeito da prática de falar pelos outros é frequentemente, embora não sempre, apagamento e reinscrição das hierarquias sexuais, nacionais e de outros tipos”.

Considero muito importante separar a filosofia africana (african philosophy) daquela que podemos chamar de afro-brasileira e afro-diaspórica (nos EUA falam em “africana philosophy”, para uma filosofia pensada no horizonte pan-africanista). Isso não significa que entre elas não existam pontos de contato ou muito em comum, mas com certeza existem vozes e problemas diferentes para os quais precisamos estar atentos. Dentro da “filosofia africana” devemos ter cuidado com perspectivas que reduzem a África a celebração de um passado paradisíaco no qual o “banto místico” mantinha sua identidade imaculada. A possibilidade da filosofia africana se liga também a crítica das narrativas de progresso da modernidade, então devemos desconfiar de perspectivas que reivindicam o início africano de toda a cultura e sabedoria, apenas racialmente invertendo os termos da narrativa eurocêntrica e tentando ocupar a posição hegemónica. Ao dizer isso estou tocando em vários vespeiros, pontos que devem ser pressupostos pelo docente e não necessariamente temas de sala de aula no ensino médio e fundamental (quando o objetivo é socializar o conhecimento que tenha adquirido certa estabilidade consensual, ainda quando tratamos de paradigmas divergentes).

Posso indicar como uma fonte inicial para a aproximação da filosofia africana e de sua problemática alguns podcasts do filosofia pop em que conversamos com especialistas sobre o tema, que os abordam por diferentes perspectivas como Adilbênia Machado (ancestralidade), Wanderson Flor Nascimento (ubuntu e filosofia africana), Renato Noguera (afroperspectiva), Eduardo Oliveira (ancestralidade), Luis Thiago Freire Dantas (sobre Marcien Towa) e  Sandra Petit (sobre pretagogia).   Cada um destes convidados oferecer ao fim dos episódios dicas de livros, filmes, canções etc.

De todo modo, enfatizo a importância de tentar aproximar-se da diversidade cultural africana através da literatura, cinema, arte, dança etc. É preciso tentar se colocar no lugar do outro através de uma aproximação estética que deve ser constantemente problematizada e cuidadosa. O mesmo cuidado deve haver quando o objetivo é descrever aproximações e diferenças entre a cultura afro-brasileira e a cultura africana para que a multiplicidade de perspectivas dos dois lados do Atlântico não seja dissolvida. A conclusão é mesmo de que devemos aprender a pensar de forma plural, como nos ensina a filósofa da costa do marfim Séverine Kodjo-Grandvaux, e falar em filosofias africanas.

Marcos Carvalho Lopes

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