0

A filosofia em Xenófanes: uma arma contra a tradição

Desde seu início, a filosofia foi um debate que não se realizou só entre pensadores, mas entre os filósofos e suas tradições

Gonçalo Armijos Palácios

Nos artigos anteriores mencionei três pensadores gregos, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, considerados os primeiros filósofos ocidentais. Os três começaram uma atitude que caracterizaria a filosofia: a do debate entre eles, por um lado, e com a tradição, por outro.

A discordância das crenças tradicionais é muito clara em Xenófanes. Pelos dados que temos sobre os gregos antigos, esse filósofo é o primeiro a se preocupar com o conhecimento como problema e a chamar a atenção para o caráter antropomórfico das nossas explicações das coisas. Suas conclusões sobre o conhecimento resultam, ao mesmo tempo, uma dura crítica à religiosidade da época. Vejamos alguns fragmentos de seu pensamento: “Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas de seus deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm”.¹ Ou seja, os seres humanos projetam nos deuses suas próprias características físicas. Isso fica claro neste fragmento: “Os egípcios dizem que seus deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos”. Somos nós, então, que fazemos os deuses à nossa imagem e semelhança, e não ao contrário. Mas não só projetamos neles nossa imagem física, como nossas características espirituais. Por isso, os deuses gregos eram cheios de vícios, o que motivou a revolta de mais de um grande filósofo grego — como Platão na sua República, obra em que Homero é banido da cidade perfeita. Xenófanes, por sua parte, se queixa de que “Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, roubo, adultério e fraude mútua”. Xenófanes percebeu que esses deuses e divindades não eram outra coisa que o resultado de nós projetarmos neles as características da nossa própria natureza. Assim, audaciosamente, contra essa religiosidade na qual deuses e divindades interagiam com homens e mulheres, nem sempre fazendo o correto e louvável, Xenófanes propõe uma concepção monoteísta. Ele pensava que existia um só deus: “Um único deus, entre deuses e homens o maior, em nada no corpo semelhante aos mortais, nem no pensamento”. (p. 71) Na seguinte descrição parecem estar juntas a onisciência e onipresença que nós mesmos atribuímos a Deus: “Todo inteiro vê, todo inteiro pensa, todo inteiro ouve”.

Para entender melhor o porquê do adjetivo “audacioso” é necessário dizer o seguinte. Fui criado na tradição cristã, como católico. Quando fui catequizado, ensinaram-me que o cristianismo é uma religião superior a outras precisamente por ser monoteísta e não idólatra. A prática popular desse mesmo cristianismo — na versão católica, pelo menos — era e é, no entanto, completamente diferente do que me ensinaram. Via isso, de maneira clara, na religiosidade dos habitantes dos Andes e tenho visto isso aqui no Brasil. Não se ama um único deus, amam-se, e idolatram-se, inúmeras imagens de virgens e santos — imagens às que se atribuem poderes sobrenaturais. É, então, a católica, uma religião verdadeiramente monoteísta que nega a idolatria por simplesmente declarar que não é nem uma coisa nem outra e por conceber um Deus supremo? A hierarquia dos deuses gregos, com Zeus no topo, não fazia dessa religiosidade menos politeísta. Como não é menos politeísta e idólatra uma religião que afirma haver um Deus supremo que, no entanto, é acompanhado de um séquito de anjos, arcanjos, querubins, serafins, santos e santas para toda e qualquer ocasião, e cujas imagens e ícones têm poderes sobrenaturais.

Quando um pastor de uma igreja — cuja denominação não lembro — chutou num programa de televisão a imagem de uma santa católica, afirmando que aquele objeto não passava de um pedaço de pau pintado de preto, despertou a reação compreensível de inúmeras pessoas. Sua ação foi interpretada, não sem razão, como um ato contra a crença e a veneração católicas da Virgem Maria. Muitos, também, acreditavam que aquele homem estava chutando e desrespeitando não um mero símbolo, mas um objeto sagrado. Estou lembrando esse episódio para mostrar que a reação de indignação provocada nessa ocasião particular, em épocas passadas não teria se limitado a isso, a uma mera reação. Antigamente, quem se afastava da tradição era perseguido, punido severamente e até morto, como a história da tristemente célebre “Santa” Inquisição nos prova. Imagine-se, então, como devem ter sido recebidas pelos antigos às manifestações públicas de repúdio contra sua religiosidade por parte de filósofos como Xenófanes e Platão. Não esqueçamos que Sócrates foi processado, condenado e executado em decorrência de uma acusação de impiedade, isto é, de irreligiosidade.

Nos artigos anteriores, vimos o debate entre Tales, Anaximandro e Anaxímenes sobre a questão do princípio de todas as coisas. No caso de Xenófanes, pelo que mostram os seus fragmentos e as testemunhas de filósofos e historiadores antigos, vemos um debate com as tradições de sua cultura.

Isso tudo é um indício importante de que os filósofos não se ocupam, como costumeiramente se pensa, com questões que ninguém entende e que a ninguém interessam. Nunca foi assim. Qualquer crítica às crenças, valores e à religiosidade de uma comunidade, como prova o episódio acima referido, tem ou pode ter profundas e radicais conseqüências numa determinada cultura. Lembremos só as críticas de Lutero à igreja católica, o cisma provocado no seio do cristianismo e as lutas armadas que a Reforma Protestante provocou.

No caso de Xenófanes e de outros pensadores, essas críticas são feitas com o único instrumento que o filósofo possui: argumentos. Argumentos fazem parte de teorias. Uma vez que as teorias ganham terreno, minam-se os alicerces de instituições e tradições que podem ser milenares. É o poder do pensamento, o poder da razão que, como muitas vezes ocorreu, pode provocar revoluções. Quem acha que a filosofia é coisa de quem anda nas nuvens, desconhece a própria história e vive na pior das amnésias: a perda de sua memória cultural.


1 Xenófanes de Colofão. In: Os Pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 70. (Col. Os pensadores)


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *