Marcos Carvalho Lopes[1]
entrevista realizada em 2012
A relação entre a filosofia e a ciência é controversa. Para o filósofo Bertrand Russel, por exemplo, a ciência trata daquilo que se sabe, enquanto a filosofia do que não se sabe. Já o físico Richard Feynman teria dito que a filosofia da ciência é tão útil para o cientista quanto a ornitologia para os pássaros. As falas destes autores concordam que o assunto de cada um dos grupos seria essencialmente diferente. Enquanto cada ciência se fragmentaria no estudo de um objeto específico, a filosofia teria como foco a fundamentação do saber válido, guardando as fronteiras institucionais da racionalidade. No entanto, a controvérsia renasce quando focamos a inovação, quando perguntamos por alguma lógica da descoberta científica e deixamos de lado às controvérsias sobre fronteiras. Então, novamente se confronta a diferença entre aqueles que efetivamente trabalham como cientistas e aqueles que falam sobre ciência, num diálogo necessário que tenta construir uma ponte entre teoria e prática.
A trajetória de Michel Polanyi exemplifica bem as dificuldades de um diálogo efetivo entre filósofos e cientistas. Polanyi, a principio se formou como médico, mas posteriormente abandonou a medicina para desenvolver pesquisas em físico-química. Depois de alcançar um grande reconhecimento como cientista, Polanyi modificou seu foco, passando a tentar desenvolver uma nova proposta de epistemologia que desse conta da questão da inovação. A principal tese de Polanyi é a de que cada pessoa tem muitos mais conhecimentos do que aqueles que efetivamente consegue expressar de modo explícito. A importância que ele dá ao conhecimento tácito, sublinha a necessidade da paixão do individuo por aquilo que pesquisa, a importância do comprometimento fiduciário (no reconhecimento das autoridades dentro de cada campo de estudo, ao compartilhar praticas, modos de pensar etc.) e de uma inevitável dimensão intuitiva e imaginativa no processo de investigação. Embora Polanyi tenha chamado atenção de alguns dos principais nomes da filosofia de seu tempo – como W. V. Quine e Thomas Kuhn – sua proposta epistemológica permaneceu pouco analisada e sua obra não conseguiu ocupar o centro do palco nos debates entre filósofos. Ora, ao não compartilhar diversos dos procedimentos e posturas filosóficas, tacitamente Polanyi sabia e escolheu correr o risco de ser visto como uma anomalia.
Ricardo Pietrobon é médico, professor na Duke University, um cientista atuante e produtivo, mas que também foi contaminado pelas preocupações sobre uma epistemologia da inovação que atormentavam Michel Polanyi. Embora faça questão de sublinhar o fato de que não é filósofo, já escreveu quatro livros com reflexões sobre epistemologia (On Research & Innovation Blending (2012) como autor único e Thinking Science, Mind Thoughts e Researsh on scientific Research em parceria com o médico e pensador italiano Mauro Maldonato), é membro da APA (American Philosophical Association) e preside um grupo de pesquisa multidisciplinar sobre inovação (Research on Research) tema que motiva vários dos cursos e palestras que profere ao redor do mundo. Conversando com Ricardo Pietrobon nos aproximamos dos problemas que hoje efetivamente são relevantes para alguém que se preocupa e faz ciência.
Conhecimento Prático Filosofia: A filosofia não está entre os temas mais populares entre médicos e pesquisadores biomédicos. Geralmente, em sua formação quando se aborda a filosofia o foco está direcionado para questões relacionadas a ética. De onde surgiu o seu interesse por filosofia, mais especificamente, por epistemologia?
Ricardo Pietrobon – Meu primeiro contato foi com The Logic of Scientific Discovery de Karl Popper (1902-1994). O livro me deixou maravilhado porque na época me parecia que descrevia um possível método relacionado à descoberta, quando na verdade ele fala de justificação. O que me impressionou ao ler Popper foi à ideia de que seria possível encontrar um mecanismo generalizável para a interpretação de todas as ideias em ciência. À primeira vista, o conceito positivista de transformar toda avaliação da ciência em frases lógicas é muito tentador, o que talvez explique a grande influência que Popper teve durante boa parte do século XX. O meu interesse principal na época, e até hoje, não esta somente em como justificar asserções cientificas, mas sim em como criá-las. Ou seja, como cientistas partem de observações para a criação de modelos e teorias. Outra pergunta é sobre como generalizar esse conceito para métodos práticos que pesquisadores comuns possam usar no dia-a-dia de tal maneira que ciência e tecnologia pudessem melhorar em termos de produtividade e qualidade. Obviamente isso não pode ser feito com a teoria de Karl Popper.
Mais tarde comecei a ler outros textos que falavam sobre a ideia de justificativa sob uma perspectiva completamente diferente. Aqui tiveram um papel importante os textos de Thomas Kuhn (1922-1996) e Paul Feyerabend (1924-1994). Minha fascinação pelo tema então tomou uma direção diferente, já que a subjetividade que eles sugeriam era semelhante a muito – mas não tudo – aquilo que eu já via na pratica da pesquisa. Obviamente houve um numero imenso de outras leituras, incluindo os pensadores mais radicais em ambos os lados, do positivismo lógico até o grupo de sociologia da ciência, passando por versões atualizadas do conceito de abdução de Charles Peirce (1839-1914) via Peter Lipton (1954-2007). Não sendo filósofo e sim um pesquisador, para mim é interessante ver todos essas ideias a respeito de como a ciência funciona na prática ou como ela deveria funcionar, porque efetivamente estão parcialmente corretas e também parcialmente erradas. Ou seja, existem situações onde cada uma delas se aplica e outras onde elas não se aplicam. Para mim então é curioso e algumas vezes mesmo engraçado observar filósofos em discussões acirradas a respeito de conceitos imutáveis, sistemas de pensamento monolíticos que ajudariam a explicar “tudo” em ciência. Acredito que essas ideias são extremamente ingênuas e simplistas, a maneira pela qual a ciência é feita ou como conhecimento é construído é substancialmente mais complexa do que isso.
Uma coisa importante a frisar é que apesar de eu ter interesse em relação a questões de filosofia, sob nenhuma hipótese sou um filósofo. Não tenho formação técnica alguma, e, portanto qualquer coisa que eu diga não pode ser interpretada como uma sentença filosófica. Ao contrário, eu acredito que posso conversar com filósofos. Minha contribuição – ou pelo menos o que eu gosto de pensar como sendo a minha contribuição – é apresentar problemas que são comuns dentro da “vida real” de um cientista ou simplesmente comparar o que os filósofos pensam a respeito de cientistas e o que cientistas realmente fazem na pratica. A discrepância é imensa, e portanto o material é bastante rico.
CPF: Como a filosofia se relaciona com seu trabalho atual?
O meu trabalho tem como foco melhorar processos de pesquisa e tecnologia em biomedicina. Ou seja, como fazer com que pesquisadores sejam mais produtivos e tenham uma melhor qualidade nas suas atividades. Dentro desse contexto, a filosofia é uma caixa de ferramentas, uma fonte de instrumentos para poder olhar para os processos de pesquisa e tecnologia de uma maneira diferente. Um exemplo clássico é a ideia de realismo. Apesar de muitos filósofos pensarem que cientistas são realistas, e de muitos cientistas se considerarem realistas, se você observar dois ou mais cientistas conversando, os seus temas são tudo menos realistas. Ninguém fala sobre verdade. Falam sobre conceitos de consenso social, de reprodutibilidade, de jogos políticos e de poder, de modelos transitórios que são verificados por indivíduos diferentes etc. Ao mesmo tempo, cientistas também estão distantes da maneira de encarar a ciência na visão de grupos de Sociologia da Ciência, que tem como representantes pessoas como Barry Barnes e David Bloor. Ou seja, os cientistas normalmente acreditam que o seu trabalho não é meramente um jogo sociológico ou de poder, mas que existe sim uma correspondência entre o produto do seu trabalho e o mundo que estudam.
As discrepâncias não param por ai. Por exemplo, apesar de filósofos como Ronald Giere ou historiadores da ciência como Nancy Nersessian enfatizarem o papel de modelos representacionistas como elemento central na comunicação cientifica, a dimensão representacionista é apenas um aspecto isolado em um contexto muito maior. Ou seja, comunidades científicas são sim movidas por aspectos sociais, emotivos, e tecnológicos, que entre outros constituiriam muito mais o que filósofos e psicólogos chamariam de modelos situados, a palavra “situado” sendo interpretada no sentido de cognição situada. Existem varias definições possíveis para cognição situada, uma das classificações possíveis sendo a dos quatro “Es”. A primeira e chamada de “extended cognition” (cognição estendida), representada por cientistas não pensarem por si só, mas terem sua percepção do mundo estendida tanto por seus colegas (social extension) quanto pelas tecnologias que os cercam. Então se eu sou circundado por uma comunidade de pesquisadores brilhantes, minha capacidade de ter ideias melhores e aumentada. Se eu tenho um computador a minha frente com acesso a Web, minha capacidade para ter ideias também e aumentada. O segundo “E” é a “embodied cognition” (cognição incorporada). Ou seja, minha cognição e diretamente conectada ao meu corpo, se estou em um ambiente estimulante minhas ideias serão estimuladas, se meu ambiente me estressa em um nível exacerbado, minhas ideias vão ser reduzidas. O terceiro “E” representa a “embedded cognition” (cognição inserida) ou a capacidade do meu ambiente estender minha capacidade cognitiva. Ou seja, se eu trabalho em um ambiente altamente estruturado para atividades rotineiras, onde digamos eu tenha uma rotina para escrever artigos científicos e conduzir analises de maneira rotineira, minha cabeça vai estar livre para pensar sobre novas ideias já que a rotina esta “embedded” ou já e parte inerente do meu ambiente. Ou seja, o ambiente toma conta da rotina quase que automaticamente. O ultimo “E” e representado pela “enacted cognition” (cognição adotada) ou a ideia de que a repetição faz com que determinadas atividades sejam automatizadas pelo corpo, deixando então o cérebro livre para pensar em detalhes mais finos. Por exemplo, em uma primeira vez que uma cientista execute uma análise, ela precisa ficar atenta a cada detalhe técnico. Depois de repetir a mesma análise cem vezes, ela já nem pensa mais sobre cada detalhe, e então sua atenção pode ser fixada em aspectos que antes ela não conseguia perceber. Todos estes detalhes vão muito alem da ideia de modelos que pessoas como Ron Giere e Nancy Nersessian descreveram. Para mim, todo modelo e necessariamente situado.
Em resumo, existe uma discrepância imensa entre a maneira pela qual os filósofos descrevem o modo que os cientistas pensam, a maneira que os cientistas se autopercebem e a modo como os cientistas agem no dia-a-dia. Obviamente a minha descrição também utiliza prismas para a observação do comportamento dos pesquisadores, e então sob-hipótese alguma eu estou dizendo que minha visão é privilegiada.
CPF – Até que ponto é possível projetar a inovação? Uma política científica voltada para inovação precisa pressupor e financiar o ócio e o “fracasso”?
Eu acredito que o ambiente da inovação pode ser projetado, obviamente com limites. Existe uma serie de estudos empíricos mostrando que fatores como ambientes que permitam uma melhor comunicação entre indivíduos tende a gerar mais inovação. Existem inclusive estudos empíricos mostrando que determinados ambientes arquitetônicos podem levar à uma maior criatividade, o mais interessante deles sendo o fato de que pessoas tendem a ser mais criativas em ambientes abertos do que em ambientes onde elas se julguem restritas. Se você analisar esses achados empíricos do ponto de vista da cognição situada, não existe muita surpresa. Ou seja, era esperado que condições ambientais (embedded), sociais (extended) ou emotivas (embodied) gerassem um grau maior ou menor de inovação.
A questão do fracasso é essencial. É preciso haver alguma tolerância com o fracasso para que haja progresso. Não acredito que ninguém discutiria isso. No entanto, quando pressões econômicas começam a prevalecer, a tendência dos órgãos financiadores de pesquisa é tornarem-se mais conservadores, e nesses contextos as ideias mais exploratórias são imensamente penalizadas. Ou seja, se há menos dinheiro, eu vou apostar no que me parece de menor risco. Essa medida é prática, tem relação com sobrevivência já que ideias mais exploratórias tem uma probabilidade muito maior de falha em alcançar seus objetivos. A grande dificuldade neste caso é que nós não temos modelos que nos permitam prever qual o impacto de políticas que são mais ou menos avessas ao risco. Como nós temos dificuldades para prever o que vai acontecer com uma política ou com outra rival, a decisão tende a ser conservadora.
A questão do ócio é ainda mais interessante. Não resta dúvida de que coisas feitas inicialmente como hobby podem levar a descobertas fascinantes. A área de tecnologia é um exemplo perfeito onde milhares de invenções foram feitas por indivíduos com um espírito lúdico, simplesmente brincando com ideias e manipulando objetos. No entanto, pelo menos na área de tecnologia, apesar do ócio poder isoladamente ser uma faísca inicial, a necessidade de uma solução pratica para um problema iminente parece ser o mecanismo mais comum de inovação. Ou seja, não é simplesmente um individuo olhando para o teto e procurando algo para fazer, mas ao invés disso uma pessoa criativa e com habilidades com um problema pratico que precisa ser resolvido imediatamente. Note que eu usei a palavra “individuo” ao invés de grupo. Achados empíricos mostram que inovações tendem a ser catalisadas por indivíduos, mas esses indivíduos obviamente “situados” em um contexto maior que os influencia diretamente. Ou seja, eu não acredito no conceito de individuo isolado, e toda vez que me refiro ao termo individuo necessariamente estou me referindo ao individuo situado. A separação entre individuo e sua situação (no contexto de situated cognition) e invariavelmente artificial
CPF – O filósofo Ernest Sosa e um premiado artigo de 1987 – “Serious philosophy and freedom of spirit” – caracteriza a “filosofia dos espíritos- livres” pelo subjetivismo, relativismo, antirrealismo e historicismo; já a “filosofia séria” teria como marcas o objetivismo, absolutismo, realismo e universalismo. Como se pode deduzir da forma de descrição, Sosa faz sua defesa da seriedade contra a frivolidade dos relativistas. Como você vê esta divisão? Um pesquisador criativo pode ser um “espírito-livre” e ter respeitabilidade científica?
Eu não conheço os textos de Ernest Sosa, mas eu sempre pensei que a defesa do realismo por filósofos como Nicholas Rescher e Hilary Putnam, entre outros, é uma coisa sem muito nexo. A hipótese é de que se não houver realismo com uma lógica subjacente que traga uma visão exata do mundo, esse mundo ira ruir. Isso me parece um contrassenso total. O fato de o mundo ser ou não real me parece irrelevante. Pelo menos na maneira como a pergunta é construída no contexto onde se considera que indivíduos que percebem o mundo sejam separados desse mesmo mundo, a resposta sempre vai ser de que essa percepção necessariamente tem de se fazer através de um prisma. Então, na maneira como a pergunta é formulada, e resposta sobre o mundo ser ou não real e absolutamente irrespondível. Se ela não tem resposta, então ela é, até onde eu consigo perceber, irrelevante.
Mais relevante, no entanto, é como agir em relação a este mundo. Neste contexto, existem duas questões que eu considero fundamentais e absolutamente conectadas a filosofia, obviamente entre uma infinidade de outras considerações. A primeira é como nós interagimos com o mundo, o que implica a maneira pela qual conhecemos o mundo. Como eu mencionei anteriormente, eu acredito que a visão do ponto de vista da cognição situada e os seus quatro Es é um ponto de vista interessante. Muito da filosofia parte do pressuposto do individuo como um sinônimo de cérebro, ou seja, eu sou meu cérebro e portanto minha existência esta circunscrita ao que ocorre dentro das paredes do meu crânio. Eu acredito que essa é uma visão altamente deturpada, acredito que nós somos seres distribuídos, estendidos. Alguns autores como Wheeler[2] interpretam Heidegger neste sentido.
A segunda pergunta, que no meu entender e derivada da primeira, é o que exatamente nos queremos fazer neste mundo, qual deve ser a meta. Acredito que ela seja derivada da primeira porque a sua resposta depende da maneira como nós seres humanos podemos nos satisfazer com respostas diferentes. Satisfação, eu acredito, não e um conceito filosófico mas sim uma ideia biológica, comportamental. Então a resposta poderia ser algo como a meta sendo “fazer o bem e evitar o mal” ou a ideia de que a nossa forca motora seja a “vontade de potência” ou ainda “conhecer a Deus” são, em minha opinião, diferentes maneiras de satisfazer uma necessidade de ter uma meta. Bem, para mim a parte importante em cada uma dessas metas não é a vontade de poder, ou Deus, mas sim a satisfação. Isso quer dizer que se nós conseguíssemos entender o que traz satisfação, essa necessidade de se sentir satisfeito estaria preenchida. Obviamente, por trás desta ideia existe o conceito de que uma meta única não existe.
CPF – De que forma você percebe a transição filosófica para um paradigma pós-metafisico calcado na linguagem e de sentido pragmático?
Se por linguagem você entende estritamente a linguagem escrita e falada, eu acredito que esse é um âmbito altamente constrito e descontextualizado. Parece-me que o ser humano vai muito além da linguagem. Como exemplo podemos citar os quatro ambitos que destaquei em relação à cognição situada. Nossa cognição não depende somente de uma linguagem que esteja restrita ao nosso cérebro, mas ela se encontra sim dentro de um contexto muito maior.
Um exemplo simples e interessante são os dançarinos de salão. Estes invariavelmente dançam como casais, mas é interessante que quando você pede para que descrevam uma determinada coreografia eles têm dificuldade. Em outras palavras, o corpo deles sabe executar a dança, mas eles têm dificuldade em descrever tudo que fazem (a menos é claro que eles sejam professores e tenham sido forcados a criar explicações para o que fazem). Em cognição situada isso é o que chamam de “embodied cognition”, talvez traduzido como cognição incorporada. Ou seja, existem coisas que são feitas para as quais não há necessidade de linguagem, apesar de que a linguagem pode, parcialmente, descrever o que é feito. Continuando com o exemplo, se você pede para que esses dançarinos dancem sozinhos, eles de novo têm dificuldade. Isso acontece porque em uma dança de salão a sequência da dança e o seu ritmo dependem da resposta do seu parceiro. Ou seja, a sua cognição e estendida, o parceiro faz parte do mecanismo cognitivo que leva o dançarino a dançar, sem o parceiro ele não consegue executar o que normalmente faz. Um outro exemplo e o caminho que você faz voltando para casa em um carro. Se eu te peco para descrever cada passo, você provavelmente vai se perder. Você não sabe o caminho automaticamente, mas ao invés depende de “dicas” dadas pelo ambiente para poder se orientar. Ou seja, se a padaria do Manoel esta na esquina, esse e o momento de virar à esquerda. Isso quer dizer que a sua cognição e estendida pelo ambiente.
Nenhum desses casos depende somente de linguagem, são mecanismos contextualizados. Obviamente eles podem ser parcialmente traduzidos em forma de linguagem, mas o fato de que nas atividades diárias a linguagem não e necessária me faz pensar que provavelmente a imensa maioria das nossas atividades e não relacionada à linguagem. Então, apesar da linguagem ser inquestionavelmente fundamental, partir do principio de que ela e a base de tudo me parece um engano imenso.
CPF – Como você avalia a divisão entre contexto de descoberta e contexto de justificação na produção de conhecimento científico?
Essa é uma pergunta altamente complexa. Como toda classificação, ela é arbitraria. Eu e o Dr. Renan Freitas publicamos um artigo[3] há alguns anos apresentando um exemplo onde essas duas categorias se sobrepõem de certa maneira. No entanto, acredito que a classificação seja válida, dado que toda classificação ou conceitualização se transforma em um modelo para observar o mundo.
Tendo a classificação como um modelo, e modelos são falhos em diferentes contextos, a ideia de justificativa e extremamente válida por ser um modelo idealizado de como teorias competitivas poderiam ser comparadas e avaliadas. Note que um modelo teórico sobre como avaliar teorias não pode ser criticado em função de ele não ser utilizado por cientistas. Por exemplo, a crítica da teoria de Popper em função de cientistas não utilizarem fasificacionismo no dia-a-dia e equivalente a criticar a matemática porque uma determinada equação não descreve perfeitamente um fenômeno biológico. As duas coisas são diferentes. A teoria da justificativa e simplesmente um modelo, o fato de ele se aplicar ou não ao mundo real tem relação com quão útil possa ser para descrever aqueles fenômenos, mas não tem relação com o fato de ele não poder ser utilizado em outro contexto. Ou seja, o fato de que pesquisadores usar o consenso mais do as regras de falsibilidade no seu dia-a-dia não quer dizer que regras de falsibilidade não possam ser aplicadas em um contexto computacional.
Apesar da justificativa ser essencial, a descoberta é, em minha opinião, o lado mais fascinante dessa dicotomia. Em filosofia, talvez pela influência de vários pensadores do século XX como Popper e Reichenbach, ela não é tão discutida, o que é uma pena já que ela é um dos fatores determinantes da maneira pela qual a ciência caminha. Recentemente tem havido uma expansão muito interessante do campo de descoberta e explicação, com filósofos como James Lipton[4] desenvolvendo de maneira brilhante as ideias sobre pensamento abdutivo formuladas por Charles S. Peirce no final do século XIX. A verdade é que a ideia da descoberta ou da explicação são misteriosas por conterem essa mágica inerente de conseguir combinar vários achados sob o guarda-chuva de uma explicação que “faca sentido.” Ou seja, a exploração do que exatamente faz com que nos achemos que vários achados estejam ligados é também que essa ligação possa “fazer sentido” são não somente curiosidades intelectuais mas aspectos absolutamente fundamentais para o conceito de inovação.
CPF -Michael Polanyi era um cientista renomado quando redirecionou sua carreira para a filosofia desenvolvendo sua visão da epistemologia como fundada em um tipo de conhecimento tácito que dificilmente seria traduzível em palavras. Como um outsider dentro das fronteiras da filosofia, Polanyi não tinha muita paciência e nem se interessava por entrar em detalhes dos debates dos profissionais da filosofia. Esta recusa em participar dos rituais da disciplina fez com que sua obra fosse esquecida e este mesmo esquecimento parece ser algo que explicitamente demonstra as fronteiras tácitas que a comunidade filosófica preserva. Como você vê esta fronteira e as possibilidades de diálogo efetivo entre filosofia e ciência?
A especialização, seja na filosofia ou em qualquer outra área técnica ou do conhecimento, tem seus aspectos positivos e negativos. O positivo obviamente é o aprofundamento disciplinar. Ou seja, o generalista não tem condições de tratar de assuntos altamente especializados por não conhecer a área em profundidade, o que quer dizer que para o aprofundamento existe absoluta necessidade da especialização. Com a especialização, naturalmente vem um jargão, que é justificado para abreviar e tornar mais ágil a comunicação – ou seja, uma palavra pode literalmente sumarizar livros que tratam de determinado tópico. Outra consequência da especialização é a criação de ferramentas próprias, ou seja, ferramentas que são utilizadas para ações específicas dentro da área de especialidade. O marceneiro pode usar um martelo, enquanto que o filosofo pode utilizar a fenomenologia como ferramenta.
Essa combinação de linguagem e ferramentas é o que o historiador da ciência Peter Galison chama dos componentes para uma trading zone, ou uma zona de troca. Ou seja, se houver interesse em estabelecer uma comunicação entre membros de diferentes disciplinas, essas pessoas vão ter de necessariamente trocar conceitos e ferramentas. Em minha opinião, a colaboração entre indivíduos de diferentes disciplinas tem vantagens imensas do ponto de vista da inovação, já que uma das maneiras de definir inovação é toma-la como a combinação de conceitos e experiências de áreas diferentes, com ideias emergentes que vão além dos componentes individuais. Por exemplo, eu posso juntar conceitos de filosofia da mente e psicologia cognitiva, e dessa combinação surge a ciência cognitiva que por si só vai muito além do que cada uma das disciplinas isoladas. Ou seja, a inovação emerge dessa combinação.
Um outro conceito interessante relacionado as barreiras disciplinares é a atual transformação dos departamentos de ciências humanas nos EUA, entre eles obviamente os departamentos de filosofia. Por pressões primariamente econômicas, vários desses departamentos estão sendo fechados, simplesmente porque os alunos não têm mais o interesse de seguir uma carreira onde a possibilidade de emprego é próxima de nula. Obviamente a filosofia não vai desaparecer, mas me parece que ela vai ser transmutada em algo novo.
CPF – Quando se fala em pesquisa voltada para a criatividade e inovação quais os principais fatores epistemológicos (tácitos e explícitos) que se deve ter como pressuposto?
Acho que essa é uma pergunta para um livro. Ou seja, você pode usar conceitos como, por exemplo, a crença (belief) e transcorrer sobre isso eternamente, com os mais variados tipos de teorias indo do Bayesianismo ate os modelos mais recentes de redes. Será que nos temos um raciocínio bayesiano – a evidência empírica e absolutamente contrária a essa crença. A ideia de verdade é outro assunto que poderia ser dissecado sem nunca chegar a uma conclusão, até mesmo sobre o ser necessário.
Com todas essas questões possíveis, uma coisa de âmbito prático que se relaciona ao conceito de epistemologia é o seguinte problema: “dadas várias explicações possíveis sobre um fenômeno, quais os critérios para escolha de uma explicação no contexto das decisões para ações práticas que seguem esta explicação?”, ou seja, “será que a “explicação” pode ser considerada com uma unidade autônoma, ou será que a maior parte das explicações é dada em função das implicações de decisão que se seguirão com implicação pratica?”. Por exemplo, quando Hilary Putnam decide que a realidade existe, ele decide que ela existe porque caso não exista a própria racionalidade estaria ameaçada e o mundo entraria num caos onde a possibilidade do Nazismo retornaria com força total. Quando afirmo que a comunicação entre disciplinas é necessária, eu o digo por que sinto capacitado para trabalhar com indivíduos de outras disciplinas. O ponto central aqui é que tradicionalmente nós consideramos explicação e ações subsequentes como conceitos concatenados, mas isolados. Ou seja, minhas explicações são circunscritas pela minha possibilidade de ação subsequente. Dito de maneira diferente, a explicação se estende na decisão, o que quer dizer que toda explicação depende da minha capacidade atual de agir.
Ricardo Pietrobon
Brasileiro radicado nos Estados Unidos, Ricardo Pietrobon coordena a Área de Internacionalização do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes. Pietrobon é professor associado da Duke University, localizada na Carolina do Norte, Estados Unidos, orientador da pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo e pesquisador visitante do programa Ciências sem Fronteiras.
Enquanto pesquisador, segue uma linha com enfoque na educação de profissionais de saúde, que tem como exemplo, no Brasil, a criação de uma infraestrutura em Big Clinical Research Data e o treinamento de jovens pesquisadores (mestrado, doutorado, docentes júnior) na área da saúde.
Pietrobon possui mais de 300 artigos publicados em periódicos internacionais e mais de 5,4 mil citações, o que garante um índice h de 38, de acordo com o Google Scholar. Parte das publicações foram desenvolvidas em parceria com pesquisadores brasileiros de diversas universidades internacionais localizadas na Itália, Cingapura, Inglaterra, Alemanha com as quais mantêm colaborações.