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A jogabilidade do erro criativo

Marcos Carvalho Lopes

Existem certas formas de escrever que são consideradas erradas, mas que acabam sendo difíceis de corrigir, principalmente quando se afastam muito do modo como a palavra se articula na fala. Em alguns casos produzimos variações que não são válidas: por muito tempo escrevi o diminuitivo de moça com cedilha: “moçinha”. Me parecia intuitivo que o cedilha permanecesse. E no meu primeiro livro, mesmo depois de muitas revisões, apareceu lá esse erro de grafia. Sei que não ofende tanto, mas envergonha um pouco. Por isso mesmo, quando presenteei Caetano Veloso com este livro – Canção, Estética e Política: Ensaios Legionários (Mercado de Letras, 2012) –, diante do interesse e da promessa dele de ler o livro, pedi que não o fizesse: eu já imaginava como ele ficaria negativamente impressionado com essa “moçinha” com cedilha. O comentário gerou algum riso, mas perdi um leitor possível. (Até rolou uma brincadeira pelo inusual da palavra e seu tom pejorativo atual, assim como a possibilidade dessa cedilha ser a marca de uma diferença oculta).

Noutro caso, mais ou menos em 1999, durante a graduação, estudava a noção de paradigmas de Thomas Kuhn numa disciplina de Filosofia da Ciência, na mesma época em que lia, por minha conta O dever do gênio, a biografia de Ludwig Wittgenstein escrita por Ray Monk (Companhia das Letras, ) e jogava muito videogame no computador… acabei misturando as coisas. No meu trabalho, ao explicar a noção de paradigma e suas mudanças/aceitação logo entendi a conexão com a noção de jogo de linguagem de Wittgenstein. Para descrever alguns critérios, como a simplicidade, utilizei o termo jogabilidade: a maior jogabilidade potencializaria a aceitação de um paradigma. Esse termo tornou-se uma piada para o professor, que fez troça da minha tendência poética a criar termos e multiplicar “dades”. Mal sabia ele que nas revistas de videogame esse termo era corrente: os jogos são classificados por sua maior ou menos jogabilidade, a facilidade que oferece a quem joga de executar seus comandos, em efetivamente jogar. Se aquele professor tivesse autoridade semântica para reconhecer o potencial daquele termo que não reconhecia, poderia ter incentivado mais pesquisa e escrita, mas no jogo dele o ornitorrinco é sempre a mistura de partes de animais que já se tem familiaridade, nunca causa espanto ou faz questionar as divisões já conhecidas.

Mais grave foi a minha teima em levar a sério a afirmação de Gottlob Frege de que um texto seria tanto mais científico, na mesma medida em que seria de fácil tradução. Frege revolucionou a lógica ao deslocar a estrutura da frase em que sempre um sujeito é complementado por um predicado, para pensá-la em termos de funções. Mas para dar esse passo, foi preciso repensar a relação dos nomes com aquilo que querem dizer. Deste modo, quando falamos de “estrela d´alva”, “estrela da manhã” ou do planeta “Vênus” abordamos de formas diferentes o mesmo objeto: o planeta Vênus.  Frege diferenciou Sinn, as diferentes descrições com as quais nos referimos a algo, e Bedeutung, este algo que é referido. As traduções para estes termos utilizados por Frege são as mais variadas e intercambiáveis: sentido e referência; sentido e significado; significado e referência; referência e significado… e há alguns textos sobre a Bedeutung de Bedeutung ou o meaning de meaning em Frege. Os entendimentos parecem ter como ponto controverso o modo de lidar com objetos ficcionais, que o próprio Frege não reificou: quando lemos a Odisséia o nome Ulisses tem Bedeutung; mas quando nos referimos ao mundo material, essa não existe. Ora, o filósofo alemão estava preocupado com sistemas lógicos e funções matemáticas, não com correspondência ao mundo físico. Uma compreensão empirista de sua proposta, pede que a referência ao mundo físico seja reificada e cria todo um programa de pesquisa por purificar a linguagem de termos que não tenham ligação com entidades físicas. Se pensamos em objetos matemáticos, em funções lógicas ou em literatura, essa proposta não é uma necessidade. 

De acordo com essa descrição problemática e aberta, propus a tradução de Bedeutung por significabilidade, pensando no campo semântico que por vezes é ativado com a expressão e o contexto de interação pragmático. Isso me fez ressaltar a dimensão poética e criativa das descrições de Frege: a sua inovação tem uma dimensão metafórica que tornou difícil a tradução. Seguindo este mesmo rastro posso afirmar com justificação crítica que Parmênides foi o pior poeta de todos os tempos.

Claro, que por conta dessa interpretação quase fui reprovado na disciplina do mestrado, o que significaria ser expulso do curso. Troquei e-mails com a professora até ela afirmar que meu trabalho estava ficando bom, aí inclui minha conclusão irritante, divergente e criativa. A nota foi a menor possível com declarações de desagrado e desqualificação. Não se deveria levar o que Frege escreveu tão a sério se não leio alemão, inglês etc.; se não tenho acesso ao texto original a não ser por traduções distorcidas etc. Multiplicam-se os pressupostos para dizer que não se pode dizer.

Mas o meu “erro” mais antigo talvez seja o mais fértil. Tive muitas dificuldades para na escrita diferenciar quando escrever “e” ou “é”. Claro, “é” do verbo ser indica que algo existe; e “e” mostra que algo se conecta a algo. Mas a minha apreensão das coisas, da “realidade” foi sempre relacional e não se fixava em uma ontologia. Imagine o piseiro, o misere que Jacques Derrida faria se tivesse como língua materna o português e esse “e” que “é”. E se esse erro não fosse um erro, mas uma compreensão das formas de vida abrigadas nessa língua? Aí eu poderia cantar com Tom Jobim sem conseguir diferenciar quando o e é ou quando o é e: “É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã/ É um resto de mato na luz da manhã/ São as águas de março fechando o verão/ É a promessa de vida no teu coração”.*

*Com certeza esse ponto final merece muito mais explicação e cuidado. Mas para isso indico a fantástica Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (São Paulo: Parábola Editorial, 2012) de Marcos Bagno em que desenvolve num tópico “A história de ser e estar” (p. 609-615) e explica como esse verbo pode ser tomado como elemento de ligação, sem predicação; e quando fala dos “Verbos existenciais ou apresentacionais” (p.620-624), que podem ser omitidos sem que se perca o sentido do enunciado.

Marcos Carvalho Lopes

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