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«A mãe deu à luz» não significa «a mãe terminou»

Cinquenta anos de independência dos Países Africanos
de Língua Oficial Portuguesa

Ensaio de MERAF VILLANNI E FILOMENO LOPES

Neste ano de 2025, toda a África celebra e reflete sobre os 50 anos de independência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP): Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Todos estes países conquistaram a inde pendência (com exceção da Guiné-Bissau, em 1973/74) em 1975, após um longo período de resistência cultural, económica, política e, por fim, também armada. Resta compreender por que razão, num momento particularmente difícil da história da humanidade e, em especial, da história do continente africano, na atual conjuntura geopolítica e geoestratégica internacional, os PALOP voltam a estar, quer queiram quer não, no centro das atenções dos africanos, dentro e fora do continente, em particular no centro das atenções dos jovens africanos e afrodescendentes que lutam para fazer ressurgir o espírito de um novo pan-africanismo para um renovado renascimento africano. O que representaram estes países durante os anos de luta pela autodeterminação e independência dos povos africanos e por que razão se torna de importância capital neste momento particular de crise de consciência histórica e de ausência de uma «nova pedagogia de visão» para um renascimento africano à medida da dignidade dos homens e mulheres que habitam este continente?
Agora, onde estamos hoje, cinquenta, sessenta anos após a independência dos nossos países e povos, em relação à necessidade de «pensar juntos para melhor agir juntos», enquanto africanos, pensar com a nossa própria cabeça e com os pés bem assentes na terra, para melhor servir os nossos países e povos e realizar assim o que era o Programa Maior da luta pela independência dos PALOP: a construção da Paz, do Progresso e da Felicidade dos respetivos povos? Como é que, sessenta anos depois, a grande maioria dos países africanos ainda se encontra a lutar pela autodeterminação dos respetivos povos e países? Que balanço e perspetivas podemos e devemos fazer destes primeiros 50 anos de independência dos PALOP que seja simplesmente histórico e não biológico? Mas, acima de tudo, como foi que os PALOP pensaram, projetaram e agiram em conjunto para obter a independência, libertar as suas terras do colonialismo e relançar-se na história da humanidade como sujeitos da sua própria história e historicidade no concerto das nações? A independência, ou seja, o «sol das independências» (A. Kouruma), era uma palavra bonita a que todos os africanos aspiravam naqueles anos. Mas os PALOP foram os que melhor souberam definir o que era a luta pela independência, a autodeterminação dos povos e as razões da luta pela liberdade.

Para Cabral, lutar pela independência, pela autodeterminação e pela liberdade de um povo significava essencialmente «lutar para abrir caminhos a fim de que cada ser humano, cada homem e mulher das nossas terras fosse um valor ao serviço dos nossos povos, ao serviço de África; abrir caminhos para que cada ser humano possa erguer-se, para servir as nossas terras, a África e a humanidade». No fundo, a conquista da independência, da liberdade, era uma simples missão de abrir caminhos vitais possíveis para procurar respostas aos inúmeros desafios com que os nossos países e os respetivos povos se confrontavam; uma forma de ver, sentir e ouvir o clamor das nossas terras e dos respetivos povos, pensar e agir juntos na procura de alternativas biofílicas para a paz, o progresso e a felicidade dos nossos povos. Em suma, a liberdade implica sempre um sentido de responsabilidade. O conceito de responsabilidade, que tem as suas raízes religiosas e espirituais no «sacrum facere», tem sempre a ver com o ato de responder a um apelo, a uma «vo/ clamans», e indica como a nossa vontade de resposta deve sempre interpelar todo o nosso «estar presente» (Heidegger) na sua integridade. Não se trata, neste caso, de dar uma resposta qualquer a uma pergunta qualquer, mas sim de uma promessa que se torna, a partir de um determinado momento, ineludível para nós: a «vo/ clamans» dos nossos povos e países então crucificados e que era necessário fazer descer da cruz e abrir-lhes brechas de esperança para que cada criança, homem e mulher dos nossos países pudesse finalmente voltar a ser e a e/pressar-se como um valor. Cinquenta, sessenta anos depois, qual é a «vo/ clamans» à qual responde a política dos nossos atuais Estados, especialmente nos PALOP? Como explicar o aumento dos tumultos, das revoltas, mas sobretudo a cultura do anti-irmão (J. M. Ela), fruto de uma «antropologia da cólera» (Celestin Monga) permanente que envolve as nossas sociedades desde o final dos anos setenta até agora? Será que a maior desgraça destes primeiros cinquenta, sessenta anos não é precisamente a substituição desta «vo/ clamans» dos nossos países e povos por outros valores inconfessáveis? Até agora, procuramos responder a um rosto crucificado concreto ou ao «nada» heideggeriano, e com quais consequências? Amílcar Cabral lembra-nos, no entanto, que entre todos os poemas que os povos dos PALOP escreveram, o mais belo até hoje é «a nossa luta de libertação nacional». Mas acrescentou também uma advertência: «(…) Veremos, disse, se saberemos colher todos os resultados, todos os frutos. Isso depende de nós, da nossa capacidade de permanecer fiéis aos interesses dos nossos povos ou de os trair» (Cabral, 1970). Eis então, em forma de grito, a angustiante pergunta do Comandante Pedro Pires: «O que fizestes com a independência que conquistámos com tanto suor e sangue e vos deixámos em herança?». Qualquer que seja a resposta que queiramos dar a esta e a outras perguntas, o importante é não demonstrar apatia em relação a eles. Em síntese, «a Mãe deu à luz» não significa «a mãe terminou»!

Vejamos, todos aqueles que assistiram às declarações de indepen- dência de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe talvez se lembrem, com as lágrimas nos olhos, da primeira vez que ouviram dizer que finalmente eram livres, independentes. E talvez isto os una e nos una ao sentimento que os negros dos EUA tiveram quando, naqueles dias fatídicos de 1865, ouviram proclamar o fim da escravatura. Segundo Booker Washington, a festa foi grande, todos dançavam, cantavam. Mas, aos poucos, os mais velhos, os mais sábios, os mais perspicazes retiraram-se da multidão festiva do «come e bebe» e começaram a questionar-se sobre as responsabilidades que a liberdade acarretava, o que a liberdade implicava em termos de responsabilidade. Em síntese, «a Mãe tinha dado à luz» um dom potencial, mas incompleto: «a Mãe deu à luz» não significa «a mãe terminou», então o que começaria, a partir daquele momento, para a Mãe e para a comunidade?

Booker Washington ilustra o problema salientando que os brancos já tinham enfrentado e, em geral, resolvido ao longo de séculos de história em que dominavam os outros, os seus problemas de habitação, de esco- la, de saúde, de organização jurídica e administrativa, de vida democrática, de trabalho, enfim, tinham aprendido lentamente e através de mil erros e tragédias a viver como pessoas responsáveis e, portanto, livres. Os negros deportados como escravos, desarraigados dos seus contextos vitais, prisioneiros nas plantações, obrigados a trabalhos forçados sem nunca poderem responder (responsabilidade) nem pelos sucessos nem pelos erros, mantidos em estado de submissão perpétua, excluídos da educação, de um dia para o outro eram abandonados no meio das pessoas, da multidão, ao seu destino, e diziam-lhes hipocritamente: «Vós sois homens e mulheres livres»! Seriam os negros capazes de cultivar uma atitude de responsabilidade que pudesse salvar e confirmar a sua liberdade? Seriam capazes de fazer tudo o que outros povos já tinham feito para se mostrarem plenamente homens e mulheres livres? Se a escravatura tinha sido possível, não poderia ter dependido também do facto de, numa primeira fase, eles próprios não terem estado suficiente- mente preparados para defender e consolidar a sua dignidade e liberdade? O fim da escravatura dava-lhes novas oportunidades, lançando um novo desafio. Sentiam que, se não fossem suficientemente responsáveis, poderiam cair novamente no mesmo tipo de opressão que tinham sofrido até então.

Portanto, gerações inteiras de homens e mulheres dos PALOP liderados por Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, Jonas Savimbi, Samora Machel e muitos outros, revoltaram-se, armas na mão, obrigados contra a sua vontade a desencadear guerras sangrentas devido à recusa total de qualquer diálogo por parte dos colonizadores portugueses, passando por muitas mortes, destruições, sacrifícios, para que um dia todos pudessem ser livres: para estes heróis e líderes do passado recente, a liberdade e a autodeterminação dos povos e a resposta à sua «vo/ clamans» eram mais importantes do que a própria vida, sobretudo quando esta implicava a subordinação à opressão e ao desprezo do «tratocolonialismo», ao imperialismo e à aceitação de diversas formas estranhas de adaptações estruturais. E, de facto, hoje somos livres e independentes, conseguimos conquistar a liberdade tão desejada, tão sonhada e tão perseguida com suor e sangue. Mas, nestes 50-60 anos, fomos suficientemente responsáveis para preservar essa liberdade? 50-60 anos depois, podemos perguntar-nos, com Booker Talia- ferro Washington, o que a nossa liberdade, a nossa independência ainda implica hoje em termos de responsabilidade para com a «vo/ clamans» dos nossos países e dos respectivos povos, especialmente dos jovens e das crianças que foram «as flores e a única razão das nossas lutas»? A cultura da estupidez humana imperante torna urgente a mesma pergunta: o que significa a liberdade, a in- dependência como assunção de responsabilidade no contexto geopolítico mundial atual? Thomas Sankara lembra-nos que, se escolhemos arriscar ser livres em vez de viver como escravos, essa escolha deve sempre implicar, da nossa parte, a audácia, o pensamento e a lucidez de retomar o nosso lugar na história da humanidade. As crises culturais, sociais e políticas destes primeiros 50-60 anos de independência que estamos a viver não serão também evocativas de um «défice de ser, pensar e agir africano» que pode ser restaurado recorrendo novamente à audácia, à lucidez e ao pensamento endógeno libertador? A África não deve continuar a lutar para imitar os outros, mas para voltar a ser ela mesma, re- encontrar o seu génio, reinventar o seu destino histórico no concerto das nações e retomar a posse da sua narrativa com a consciência de que a humanidade é una e indivisível e que a África é o seu Berço. Este é um privilégio na história da humanidade que também implica uma respon- sabilidade particular na própria história da humanidade. Tal como a chama de uma vela que, mesmo quando virada, continua a propender para cima, assim também o homem esmagado pelo destino se levanta sempre para combater. Que reflexões sobre a história e o renascimento africano propor para que as diversas formas de cruel estupidez humana que prosperam neste século XXI, de qualquer origem — brancos, ama- relos, negros, africanos, asiáticos, europeus, oceânicos — não voltem a bater às portas das nossas casas, para se alojarem ali de forma inamoví- vel nos próximos 50-60 anos? Em síntese, se o anúncio «A mãe deu à luz» não implica que «A mãe terminou», o que devemos fazer agora de absolutamente biofílico para os próximos cinquenta anos?

Marcos Carvalho Lopes

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