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A maiêutica socrática (parte 1)

Gonçalo Armijos Palácios*

Uma das contribuições de Sócrates é a de ter fornecido um método que permite que todos percebam que podem chegar a reconstruir os mesmos raciocínios que mentes como a de Pitágoras e Aristóteles

Quando pensamos na contribuição dos grandes filósofos à história da filosofia podemos pensar nas diversas teorias que eles desenvolveram para resolver ou, pelo menos, tentar resolver os variados problemas com que cada um deles foi se defrontando. Pensando, a partir do último artigo, sobre as contribuições que, ao meu ver, alguns desses grandes filósofos clássicos fizeram, lembrei dos filósofos anteriores a Sócrates e me detive, perplexo, em Sócrates. Pois era muito fácil dizer para mim mesmo quais foram tais contribuições no caso dos pré-socráticos, assim como dos socráticos, particularmente Platão e Aristóteles. Mas não foi fácil fazer o mesmo com Sócrates. Com efeito, Tales, Anaximandro e Anaxímenes adiantaram teorias cosmológicas que, em muitos sentidos, antecipam, com suas brilhantes intuições, diversos resultados da ciência contemporânea. Tales, para começar, não estava equivocado quando dizia que a Terra flutua sobre água, pois, efetivamente, a crosta terrestre flutua no magma. Mais ainda, ele afirmava que os terremotos eram o resultado desse flutuar. Seu discípulo Anaximandro, além de ter desenhado um mapa em que a região do Mediterrâneo é muito semelhante à dos mapas modernos, forneceu uma teoria sobre a origem da vida que mantém a tese de que os primeiros animais se originaram da umidade e que só depois buscaram a parte seca da terra. Anaximandro afirmava, ainda, que os seres humanos não poderiam ter sido sempre como eram naquela época (e como são hoje) — isto é, incapazes de tomar conta de si mesmos desde seu nascimento —, porque se sempre tivessem sido assim, nunca teriam sobrevivido na natureza, à diferença de animais que desde que nascem podem tomar conta de si mesmos e sobreviver sem ajuda dos pais. Anaximandro disse, também — o que não deixa de resultar surpreendente —, que os primeiros humanos nasceram dentro de peixes, e que, tendo sido alimentados como tubarões, começaram a estar em condições de sobreviver por si mesmos e se dirigiram à terra para nela viver. Não há, contudo, nenhuma alusão a um processo evolutivo, e é falso pensar que Anaximandro pensou tal processo em termos darwinianos ou que Charles Darwin tenha se inspirado em Anaximandro para desenvolver sua teoria. Nenhuma coisa nem outra. Mas, mesmo assim, não deixa de ser interessante perceber que já na época dos antigos gregos adiantavam-se hipóteses sobre o homem não ter sido sempre como era e que em tempos remotos devia ter sido completamente diferente. A teoria de Anaxímenes, segundo a qual por condensação e rarefação o ar se converte nos outros elementos (água, terra e fogo), é de uma simplicidade e de uma profundidade de tirar o fôlego. Xenófanes nos surpreende com uma teoria que aponta ao antropomorfismo do conhecimento e em Heráclito e em Parmênides encontramos duas teorias metafísicas decisivas para a história da filosofia. Não podemos esquecer as contribuições para a matemática de Pitágoras nem a antecipação de o universo ser composto de partículas, o que é um legado de um processo que começa em Empédocles e Anaxágoras e termina em Leucipo e Demócrito, com a teoria dos átomos.

As diversas teorias dos antigos filósofos, em resumo, são surpreendentes pela antecipação à teorias modernas e contemporâneas e por sua proximidade da verdade. Não preciso falar das contribuições de Platão nem, pior ainda, das de Aristóteles, a mente que até pouco tempo estava por trás de todas as ciências conhecidas. O fato de terem errado nisto ou naquilo é de somenos importância. Importa ver o alcance e profundidade de suas intuições e a quantidade enorme de problemas que perceberam e, em muitos casos, legaram para nós ainda ter de discuti-los. Mas, justamente, pensando em tudo isso cheguei a me perguntar: e Sócrates… qual é mesmo seu legado e sua contribuição?

A pergunta não deixa de ser pertinente porque, à diferença de todos os grandes filósofos de quem posso me lembrar, Sócrates não escreveu uma página nem defendeu teorias, como todos os pensadores mencionados. Em que consiste, então, sua contribuição à filosofia?

A resposta pode estar numa história que ele mesmo conta e que seu discípulo, Platão, registrou para a posteridade. Sócrates conta que um amigo seu foi ao oráculo em Delfos e lhe fez esta pergunta: há alguém mais sábio que Sócrates? O oráculo respondeu que não, que não havia ninguém mais sábio do que ele. Quando Sócrates ficou sabendo disso ficou perplexo, pois sabia que não era nem um Pitágoras nem um Tales, nunca tinha escrito uma página nem tinha defendido teorias sobre o assunto que for. Para demonstrar que o oráculo estava errado, ou corroborá-lo, Sócrates se viu na necessidade de ir e procurar todos os homens que, na época, se diziam sábios. E foi questionando-os um por um sobre o assunto em que se diziam sábios. O resultado dessa série de conversas com os pretensos sábios foi que nenhum deles o era de fato. Que se achavam sábios, mas não eram. Chegar a essa conclusão era simples para Sócrates porque, em todos esses diálogos, eles sempre se contradiziam e terminavam afirmando o oposto do que começavam mantendo. À diferença deles, Sócrates não dizia que sabia, e aí estava sua grande vantagem. Ele era ciente de sua ignorância: sabia que nada sabia. Isso, de por si, já é uma atitude digna de admiração, porque não é a que costumamos encontrar entre algumas pessoas. Mas o interessante é que para produzir o resultado negativo ao qual chegavam, Sócrates precisava dominar um método discursivo. Esse método é a maiêutica. A palavra originalmente designa a arte da parteira. A mãe de Sócrates tinha sido parteira e Sócrates pensava que era isso que ele fazia com seus interlocutores: os fazia dar à luz idéias. Em Sócrates, esse método discursivo, sua maiêutica, tem um resultado negativo, a contradição. Nas mãos de Platão, o mesmo método é empregado para que o interlocutor chegue a resultados positivos e perceba que ele mesmo infere conclusões verdadeiras sobre os assuntos discutidos. Como método pedagógico é, penso, insuperável. Platão emprega esse método para fazer um escravo demonstrar o teorema de Pitágoras (aquele segundo o qual o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos)1 . Bem, nestas duas últimas semanas tenho feito exatamente isso com meus alunos, em duas turmas diferentes, os alunos, sem saber o que estavam fazendo com as figuras que eu tinha desenhado no quadro, só mediante minhas perguntas e sem eu dar as respostas, chegaram à conclusão daquela equivalência. Só quando eu expressei a equivalência nos termos do teorema é que perceberam o que tinham feito. Em outras duas ocasiões, também, duas alunas, em turmas diferentes, resolveram uma das aporias de Zenão, uma que fora resolvida por Aristóteles na sua Física (obra em que o filósofo de Estagira afirma serem tais aporias muito difíceis de se resolver). Aquilo de eu ter logrado mostrar aos meus alunos que podem, com suas próprias mentes, recriar o mesmo tipo de raciocínios que passaram pelas mentes de filósofos como Pitágoras e Aristóteles, é um feito que devo a Sócrates e a Platão ou, então, à maiêutica socrática na sua versão platônica. Com isso posso insinuar uma conclusão aos meus alunos: é filósofo, não quem diz que sabe, mas quem demonstra que sabe pensar por si só.


1 Veja-se o Meno de Platão.


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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