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A maiêutica socrática VI: Ética e verdade

A grandeza de Sócrates consiste em ter escrito com seus passos o que outros só escreveram com as mãos

É mesmo surpreendente que, mesmo sem ter escrito nada ou defendido teorias, Sócrates seja um dos pilares da filosofia ocidental. Alguém poderia acreditar que Sócrates só é considerado um grande filósofo por ter sido mestre de Platão. Assim, seria o brilho do discípulo que iluminou o mestre e o fez conhecido. Mas, não, o brilho de Sócrates não é simplesmente o reflexo da luz de outro filósofo; ele brilha com luz própria. Sócrates não foi unicamente um grande argumentador nem sua contribuição se limita a ter construído um método dialético formidável, a maiêutica. Seu procedimento é a confluência de verdade e ética. É sobre isso que quero refletir hoje.

Não deixa de me incomodar ouvir aquilo de que “tudo é relativo”. No sentido em que isso costuma ser dito, poucas coisas, na verdade, são relativas. Dizer que neste instante estou escrevendo estas linhas, por exemplo, não é relativo a nada, é absolutamente verdadeiro. Como, pelo contrário, dizer que não estou escrevendo agora mesmo estas linhas, é absolutamente falso. Em questão de gostos, também, a coisa não muda. Se de duas pessoas, uma acha gostoso o café mais amargo e a outra mais doce, isso não significa que o gosto não exista nem que uma, de fato, ache prazer em bebê-lo amargo e a outra não. Se eu sinto frio enquanto outra pessoa sente calor, não significa que não existam as sensações de frio e de calor nem que seja falso que uma sente uma coisa e a outra o contrário.

E quanto ao agir… como estão as ações atreladas ao verdadeiro e ao falso? Esse não é, na verdade, um assunto simples. Mas podemos tentar nos esclarecer ao respeito. Talvez o agir correto não seja outro que a coerência entre nossas ações, nossas motivações e nossas intenções, sempre que nossas ações visem o bem da comunidade e de nós mesmos ou que, pelo contrário, não sejam destrutivas para a comunidade e para nós mesmos.

A verdade ética, segundo parece, está intimamente ligada à coerência de nossos atos, e esse é justamente o exemplo de Sócrates.

Vimos que Sócrates foi processado. Na Apologia de Sócrates¹ , escrita por seu discípulo Platão, podemos ler o que deve ter sido a defesa que o filósofo fizera de si mesmo. “Mas que defesa foi essa?”, podemos perguntar depois de tê-la lido. Na verdade, como defesa deixa muito a desejar, pois mais parece uma série de provocações ao júri do que um discurso que vise inocentar o réu, isto é, ele próprio.

Como sabemos, naquele tempo, podia ou réu se defender ou pagar outros para que o defendam. Sócrates escolheu fazer sua própria defesa. Uma vez ela terminada, cabia ao júri decidir sobre a culpabilidade ou inocência do acusado. Se o acusado era declarado culpado, este podia propor uma pena alternativa à que fora proposta pelo acusador ou acusadores. No caso que nos ocupa, os acusadores de Sócrates queriam a pena de morte. Uma vez proposta uma pena alternativa (exílio, multa ou prisão), correspondia novamente ao júri decidir se a aceitava ou mantinha a dos acusadores.

Desde o início de sua defesa, Sócrates adverte que iria falar exclusivamente a verdade. “De mim — disse no início — ireis ouvir toda a verdade.” Contudo, não somente a verdade foi dita pelo filósofo, mas uma verdade que, ele bem o sabia, poderia levá-lo à morte. Na sua defesa, não negou que ouvia uma voz, a voz de uma divindade, que o dissuadia de fazer certas coisas. (Fato que Méleto usou contra Sócrates para provar que introduzia novas divindades, diferentes das admitidas oficialmente por Atenas.) Mais ainda, disse no final de sua defesa que a voz não o tinha dissuadido de se defender como o fez — o que, com certeza, levou a somar os votos necessários para sua condenação.

Depois de ter refutado Méleto e antes de que o júri delibere, Sócrates faz esta estranha advertência: “no caso de me absolverdes… [e] ainda mesmo que me dissésseis: Sócrates … vamos absolver-te, com a condição de parares com essa investigação e não te dedicares de hoje em diante à filosofia; porém, se fores mais uma vez apanhado nessas práticas, morrerás por isso; se me absolvêsseis, como vos disse, sob essa condição, eu vos falaria nos seguintes termos: …quer me absolvais quer não, ficai certos de que jamais procederei de outra maneira, ainda que tenha de morrer mil vezes”! (29c-30c) E a maneira como ele disse que iria proceder se encontra no meio do trecho reproduzido. Adverte a todos que, caso for absolvido, iria continuar se aproximando dos atenienses e, com cada um deles, caso estiverem agindo incorretamente, isto é, dando mais valor às riquezas do que à virtude, faria o seguinte: “repreendê-lo-ei por dar pouca importância ao que é de mais valor e ter em alta estima o que de nada vale. Assim procederei com quantos encontrar: moço ou velho, estrangeiro ou meu cidadão”. (29e-30a) Desse modo, Sócrates não deixou de adverti-los — na verdade, ameaçá-los — e de provocar reações adversas. De fato, pelo que vemos no diálogo, os presentes se exaltaram repetidas vezes durante sua intervenção pelo que se viu na necessidade de pedir-lhes que se acalmem. Pouco depois diz que se ele se tivesse ocupado da política, já teria sido morto muito antes, por eles mesmos, pelos próprios atenienses, que não deixam escapar vivo um político honesto. Vejamos suas palavras: “Não vos zangueis por vos dizer a verdade; mas é fato que não escapará de morrer quem quer que se vos oponha sem temor ou a qualquer outra assembléia popular, para impedir que na cidade se pratiquem injustiças ou iniqüidades. Se quiser viver algum tempo, o paladino da justiça terá de conservar-se como particular, sem imiscuir-se na vida da cidade”! (31e) E ele, apesar de saber isso, não deixa de lembrar os membros dessas mesmas assembléias que, caso fosse absolvido, iria provar, um por um, que levam uma vida afastada da virtude, desmascarando-os publicamente. Sócrates era tão ciente disso que, numa parte de sua intervenção reconhece: “Por isso mesmo, atenienses, estou longe de argumentar no meu próprio interesse, como se poderia imaginar, porém no vosso, para que com minha condenação não venhais a pecar contra a dádiva que vos concedeu a divindade”. (30 d-e) E a dádiva não era outra senão a de terem Sócrates como concidadão!

O resultado não poderia ter sido outro. Sócrates foi condenado a morte. No final de sua defesa diz calma mas ironicamente: “Mas, está na hora de nos irmos: eu, para morrer; vós, para viver. A quem tocou a melhor parte, é o que nenhum de nós pode saber, exceto a divindade”.

A verdade do procedimento ético de Sócrates não está tanto no que disse, mas no que fez; e não fez outra coisa que, coerente com suas convicções, dirigir seus passos ao encontro da morte… só para continuar vivo na memória e no respeito das gerações posteriores — memória e respeito que a passagem dos séculos não tem conseguido obliterar.


¹ Platão, Apologia de Sócrates. Belém: Editora Universitária UFPA, 2001, 17 b

Marcos Carvalho Lopes

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