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A METÁFORA DO ESTÁDIO DA MACHAVA

Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Jose Maria Langa, Eva Trindade e Carlos Carvalho

 Quando o livro de Thomas More (1516)[1] sobre a utopia (u=não – topos=lugar) foi dado ao público (Libellus vere aureus, nec minus salutares quam festivus, de óptimo rei publicae statu deque nova insula Utopia), escandalizou empiristas e racionalistas mas fecundou o pensamento dos idealistas,  criando a possibilidade da existência, num topos (lugar) não físico mas metafísico – dentro de nós – as esperanças de fraternidade humana, que os topos (lugares) geográficos, políticos e culturais nos negavam.

A novidade não estava no homem se poder deixar habitar por esperanças de verdade e ou fraternidade, porque esta possibilidade já estava presente nas proto utopias  clássicas, como a República de Platão,  a República de Diógenes, no De Civitate Dei de Agostinho, no Liber Figurarum de Joaquino de Fiore, ou ainda na Cidade do Sol (1623) de Tommaso Campanela. A novidade era poética, artística, mas sobretudo existencial; estava nas cores, no pintar com as nossas tonalidades preferidas, os sonhos, os desejos de liberdade, numa geografia que ainda não era mas que poderia ser. Ser, como Craveirinha, cidadãos de um país – e sociedade em devir – que ainda não existia…

O estádio da Machava, onde nasceu a nacionalidade moçambicana, é o lugar metafórico da nossa epopeia existencial.  Nascemos na Machava, sobre a cinzas de Salazar (Estádio Salazar) e da vigilância anti-liberdade da vizinha cadeia da Machava e o vizinho quartel dos paraquedistas, hoje apelidada com o nome de um outro paraquedista…

A 25 de Junho, a tortuosa cor da púrpura, que a bandeira portuguesa representava, num silêncio que disfarçava mal  o fim simbólico de postulados e axiomas históricos de dominação, descia do seu pedestal e novas estéticas (aisthétikos – sentimento comum) se erguiam como grito de uma utopia que saía do espaço metafísico – do interior de sujeitos oprimidos – e do estádio soprava como um logos, verbum vivificante, no sentido bíblico, para o físico e sobretudo existencial-humano do que era então Moçambique.

Enfim livres, mas o que essa liberdade comportava como responsabilidade (Booker Taliaferro Washington)? Lembrar-nos-íamos que as utopias são verdadeiras quando são  sociais e quando não o são transformam-se em distopias?

Essa utopia, a nossa utopia  foi, hermeneuticamente traduzida, de ideias em acto, por jovens, rapazes e raparigas que, como diz o poeta pernambucano (Zezinho), souberam ser “pergunta de esperança e profetas de um novo reino”.  

Hoje, o número de utopias distopizadas (desconseguidas) nos 45 anos da nossa (in)dependência política são inúmeras. Umas pelos salazarismos  da política mundo, outras pelos percalços da nossa caminhada mas, sobretudo, por termos transformado (com os nossos paraquedistas) o imperativo social das utopias em quimeras indivíduo-centradas.

A distopia hodierna abre espaço ao retorno da(s) bandeira(s) colonial(is) com estrelas acrescidas de europeus que acompanham ou se fazem acompanhar de outras estrelas (americanas, chinesas…). Os Ghorwane num motivo musical particularmente invocador (Sathani-Diabo), denunciam o retorno de colonizadores sob capa  de doadores e pacificadores (portugueses que se fazem acompanhar desta feita por americanos, alemães…) como os principais agentes da confusão, de distúrbios e até de guerra.

A nova colonização apresenta-se com cara simpática, risonha, solícita; não de Mouzinhos de Albuquerques, com cavalos e espingardas,  mas com dólares e doações,  a mesma cara com que o Cuco (ave ladra) se apresenta, quando se aproxima do ninho de outros pássaros.

O paradoxo é que a nova colonização tem lugar diante de uma nova juventude, em teoria mais informada, mais academicamente formada, mais tecnologicamente instruída, mais crítica e com maior consciência de si,  consciente mas conivente da prisão de um novo círculo – infernal – de dependências.

O processo de imunização do corona vírus, o período pós-corona, pode ser uma possível etapa de historicidade, da construção de uma utopia (Victor Hugo chamava verdade do amanhã) de emancipação colectiva, intramuros, conditio sine qua non,  da nossa presença e existência na história mundo.

O que significa presença e existência na história mundo? As probabilidades matemáticas, levam, ciberneticamente a pensar, num pós-corona em que a dominação dos poderes hegemônicos mundiais vai se acentuar. No caso em espécie, com os BigDatas, empresas farmacêuticas, conselheiros financeiros,  União Europeia, Estados Unidos, China, a dominarem ulteriormente. Porém, a vontade de resistir (se ela existe) às distopias  actuais que nos remetem a uma nova colonização, deveriam nos fazer regressar ao estádio da Machava. Não para ouvir os longos e excessivos monólogos doutrinais de Machel, mas para no lugar do nosso nascimento como donos de uma Pátria,  nos olharmos nos olhos e dizermo-nos o que de facto queremos: hastearmos a nossa bandeira e com ela as nossas utopias de liberdade? ou com um subsulto de orgulho reerguermos o estandarte da nossa moçambicanidade? soçobrarmos neste miserabilismo, grupismo, gangsterismo, egoísmo, dolarocratismo que desenterram o que tínhamos sepultado na Machava em 75 (tumba do capitalismo e da opressão) que nos fazem cada dia morrer um pouco mais como país e povo?

O que o neo-liberalismo quer nós sabemos e não mudará: fazer de nós (como outrora os liberais e os capitalistas como os  colonialistas)  subalternos e dependentes. Mas o que nós queremos? Queremos mesmo continuar a depender das estratégias neo-coloniais  de todo e qualquer Boustani ou Nhangumelo desta vida – interno ou internacional? Se não, o que estamos dispostos a fazer para que nossos filhos não sejam os George Floyds, nem se tornem emigrantes obrigados a morrer no Mediterrâneo em busca da sobrevivência que não damos, para que nossos filhos não sejam carne de canhão de Nhongos, dos insurgentes de Cabo Delgado e dos jiadistas-petrodolaríferos  por detrás deles? que temos também de fazer para que o seu pão e existência não dependam do bem querer das instituições “altruístas, filantrópicas e de caridade (FMI, BM, União Europeia) e tudo o que eles têm do estádio da Machava salazarista, com os seus campos de paraquedistas e as suas cadeias anti-nós e/ou anti-liberdade?

Nós temos que voltar ao estádio da Machava onde Machel, retomando Mondlane, gritou: “moçambicanas e moçambicanos…” e proclamou a independência total e completa de Moçambique; onde Sitoi e Sérgio Albasini no dia 29 de Junho de 1975 marcaram os golos da nossa vitória contra a Tanzânia, (2 a 1) que parecia o prenúncio de um Moçambique com futuro.

O poeta e filósofo romano Horacio (Quintus Horatius Flacus 65 a.C. – 8 a.C.)  devia nos interpelar, Sapere Aude, ousar pensar – mas também ousar agir. O que significa, como outrora, não só músculos e determinação, mas também inteligência e pensamento. Os países da região  tiraram muitos benefícios de Moçambique, quando este ousou determinação: a Linha da Frente, a SADCC, a libertação do Zimbabwé, o fim do Apartheid. Que as historiografias oficiais e nacionais aceitem ou não, eles devem muito à audácia dos jovens moçambicanos – utopias de liberdade que ajudámos a tornar realidades, libertando povos e destruindo sistemas de opressão.

Quando houve o fim do Apartheid na África do sul, cansados e sem fôlego, esquecemos que estávamos no mar alto e sem direito a descanso (Julius Nyerere), e deixámos que  lógicas economicistas e hegemónicas da África do Sul pós-Apartheid se impusessem (passagem da SADCC política para uma SADC económica) com os seus corolários da nossa vosteriana bantustanização económica.

 Porém, as lógicas neoliberais a que o sistema sul africano faz referência, são hoje lógicas economicistas em debandada: bolsas em queda livre, países em recessão, companhias em falência e o sistema liberal, e os seus dogmas, em crise.

Um dos elementos centrais desta crise é o livre exchangismo, ligado à mundialização acelerada de trocas, à deslocalização das empresas, ao turismo e ao mercado transnacional por aviões e navios de carga.

O paradigma emergente, não só pela lógica anti-coronavírus, mas também por causa da crise  ambiental a que está associado, são o imperativo de trocas económicas em espaços mais contíguos, uma economia de proximidade. O Japão traz já de volta todas as suas principais indústrias antes deslocadas para a China, a França decide repatriar as suas principais indústrias para o solo pátrio, a União Europeia resolve fazer uma política económica sempre mais euro centrada e euro localizada. Neste cenário, é provável que a África do Sul perca muito das suas tradicionais interconexões, o que pode abrir espaço a uma maior cooperação regional.

Talvez seja a este nível e contra  uma economia de confrontação e de dependência – outrora denunciadas por Samir Amin – que possa emergir uma “dinâmica, não de desenvolvimento, mas de envolvimento” regional, que subordine  a economia a escolhas políticas, não de camaradas de ontem e pecuniocratas de hoje, mas de cooperação entre cidadãos e povos.

A economia sul-africana é, de longe, superior à nossa. Mas como outrora, para as nossas libertações nacionais, para a libertação do Zimbabué, para a mudança dos regimes políticos na região, nós moçambicanos fomos determinantes. Não pela força económica ou militar, mas pela força das nossas convicções, da nossa determinação e da ousadia do pensamento.

Não temos capacidade económica e financeira para competir com a África do Sul, nem sequer intelectual, mas a África austral, a nossa região, sempre que deu algum passo significativo, foi porque nós moçambicanos ousámos (audere) acreditar que as nossas utopias poderiam ser realidade e que as condições sine qua non são a nossa crença; a crença num Moçambique livre (de todos os cucos, internos e externos), inteiro (sem perda de nenhum dos seus pedaços ou cidadãos); Moçambique de todos, para todos e por isso mesmo de comunhão (cum munia, de bem partilhados) mas também aberto à solidariedade com a região e o mundo.

O desafio é transformar os Boers brancos e negros (é assim que Machel lhes chamava) em parceiros. Mas também os mulungos ( a nova cor do capital)  – pretos, indianos, brancos- que reproduzem as relações de poder e de dominação em  nossos concidadãos; pessoas com quem podemos fazer comunidade: partilhar bens, materiais e imateriais.

As grandes narrativas universalistas e coloniais do passado já esgotaram as suas funções de legitimação mas já se estão a criar outras. As nossas utopias do passado também estão sem fôlego para seguir a corrida dos tempos, por isso precisamos recriar outras, novas, e acreditar nelas. Mas à semelhança das utopias libertadoras do passado -que de Cabral definiu como paz, progresso e felicidade dos nossos povos-  elas devem ser sociais: ou elas serão sociais ou não serão.

  Então, retornemos ao estádio da Machava o quanto antes, para não deixarmos  que nos tirem o pouco de orgulho, de liberdade e de independência  que ainda nos resta.


[1] Título original em latim: “Libellus vere aureus, Nec minus salutari quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula utopia”.

Marcos Carvalho Lopes

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