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uma canção do botAfala: Descolonização (Der leone have sept cabeças)

Este texto apresenta a canção Descolonização (der leone have sept cabeças) feita pelo botAfala – Eugenio da Silva “Mentecriativa” Evandeco , Suleimane “S_many” Alfa Ba, Magnusson da Costa e Patrícia N’ zalé – grupo de hip-hop que no Campus dos Malês usa a linguagem do hip-hop para promover uma educação democrática. A canção dialoga com o filme de Glauber Rocha Der Leone have sept cabeças.

No filme de Glauber Rocha Der Leone have sept cabeças, o cineasta coloca na tela diversos personagens-tipo como estereótipos que representam encarnações das forças de colonização. Xobu, o pequeno burguês local escolhido pelos “necolonialistas” estrangeiros para governar, em uma das cenas no Boucherie Moderne [Açougue Moderno] canta de forma caricata uma espécie de formula do progresso e da civilização: “Eis o caminho do progresso./ Vou citar: estradas e escolas, sem esquecer hospitais./Telefone internacional./Televisão e latas de conserva./Eis o progresso do país./Eis o que é liberdade:/Trabalhar sem reivindicar,/Servir sem protestar./Amar sem erotismo./Criar sem vanguardismo./Falar sem admiração”. De modo muito direto, o discurso de Xobu se contrapõe a uma fala anterior, feita no mesmo cenário, pelo personagem que representa o guerrilheiro revolucionário (que lembra fisicamente Ernesto Che Guevara), que está com uma corda amarrada ao pescoço pelos colonizadores: “Há os países ricos e os países pobres. Os países ricos exploram os países pobres. É a colonização religiosa, econômica, cultural e política. A colonização determina a alienação nacional. O principal problema da luta anticolonial é a destruição do complexo de inferioridade nacional”.


A canção Descolonização (der leone have sept cabeças) parte do canto de Xobu que é complementado ironicamente por uma fala que incorpora a perspectiva do colonizador que cobra o “muito obrigado” que deveria receber por ter lhes colonizado a mente, fazendo acreditar em seu deus, tomar como padrão estético seus traços físicos etc: “sua gente será gente se copiar a minha gente”. As punch lines teatralizadas com o riso irônico de Magno TWD devem provocar respostas nas falas seguintes de S_many, Eugenio (da silva Evandeco) e Patrícia N´Zalé. Cada qual toma outra direção para pensar o que seria o progresso, resistindo aos discursos iniciais e propondo uma redescrição de propósitos e direção a partir da interrogação: será que é isso mesmo?
A fala de S_many, cheia de termos de jargão acadêmico (paradigmas, ideologias, narrativas), toma o “poder” destas palavras e deste lugar (que é a academia) como uma valorização da possibilidade de trazer um novo e potente discurso, de ter protagonismo, sem esquecer que “o passado embranquecido deixou marcas e feridas e nós seguimos mudando o rumo dessa História”. Justamente quando a voz que canta anuncia um redirecionamento da História, também muda de idioma e deixa de falar a língua do colonizador, para na língua criola de Guiné-Bissau celebrar a construção/apropriação coletiva do “hip-hop” como um ferramenta que dialoga com a tradição e constrói possibilidades de futuro. O hip-hop repercute e se contrapõe ao caminho do progresso que seduziu Xobu e continua repercutindo como refrão ou fantasma que a canção busca exorcizar.
A letra continua com Eugênio mentecriativa questionando o que seria o “progresso” e dialogando com os versos anteriores, naquilo que se enunciou sobre as “línguas” (“Não fala a língua deles, te chamam analfabeto/ Mas fazes o contrário, chamam de progresso”), falsificação da história cultura e do próprio corpo (“fazem crer que ter cabelo black é falta de moral”), procura descrever a “matrix” do neocolonialismo, que converge para o lugar comum das mentes colonizadas para pensarem de forma idêntica e despersonalizada. A letra anuncia outra direção: “O progresso não está no padrão, está na diversidade”.
O fantasma de Xobu continua repercutindo, mas agora a encenação da ironia muda de lado e de gênero, quando Patrícia pergunta “disseram que iam nos civilizar?” e oferece uma risada como resposta para a questão retoricamente colocada. Seu canto -marcado pela sua trajetória de cantora gospel – é uma novidade, pela forma como desenvolve a letra, que não abre mão de prolongar as vogais, chamando o ouvinte para cantar junto e desvelar a “arquitetura camuflada” que depois do processo de independência continua esmagando as possibilidades de liberdade e reafirmando a continuidade da luta. Essa continuidade é enunciada finalmente em criolo e repetida enfatizando o chamado para resistência e descolonização das mentes.
O fantasma de Xobu continua enunciando sua fórmula de progresso, mas fecha a canção dividindo espaço com uma voz que pergunta “será que é isso mesmo?”. Essa canção é um diálogo que recontextualiza e pensa junto com Glauber Rocha, transformando e renovando seu questionamento em novas formas de resistência e redescrição. No filme de Glauber, existe a conjunção de esforços das forças imperialistas e das forças de resistência do terceiro mundo, essas últimas representadas pelo guerrilheiro revolucionário e pela figura de Zumbi. É do personagem de Zumbi a seguinte fala:

“Há dois mil anos, leões e leopardos corriam livres pela floresta. Há dois mil anos, os deuses viviam livres nos céus e nos mares. Há quinhentos anos vieram os brancos e suas armas de fogo massacraram leões e leopardos e suas armas de fogo incendiaram o céu e a terra dos deuses. Levaram nossos reis e nosso povo para América como escravos. Nossos deuses partiram com eles. Na América, viram o sofrimento de nossos reis e nosso povo. Os escravos negros penaram para enriquecer os amos brancos. Seu suor era de sangue e esse sangue adubou as plantações de tabaco, de algodão, de cana de açúcar e todas outras riquezas da América. Um dia, nossos deuses se rebelaram. E nosso povo pegou em armas para reconquistar sua liberdade. Nós e nossos deuses lutamos há mais de 300 anos contra os brancos que nos dizimam numa barbárie sem precedentes. Mas não mataram a mim, Zumbi, que encarno os chefes assassinados. Minha lança rachará a terra em duas. De um lado, ficaram os carrascos; de outro, toda nossa África livre. Aqui em todo lugar, todo negro levará em si um pouco da África. Mas agora não enfrentaremos suas armas com lança e com magia. Contra o ódio, o ódio. Contra o fogo, o fogo.”

O hip-hop é uma forma de combater produtos culturais com a apropriação, recontextualização e redescrição: não se trata de uma posição ressentida, mas criativa e combativa. No Brasil e na UNILAB os estudantes do grupo entraram em contato com a possibilidade dessas alianças “do sul”, numa forma de construção discursiva, que faz lembrar os melhores anseios pan-africanistas do quilombismo de Abdias Nascimento.

Marcos Carvalho Lopes

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