Luís Kandjimbo *
Em 2011, o filósofo camaronês Fabien Eboussi-Boulaga(1934-2018), que se notabilizou com o livro “La Crise du Muntu”[A Crise do Muntu], que tematiza a dimensão existencial do Homem Africano,publicou um conjunto de textos ocasionais, à guisa de balanço das críticas, diatribes e polémicas travadas ao longo de décadas.
Os referidos textos estão publicados em “L’Affaire de la Philosophie Africaine”,2011,[O Caso da Filosofia Africana]. Merecem atenção os que são trazidos à colação, a título historiográfico.Parece sedutor tomar esse balanço como pretexto para identificar alguns tópicos com que, em vida, Eboussi-Boulaga se ocupou. Além da actividade missionária, enquanto padre jesuíta, e da docência universitária, produziu discursos num diálogo interdisciplinar, atravessando os universos da filosofia e da teologia africana. Por que razão terá ele desenvolvido uma reflexão sobre a “crise do muntu”?
Formação inicial e noviciado .
O filósofo e teólogo camaronês nasceu na cidade de Bafia,situada no centro dos Camarões, em 17 Janeiro de 1934. A língua dominante nessa região, oKpa, pertence à família linguística Bantu.Fabien Eboussi-Boulaga passou a infância em Lablé, localidade que acolhia a única missão católica. Frequentou a escola primária em Efok, tendo em vista a entrada no Seminário Menor de Akono, zona de influência da União dos Povos dos Camarões, movimento de libertação nacional camaronês, liderado por Félix Roland Moumié (1925-1960). Era uma época em que, no dizer de Fabien Eboussi-Boulaga, as vocações sacerdotais tinham a figura de Engelbert Mveng (1930-1995) como a mais inspiradora para os mais jovens da sua geração. Após a conclusão do ensino secundário, ingressou no noviciado da congregação dos Padres Jesuítas, em 1955. Foi seleccionado para prosseguir os estudos no então Congo-Kinshasa. Avaliados os perigos de contágio que as reivindicações políticas independentistas representavam para o noviço, os dirigentes da congregação retiveram-no em Brazzaville. Frequentou o curso de Filosofia no Seminário Maior da margem esquerda do rio Zaire.Quando chegou ao Congo-Kinshasa, viveu emDjuma, província de Bandundu, sede da congregação dos Padres Jesuítas.Ao fim de dois anos, partiu para a França.
Estudos e docência
Fez o juvenato em Laval (1958-1959), onde obteve a licenciatura em Língua Inglesa. Nessa altura, descobriu o escritor francês Saint-John Perse (1887-1975) cuja poesia foi decisiva para estruturar o seu pensamento. Em Valse, concluiu a sua licenciatura em Filosofia (1959-1962). Realizou o estágio no “Collège Libermann”, um estabelecimento de ensino secundário de Douala, (1962-1964), ensinando Latim e Inglês.De 1964 a 1968, completou a formação teológica no Instituto Jesuíta de Fourvière (França) a que estavam ligados proeminentes teólogos franceses dos anos 50,representando a “nova teologia”. São elesHenri-Marie de Lubac (1896-1991) e Henri Bouillard (1908-1981). Os estudantes daquela instituição eram autorizados a frequentar cursos tanto dentro do teologado, como na universidade. Assim, em 1968, Fabien Eboussi-Boulaga obteve a licenciatura em Teologia com um trabalho sobre o téologo protestante Ernst Peter Wilhelm Troeltsch (1865-1923): “Dogme, histoire et société dans les ‘Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen’”Dogma, História e Sociedade em “A Doutrina Social da Igreja e os Grupos Cristãos” e um doutoramento em Filosofia pela Universidade de Lyon com uma tese sobre Platão: “Le Mythe du Dialogue chez Platon. Essai sur le Mythe et le Dialogue comme Formes du Discours”, O Mito do Diálogo em Platão. Ensaio sobre Mito e Diálogo como Formas de Discurso. Foi ordenado padre em 1969.
De 1968 a 1972, Eboussi-Boulagafoi docente no Seminário Maior de Yaoundé. Ministrou diferentes disciplinas, tais como “Revelação e Fé”, “Cristologia”, “Graça, Pecado e Escatologia”, “Hebraico” e “Grego”. Entretanto, em meados da década de 70 do século XX, abandonou o ensino e fixou-se na sua região natal para viver com os camponeses e contribuir para a melhoria da sua vida. No início da década seguinte, em 1981, Eboussi-Boulaga renunciou oficialmenteà vida sacerdotal na Companhia de Jesus. Regressou à carreira docente na Universidade de Abidjan (1978-1984) e depois na Universidade de Yaoundé (1984-1994), retomando a leccionação da disciplina de Filosofia.
Reflexões e publicações
A actividade tribunícia de Fabien Eboussi-Boulaga começa a registar avanços, a partir de 1964, ao publicar textos que permitiam desvendar posições críticasperante as questões conformadoras da crise cultural em África, após as independências. Mas o seu texto seminal, “Le Bantu Problématique” [O Bantu Problemático, com o qual dá um relevante contributo ao “grande debate” sobre a Filosofia Africana, foi publicado em 1968, na revista “Présence Africaine”. Trata-se de um requisitório de críticas ao livro do Padre Placide Tempels, (1906-1977), “La Philosophie Bantoue” Filosofia Bantu, que atraía as atenções das comunidades académicas africanas, especialmente de filósofos e teólogos.
O período que esteve em retiro, vivendo na aldeia, foi igualmente fecundo. Caracterizou-se por uma intensa actividade reflexiva. Publicou vários artigos e o importante livro que é a referência no presente texto. Por exemplo: “Christianisme comme Maladie et Comme Guérison” (1973) [Cristianismo como Doença e como Cura], “Métamorphoses Africaines” (1973)] Metamorfoses Africanas, “La Démission” (1974)[Renúncia], “L’Identite négro-africaine” (1976) Identidade Negro-Africana, “L’Africain Chrétien a la Recherche de son Identité” (1977) [O Cristão Africano em Busca da sua Identidade], “Pour une catholicité Africaine” (1978) [Por uma Catolicidade Africana], “Écrivains Africains devant le Christianisme” (1978) [Escritores Africanos perante o Cristianismo], “Enjeu de ‘Dieu’: le Savoir-Pouvoir” (1979) [Questão de “Deus”: Conhecimento-Poder]; e o seu primeiro livro: “La Crise du Muntu. Authenticité Africaine et Philosophie (Présence Africaine, 1977)”, A Crise Muntu. Autenticidade e Filosofia Africana.
Do artigo seminal
Em “Le Bantu Problematique”[O Bantu Problemático], Eboussi-Boulaga tem como referência cronológica o “monsieur Jordain”, [personagem da comédia do escritor francês, Molière], da filosofia, o Padre Placide Tempelse o livro que tinha sido publicado há vinte e dois anos. Vivia-se um paradoxo. Ao mesmo tempo que se discernia um desafio do momento, isto é, o “reconhecimento eficaz do homem pelo homem, o começo do fim dos tempos bárbaros, em que o outro era necessariamente um animal estranho com face humana, um inimigo em vez de parceiro de uma mesma aventura”, escrevia Eboussi-Boulaga. Tornava-se necessário dissipar um equívoco suscitado pela “teoria da Força Vital”cuja fonte é o mencionado livro. Por isso, o artigo de Eboussi-Boulaga [O Bantu Problemático] tem a seguinte estrutura: 1º) O método e o objecto; 2º) A lógica; 3º) A ontologia; 4º) A significação histórica.
Premissas do livro
Interrogado sobre a sua concepção do que é filosofia, Eboussi-Boulaga deu uma resposta lapidar: “Afilosofia consiste em gastar o tempo libertando-se. A filosofia é basicamente libertar-se – o que pode ser subversivo ou levar-nos de volta ao desamparo total, se não conduzir a uma redistribuição das cartas com que jogamos.” Acrescentou, o seguinte: “Consiste em passar ao outro e trazê-lo para dentro de nós, segundo o paradigma da tradução, que é tradução e traição recíproca, duplamente compreendida.”
Na abertura do livro, Eboussi-Boulaga enuncia as premissas da sua crítica.
1ª proposição: Não é possível ignorar as condições de tempo, lugar, modo, relação e objecto dos discursos filosóficos. Decorrem daí mal-entendidos.
2ª proposição: Os mal-entendidos tornam insignificantes e ineficazes os discursos filosóficos perante o Muntu que se ergue à sombra da filosofia, enquanto ser por e para si, pela articulação de ter e fazendo.
3ª proposição: Portanto, se a ignorância pairar sobre as condições da génese, bem como do exercício de discursos com reivindicações filosóficas,surgirá um determinismo condicionante da construção filosófica, tornando-se esta uma ideologia ao serviço do equilíbrio de poder.
Duas décadas depois, Eboussi-Boulaga, justificava o requisitório anti-Tempels, ao ser solicitado a falar das implicações da prática filosófica, sublinhando o que referia no prefácio ao livro “A Crise do Muntu”. Sustenta que a obra vai além das circunstâncias que lhe deram origem. Prova disso é que o método adoptado pode ser aplicado a outros domínios. Mas a sua leitura requer uma empatia para que a apropriação da sua linguagem seja bem-sucedida. Para tal exige-se reflexão e lucidez. Por outras palavras, a crise do Muntu assume a forma de crise da cultura.
Uma crise importada?
Quando, em 1961, a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) publicou o seu livro “Between Past and Future”[Entre Passado e Futuro], em inglês, “La Crise de la culture”, [A Crise da Cultura],em francês, revelava-se preocupada com duas crises do Ocidente, a crise da educação e a crise da cultura. Eis o capítulo que dá título ao livro: “A crise na cultura: seu significado social e político”. Os povos do continente africano enfrentavam os desafios da luta contra o colonialismo ocidental. Por conseguinte, pode dizer-se que os processos e modelos que conduziram às crises diagnosticadas por Hannah Arendt tinham sido exportados para África. Disso ela tinha consciência, ao considerar que é “uma regra geral da nossa época, segundo a qual tudo o acontece num país, pode, também, num futuro previsível, acontecer em todos os outros países”. Para todos os efeitos, a focagem de Hannah Arendt é evidentemente ocidentalocêntrica.Ela pertence a uma geração fortemente influenciada pelo filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) que, na década de 30 do século XX, vinha reflectindo sobre a crise do homem europeu. A suas ideias-mestras constituíam o desenvolvimento de uma reflexão iniciada em 1934, quando foi convidado por uma associação cultural de Viena, Áustria. A conferência com o título “Filosofia e Crise do Homem Europeu”,foi proferida na Universidade de Praga, em 1935. Tomou forma de livro com “A Crise das Ciências Europeias e da Fenomenologia Transcendental”. Portanto, na segunda metade do século XX, as correntes críticas de origem alemã, dominantes da filosofia política, tematizam a “crise da existência europeia”. A Escola de Frankfurt com a sua Teoria Crítica é uma das mais representativas. É nela que se filiam os filósofos alemães, entre os quais Hannah Arendt e Theodor Adorno (1903-1969), exilados nos Estados Unidos, após a eclosão da II Guerra Mundial. Entre os temas que ocuparam Arendt e os membros da Escola de Frankfurt estão a violência e a banalidade do mal, a miséria humana, o progresso tecnológico e a superação de antigas formas de servidão humana. Em virtude de grande parte dos membros serem judeus europeus foram vítimas do anti-semitismo. As ameaças de morte do regime nazi estão na origem do exílio nos Estados Unidos da América. Era essa funesta vitimização que os confrontava com a necessidade de renovação da tradição filosófica europeia.
Crise do Muntu
Ora, o livro de F. Eboussi-Boulaga não se apresenta propriamente como émulo do livro publicado pela filósofa alemã Hannah Arendt, em 1961. Apesar de corresponder igualmente a uma crise, entendida como perturbações antagónicas de um determinado sistema, “ACrise do Muntu”em África tem as suas especificidades. Para lá das suas incidências eminentemente culturais, sobreleva a sua perspectiva ontológica. É da pessoa humana, o Muntu, que se trata. Por outras palavras, diríamos. As preocupações de F. Eboussi-Boulaga apontam para a crise da filosofia. De resto, critica a idolatria que reinava nesse campo do conhecimento, sabendo-se que o “lugar da filosofia é um lugar-comum constituído pelos acontecimentos, pelo que acontece, pelo que um e outro avaliam, prescrevem, elogiam ou culpabilizam, propõem ou proíbem, no presente.”Pode dizer-se que o livro de Eboussi-Boulaga é uma apologia do sujeito africano, da prática filosófica e teológica. Ele propõe a leitura de um texto filosófico africano que não está isento de influências dos ares do mundo.
O cristianismo e as crises do homem europeu são dois dos segmentos que impregnam esses ares. Por conseguinte, não é casual que o seu segundo livro, “Christianisme sans Fétiche. Revelation et Domination”, 1981 [Cristianismo sem Fetiche. Revelação e Dominação], tivesse sido dedicado à problematização do cristianismo africano.Para Eboussi-Boulaga a crise é também suportada por si próprio, enquanto sujeito que a procura compreeender. Neste sentido, considera que o pensamento da crise se revela como uma “crise radical do pensamento que se junta ao homem mais mortal, ao mais necessitado, cujo discurso está paralisado pelo desejo, pela morte, pela necessidade, pela presença elementar e corporal.”Residem aí as razões que levam o sujeito a afastar-se dastentações ideológicas, da superioridade heróica e dogmática.
Conclusão
Com a presente proposta de conversa, quisemos, por um lado, apresentar o perfil deste filósofo e teólogo camaronês. Por outro lado, tencionámos atrair a atenção para a leitura da sua obra. Fabien Eboussi-Boulagapertence à Escola Filosófica da África Central, na sua âncora camaronesa, desenvolvida na Universidade de Yaoundé. É muito pouco conhecido entre nós, até porque, exceptuando os circuitos académicos em que se abordam questões filosóficas e teológicas, os eu nome, à semelhança de outros pensadores Africanos, é muito mal conhecido. Entre os textos por ele coligidos em “L’Affaire de la Philosophie Africaine”,2011, O Caso da Filosofia Africana], mereceu uma leitura atenta o rememorar historiográfico do segundo, o quinto e sexto capítulos, nomeadamente, “Le Décalement ou Relecture de Tempels” [A mudança ou releitura dos Tempels],(pp.47-88), “L’Époque de la Philosophie Africaine”[A Era da Filosofia Africana},(pp.171-215) e “Aristote et les Bantoustans Post-Apartheid”[Aristóteles e os Bantustões Pós-apartheid] (pp.217-235). Voltaremos ao tópico, num exercício que terá em conta estas e outras coordenadas.
*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 27/08/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-pessoa-humana-no-contexto-africano-segundo-fabien-eboussi-boulaga-i/