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Eu sou porque você é

Michael Onyebuchi Eze*

Para muitas pessoas nos países de línguas bantu da África, o termo Ubuntu/botho encapsula todas as qualidades de um membro respeitado da sociedade. Mas o termo também é usado por estudiosos africanistas como uma crítica à doutrina colonialista e até forma o núcleo de uma ideologia humanista sobre a qual a nova África do Sul democrática é construída.

Pergunte a qualquer pessoa nas ruas de Harare, Joanesburgo, Lusaka ou Lilongwe (na África Austral  e Oriental) o que eles entendem por Ubuntu/botho  e eles provavelmente listarão as virtudes às quais uma pessoa nessas sociedades deve aspirar – como compaixão, generosidade, honestidade, magnanimidade, empatia, compreensão, perdão e capacidade de compartilhar. De fato, Ubuntu/botho (ou o equivalente local nos vários grupos linguísticos bantos)[1] é entendido como a própria definição de  “pessoa” ou “pessoalidade”. Mas o termo Ubuntu/botho impregna  muito mais as sociedades da região, formando a base para a ética comunitária, os discursos sobre identidade e até mesmo uma ideologia pan-africana burguesa.

Em termos do discurso africanista contemporâneo, porém, Ubuntu/botho é melhor entendido como uma crítica à lógica do colonialismo – o processo de tentar  “humanizar” ou “civilizar” culturas não ocidentais através da colonização. O colonialismo foi uma narrativa poderosa e condescendente que prosperou sob o pretexto de “humanizar” ou “civilizar” povos não ocidentais. As consequências dessa falsa doutrina do humanismo se tornariam o alicerce das práticas coloniais na África, como uma forma institucionalizada de darwinismo social[2] alimentado pelo capitalismo racialista.

O capitalismo racialista é uma teoria na qual a raça de uma pessoa determina suas escolhas de vida ou potencial, como o tipo de emprego que pode ter, onde viver, o tipo de pessoa com quem se casar, o tipo de escola para frequentar e assim por diante. Os efeitos dessa teoria sobre a experiência sul-africana podem ser vistos nas muitas leis draconianas destinadas a coibir as potencialidades da pessoa negra.

Esse sistema motivou a Lei de Terras de 1913 que proibia os negros de comprar terras na África do Sul, a barra de cor de 1918, a Lei de Educação Bantu de 1953 que aboliu o ensino  de história africana, a Lei de Reserva de Empregos que dava prioridade aos brancos em questões de emprego, já em 1907 as várias políticas de segregação restringiam a circulação de negros e os reduziam a meros instrumentos de trabalho.

Já em 1858, a constituição sul-africana-bôer havia excluído qualquer forma de igualdade entre negros e brancos em questões de Estado ou Igreja. O argumento predominante  era que o trabalho forçado era ordenado por Deus como um privilégio divino para a raça branca reivindicar autoridade de dominação sobre os negros, como o então presidente da República Sul-Africana, Paul Kruger, informou ao seu Volksraad [Conselho dos Povos] em agosto de 1897 – “Nossa constituição não quer  igualdade e a igualdade também é contraria à Bíblia, porque as classes sociais também foram criadas por Deus”. E, mais tarde, em suas Memórias,  escreveu: “… Onde havia apenas um punhado de homens brancos para manter centenas de milhares de negros em ordem, a severidade era essencial. Era preciso ensinar ao negro  que vinha em segundo lugar, que pertencia à classe inferior, que deve obedecer e aprender.”

Essa mentalidade formaria o plano político para a história colonial da  África do Sul e foi a base sobre a qual a nova África do Sul ganhou soberania nacional. Mas se o Estado colonial sul-africano tivesse sido fundado sobre a ideologia do darwinismo social, qual deveria ser o fundamento ideológico do novo Estado democrático e independente? É aqui que entra o Ubuntu/botho.

Como discurso público, o Ubuntu/botho ganhou reconhecimento como uma forma peculiar de humanismo africano, encapsulado em aforismos bantu, como Motho ke motho ka batho babang; Umuntu ngumuntu ngabantu  (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas). Em outras palavras, um ser humano alcança a humanidade através de suas relações com outros seres humanos. Mas essa compreensão não precisa gerar uma estrutura opressora, onde o indivíduo perde sua autonomia na tentativa de manter uma relação com um ‘outro’.

Muitos estudiosos africanistas descreveriam o Ubuntu/botho como uma ética comunitária arbitrária que admite o bem e o bem-estar do indivíduo apenas como uma necessidade secundária. Mas uma leitura crítica dessa condição de relação com os outros pode sugerir que a humanidade de uma pessoa floresce através de um processo de relação  e distância, de singularidade e diferença. A realização dos dons subjetivos (da humanidade) que carregamos uns aos outros motiva um desejo incondicional de ver e aproveitar a singularidade e a diferença de outras pessoas, não como uma ameaça, mas como um complemento à própria humanidade. A frase já clássica do filósofo cristão africano J. S. Mbiti: “Eu sou, porque nós somos; e já que somos, portanto, eu sou”, capta uma característica fundamental desse tipo de formação subjetiva por meio da relação e da distância. Mbiti subscreve uma afirmação da subjetividade humana que coloca o bem comunitário acima do bem individual. Discordo, no entanto, dessa priorização da comunidade em detrimento do indivíduo. Também não é algo anterior. A relação com o “outro” é de igualdade subjetiva, onde o reconhecimento mútuo de nossa  humanidade diferente, mas igual, abre as portas para a tolerância incondicional e uma profunda valorização do “outro” como um dom incorporado (embedded gift) que enriquece a própria humanidade.

Uma ideologia unificadora?

Dentro da história contemporânea da África do Sul, existem três maneiras principais pelas quais o Ubuntu foi entendido:

O primeiro é a suposição de que o Ubuntu é apenas uma filosofia anacrônica produzida por acadêmicos africanos. Aqui o Ubuntu funciona como uma narrativa alternativa para substituir a lógica colonial, um discurso desesperado de identidade – uma espécie de ética que funciona como um tipo de martelo de forja que nos ajuda a lidar com os traumas da modernidade e da globalização. O argumento é que, como não podemos identificar positivamente o Ubuntu como uma autêntica cultura histórica, ele continua sendo um discurso inventado, em um formato alienígena. Sendo “inventado”, o Ubuntu é mais ou menos um “conceito vazio” através do qual os acadêmicos africanistas realizam uma manobra flexível de formação de identidade usando um nacionalismo cultural “importado”. Buscam-se evidências de diferentes tradições culturais africanas para homogeneizar uma gama de valores que são então representados como Ubuntu. O Ubuntu é, assim, generalizado como um valor africano universal, independentemente do contexto histórico real das sociedades que o praticam. No entanto, o Ubuntu não precisa gerar uma historicidade homogênea[3] para se tornar um autêntico valor africano. E nem a falta de autenticidade histórica priva o Ubuntu de tal legitimidade normativa.

A segunda conjectura é que o Ubuntu tem o caráter de uma ideologia, apropriada para fins políticos, como ficou evidente em sua aplicação durante a Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC), e o projeto inicial de constituição da África do Sul. Como ideologia, pode ser aplicada como uma “varinha mágica” para lidar com todas as crises sociais emergentes. E como ideologia, seu uso também pode ser abusivo e deixa de ser um valor ético, tornando-se um valor-mercadoria que é então apropriado para criar uma imagem corporativa ou de marca positiva, como em ‘Ubuntu security’, ‘restaurante Ubuntu’, ‘Ubuntu linux’ ‘Ubuntu cola’, etc.

A terceira perspectiva é uma visão da história em que o Ubuntu/botho é considerado dentro do contexto histórico em que surgiu. Sendo histórica, ganha também uma legitimidade emocional e ética, uma vez que ganha significado como um bem que permanece interno às práticas de uma comunidade onde os valores Ubuntu/botho são invocados.

A questão, então, é se o Ubuntu/botho, interpretado como uma ideologia, exclui todas as possibilidades de historicidade criativa? [4]  Minha resposta é não! O contexto em que o Ubuntu/botho emergiu (mesmo como ideologia) na história política da África do Sul foi uma tentativa de configurar uma teoria da sucessão política coerente com a visão de um imaginário nacional emergente. Independentemente de suas origens duvidosas, o momento em que o Ubuntu/botho se tornou uma virtude pública que é facilmente reconhecida por todos os sul-africanos, constitui sua historicidade. A falta de origens históricas autênticas (em registros escritos, ou como dogma cultural matizado) não neutraliza sua credibilidade.

Entendido como uma narrativa de uma nova consciência nacional, o Ubuntu não oferece apenas uma legitimidade emocional para deslocar a velha ordem política; também dá à nova ordem política um senso de identidade e propósito político. Enquanto a velha ordem prosperava sobre uma noção de cidadania baseada na discriminação e na diferença, o novo regime tentou ganhar legitimidade tentando forjar uma noção de cidadania democrática que prospera através da inclusão e das virtudes cívicas. Mas a nova derrogação tem de se assentar num sistema que exclua as estruturas opressoras do passado e, em vez disso, adopte um sistema de valores que se constrói sobre uma noção de direitos e de dignidade incondicional da pessoa humana. Nesse ponto, a ‘noção’ de Ubuntu assume um caráter ético ao forjar um novo sentido de identidade nacional.

Os críticos do uso do Ubuntu como uma ideologia unificadora argumentam que ele é apenas uma ética incoerente, inventada e sem história. Mas as ideologias não são anteriores à história; Elas surgem como uma resposta a questões específicas dentro de uma época histórica, desafiando, corrigindo ou deslocando uma mentalidade (ou ideologia antiga). O desafio, então, é ver se o Ubuntu pode ser reabilitado como ideologia, focando principalmente em sua essência normativa, ou se a falta de historicidade sempre lhe negará qualquer substância real.

Ao mesmo tempo, a prática das virtudes humanas através das quais um Bantu se torna um Munhu, Umuntu ou um Muntu (etc) não é externa, mas interna ao contexto onde é praticada. No entanto, o Ubuntu foi capaz de transcender esse relativismo moral, gerando uma prática ética, que todos os sul-africanos, independentemente de sua origem sociocultural, julgaram ser boa. Essa norma avaliativa se tornaria a inspiração para a construção da nova África do Sul, guardada pela necessidade de reconciliação e não de divisão; perdão, não ressentimento; compreensão, não vingança; e ubuntu, não vitimização (ver os Documentos da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul). Estes eram valores consagrados pelo tempo aos quais a maioria dos sul-africanos já aspirava, abrindo caminho para um novo imaginário nacional. E isso dá ao Ubuntu sua autoridade moral. ■


*Michael Onyebuchi Eze é pesquisador visitante nigeriano-americano do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Stanford (EUA). Doutorou-se em História Intelectual pela Universität Witten-Herdecke (Alemanha) e lecionou estudos africanos nas universidades de Augsburg e Frankfurt. É autor de dois livros, The Politics of History in Contemporary Africa


publicado originalmente no Correio da Unesco na edição de Outubro-Dezembro de 2011(em acesso livre ao abrigo da licença(link is external) Atribuição-Partilha 3.0 IGO (CC-BY-SA 3.0 IGO) .). Disponível em: https://en.unesco.org/courier/octobre-decembre-2011/i-am-because-you-are


[1]O termo Ubuntu/botho é geralmente derivado de um modo vernáculo de se referir a uma “pessoa” entre os povos do sul, leste (alguns ocidentais) e centro da África, geralmente referidos como os grupos linguísticos bantos. Os Shona chamam uma “pessoa”  no singular munhu e no plural vanhu. Os Zulu, Xhosa e Ndebele chamam uma “pessoa” de umuntu  no singular e abantu no plural. Os Sotho e Tswana referem-se a uma “pessoa” como muthu  no singular e bathu no plural.

[2]Derivado  da teoria da seleção natural de Charles Darwin, o darwinismo social significa que as nações mais fortes têm a autoridade moral ou mesmo a obrigação de conquistar, subjugar e dominar as nações mais fracas. É simplesmente a ordem natural das coisas.

[3] A ideia de que a historiografia africana é uma narrativa histórica única, independentemente de muitas culturas, povos e tradições que habitam o lugar geográfico chamado África.

[4] A historicidade criativa argumenta que a história não é uma fixação no passado nem uma mera cronologia dos acontecimentos. A boa história está aberta a múltiplas influências e contextos.

Marcos Carvalho Lopes

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