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A “Questão de Angola”: Da história ao problema jurisfilosófico – III

Luís Kandjimbo |*

Em 1962, a “Questão de Angola” foi tema de capa da revista “Présence Africaine”, propriedade da editora pan-africana com o mesmo nome, sedeada em Paris. Era a edição n.º 42, do terceiro trimestre. Os ecos dos debates da Assembleia Geral da ONU, que chegavam a todos os cantos do mundo, tinham mais uma tribuna nesse número da revista. A iniciativa editorial evidenciava as marcas e impressões digitais do antigo secretário de redacção da revista, o grande ensaísta e intelectual Angolano, Mário Pinto de Andrade (1928-1990)

Da narratividade moral

ensaísta e intelectual Angolano, Mário Pinto de Andrade (1928-1990)

Na corrente da leitura, a narratividade histórica revela-se como a tónica dominante do texto assinado por Mário Pinto de Andrade, intitulado “Le Nationalisme Angolais” [O Nacionalismo Angolano]. De igual modo, o artigo do filósofo e Presidente do Ghana, Kwame Nkumah (1909-1972), com o título “Angola”.Entre os diferentes textos que constituem as três secções, “L’Angola d’ Hier et Aujourd’ hui», [ Angola de Ontem e de Hoje], “L’Angola et L’ONU”,[Angola e a ONU]e “Temoignages et Documents”, [Testemuhos e Documentos], destaco o ensaio de Costa Andrade “Ndunduma” (1936-2009), “L’ “Angolanité” de Agostinho Neto et António Jacinto” e os testemunhos sobre as prisões do padre Joaquim Pinto de Andrade (1926-2008) e do poeta e médico Agostinho Neto (1922-1979).

O acento que se dá à narratividade moral decorre da heroicidade subjacente aos acontecimentos já relatados e que constituem o fundamento da solidariedade tributada ao povo angolano, o sujeito colectivo responsável pelo desencadeamento da crise política internacional cujos efeitos passaram a ser suportados pelo Estado português. As resistências das comunidades históricas que formam a população do território consubstanciam virtudes fundadas em valores civilizacionais. Donde se extraem os fundamentos morais para sustentar a argumentação política e jurídica. Não se pode qualificar o colonialismo como mal, se não é das virtudes morais cultivadas pelas comunidades históricas que emana a coragem e a bravura perante a qual Portugal capitulou, quando se tratou da implementação dos princípios e normas do Direito Internacional Público.  Podemos concluir que há no Direito Internacional um preconceito que, para o filósofo inglês Alasdair MacIntyre (n.1929),consiste no “tratamento persistentemente não-histórico da filosofia moral pelos filósofos contemporâneos”. Não hesito em inscrever-me no campo daqueles que defendem a possível coexistência entre a Filosofia Moral e a Filosofia do Direito. Afasto-me da vocação imperativista do positivismo e neo-positivismo jurídico. Na verdade, em semelhante reflexão sobre um problema jurisfilósfico como é a “questão de Angola”, um tipo de crise política do século XX, a Filosofia do Direito Internacional não pode prescindir da útil problematização ética. Como vimos, este é igualmente o sentido do pensamento do filósofo norte-americano Ronald Dworkin (1931-2013), quando subscreve a perspectiva segundo a qual a discussão sobre questões relativas ao direito internacional implicava levantar questões morais. Isto quer dizer que os fundamentos subjacentes ao direito internacional são também de ordem moral.

 
Moral dos povos ou das nações?

Como se definem as comunidades históricas enquanto sujeitos morais? São povos ou nações? Os critérios para a sua definição têm vindo a ser discutidos igualmente no domínio da Filosofia. Para os positivistas a tentação consiste em privilegiar paradigmas monistas da Teoria do Estado, da Ciência Política ou do Direito Constitucional, através do recurso a dois critérios: 1)operacionalização de categorias políticas e geográficas para definir o povo; 2) reducionismo fundado em afinidades culturais para definir a nação. No contexto africano, o pressuposto subjacente à noção de comunidades históricas faz apelo a paradigmas pluralistas, justificando o recurso ao conceito de comunitarismo com que operam alguns filósofos Africanos, tal como o ganense Kwame Gyekye (1939-2019) que, em vida, formulou a teoria do “comunitarismo moderado”. Assim, as realidades e os objectos que os conceitos “povos” e “nações” designam, nem sempre recomendam o reducionismo centrado em elementos constitutivos como tradição histórica; identidade cultural, religiosa, racial e étnica; unidade linguística; ligação territorial; economia comum. Tal inadequação deve-se ao facto de os campos semânticos dos conceitos de “povos” e “nações” serem tomados de empréstimo ao Ocidente, onde dão cobertura a outro tipo de objectos e a que correspondem outras propriedades.

Os paradigmas jurisfilosóficos referidos, o monismo jurídico e o pluralismo ético-jurídico, suscitam caracterizações que resultam de abordagens como a que é realizada por Ronald Dworkin. Ele refere-se a duas teorias: o positivismo jurídico e o interpretativismo jurídico. Filiam-se no positivismo jurídico aqueles que defendem a independência do direito e da moral. Por sua vez, os defensores do interpretativismo jurídico negam que o direito e a moral sejam sistemas totalmente independentes. Com esta argumentação sustenta a ideia segundo a qual o direito abrange as regras específicas produzidas de acordo com as práticas consensuais das comunidades e princípios que fornecem a melhor justificação moral para essas regras. O dispositivo legal também inclui as regras que derivam desses princípios justificadores, mesmo que essas regras adicionais nunca tenham sido propostas. No dizer de Ronald Dworkin, o interpretativismo, por outras palavras, trata do raciocínio jurídico enquanto raciocínio interpretativo. Dworkin assume-se como um interpretativista.
Estatuto do território

De acordo com a Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos a Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados, o “território não-autónomo” de que se fala na “Questão de Angola”, é o território angolano que, por força do estatuto conferido no âmbito da Declaração, não era autónomo. Aliás, Angola, tal como Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e outros quatro territórios asiáticos, passaram a ter esse estatuto reforçado, após a aprovação da Resolução 2073 (XX) da Assembleia Geral, de 1960, que trata desta matéria.

No entanto, de acordo com a Carta da ONU o território angolano devia ser considerado separado e distinto. Por essa razão, deveria manter o estatuto, até ao momento em que o povo Angolano exercesse o seu direito de autodeterminação. De resto, no Capítulo XI da Carta, já se reconhecia a obrigação plural que pesava sobre Portugal. Em primeiro lugar, devia garantir o respeito pela cultura dos povos de Angola. Em segundo lugar, devia desenvolver acções que visavam o seu progresso político, económico, social e educacional. Em terceiro lugar, devia assegurar um tratamento justo e a protecção contra abusos de toda a ordem. Em quarto lugar, devia tornar possível uma governação autónoma, tendo em conta as aspirações políticas do povo angolano. Em quinto lugar, devia apoiar iniciativas susceptíveis de conduzir ao desenvolvimento progressivo de instituições políticas livres, de acordo com as condições particulares do território e do povo angolano.

 
Convenções e guerra justa

A guerra justa é a expressão máxima da coexistência entre a moral e o direito. Donde a relação sistemática entre a Filosofia Moral e a Filosofia do Direito, convergindo no sentido com o qual se define a Filosofia do Direito Internacional. Essa relação de convergência sistemática permite qualificar o colonialismo como mal, à luz das teorias morais da guerra justa nas relações internacionais. Assim se compreende que as guerras de libertação nacional tivessem passado a ser equiparadas a conflitos armados internacionais, sujeitando-se aos princípios da Ética da Guerra. Em que consistem os fundamentos disso?

Na sua base está a legitimação da luta pela autodeterminação contra regimes coloniais, a consagração da guerra justa e a revisão das Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos, inscrevendo-se as guerras no campo dos conflitos armados. O que tomaria forma no Direito Internacional Humanitário em negociações posteriores, tal como pretendiam os Estados africanos. A experiência histórica angolana deve ser tida em conta.

Portanto, a guerra de libertação nacional, como outras, preenchia os requisitos para ter a cobertura do Direito Internacional Geral. Para o efeito eram-lhe aplicáveis duas condições: 1) Portugal, a potência colonial e ocupante, inimigo contra o qual se conduzia a guerra, era parte das Convenções de Genebra e seus protocolos; 2) Os movimentos de libertação nacional lutando pela autodeterminação tinham declarado o compromisso de aplicar as quatro Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos. Deste modo, o  recurso ao uso da força tinha cobertura do Direito Internacional Público.
África e a condenação de Portugal

Como referi, a “Questão de Angola” tinha sido tema de capa da revista “Présence Africaine”. Na secção “Angola e a ONU”, dá-se espaço às vinte e três intervenções dos delegados Africanos nos debates da Assembleia Geral. O relatório do “Subcomité para a Situação de Angola”é a base de que são extraídas informações para a condenação de Portugal. O vigor da argumentação africana pode ser ilustrado pelo discurso do representante do Ghana, Quaison-Sackey. O diplomata ganense afirmava:

“Devo declarar, desde já, que a minha delegação não subscreve a opinião que foi avançada nesta Assembleia, segundo a qual as Nações Unidas não são competentes para discutir a situação em Angola, ou, aliás, qualquer situação que possa surgir em outros territórios não-autónomos, em África ou em outro lugar. Em nenhum lugar da Carta das Nações Unidas se estipula que as questões que afectam os territórios dependentes se enquadram no âmbito do princípio da jurisdição exclusivamente interna. Qualquer que seja a interpretação dada ao parágrafo 7 do artigo 2º da Carta, não decorre daí o direito para qualquer potência colonial de invocar aquele artigo para impedir que realizem discussões sobre questões que afectem Territórios Não-Autónomos. […]”

“O movimento nacionalista angolano nada mais é do que o reflexo dos anseios e aspirações do próprio povo angolano. A sua genuinidade está estabelecida no parágrafo 86 do relatório do Subcomité que traz à tona o facto de, embora o movimento tenha sido muito estimulado pelo crescimento em África do movimento pela liberdade e independência, as rebeliões terem sido organizadas a nível local e terem sido o resultado de reivindicações reais. Mas, numa vã tentativa de resistir ao irresistível e irreversível processo de libertação dos povos da subjugação, dominação e exploração estrangeiras, Portugal continua a recorrer à violência armada e a tomar medidas repressivas contra os nacionalistas angolanos.”

“Portugal, este pequeno Estado fascista europeu atrasado, não consegue compreender que o despertar dos povos africanos é um dos fenómenos notáveis do nosso tempo. Não se pode ignorar que o movimento de libertação nacional desferiu e continuará a desferir golpes mortais ao sistema colonial do imperialismo e que a desintegração do sistema colonial é um fenómeno irreversível dos nossos tempos. Não se pode exercer pressão a um pequeno Estado fascista para entender que o movimento de libertação entre os povos colonizados e dependentes ajuda a consolidar a paz e a acelerar o avanço social da humanidade.”

“Os membros desta Assembleia sabem que o genocídio do povo angolano põe em perigo a paz mundial, tão directamente como Berlim e outros assuntos europeus. Angola, tal como o fim do colonialismo, é um problema que está no coração de toda a humanidade progressista. Nesta matéria os ex-países colonizados e os países do Terceiro Mundo têm o apoio de todos os poderes democráticos e forças anti-imperialistas. Em todo o caso, os povos africanos que alcançaram a independência decidiram derramar o seu sangue para acabar com esta guerra colonial de extermínio contra um povo pacífico que reclama a liberdade e a independência de que foi privado por cinco séculos de escravização e dominação.”

Conclusão

Portanto, são referências como a que é feita ao “genocídio do povo angolano” que dão robustez ao fundamento jurídico e ético de que o Direito Internacional Contemporâneo necessita. A Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos a Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados enuncia a proibição de actos de agressão e genocídio. Mas enuncia igualmente a proibição de actos que violem os princípios e regras relativos aos direitos fundamentais da pessoa humana, além da protecção contra a prática da escravização e a discriminação racial. Portugal estava vinculado a uma obrigação jurídica internacional. Por isso, era responsabilizado, nos termos da Carta da ONU.

Se prestarmos atenção à intervenção do diplomata ganense, percebe-se que a argumentação incide sobre a gravidade das violações que Portugal protagoniza. Alguns deles têm conexões com a prática de actos de agressão, a inobservância dos princípios respeitantes aos direitos fundamentais da pessoa humana ou, ainda, com a a institucionalização da discriminação racial.

Na Filosofia Moral, o colonialismo é uma das manifestações do mal a nível das relações internacionais. Aí reside uma das razões para se considerar que o Direito Internacional, visto nos seus diferentes desdobramentos, Contemporâneo, Geral ou Universal, não pode ser presa de positivismos e neopositivismos jurídicos. A multiplicidade de sofrimentos infligidos durante a colonização representa um efeito da maldade do colonialismo. No caso vertente, trata-se de uma experiência histórica que, assumindo uma forma sublime no princípio da autodeterminação que culmina com a independência e soberania do Estado angolano, deve propiciar oportunidade de profundas reflexões que permitam avaliar a natureza do mal, numa perspectiva intemporal e de longa duração. Em boa verdade, a tematização do problema do mal não pode ser exclusividade da teologia. Mobiliza de igual modo a filosofia. Por essa razão, deve ser tratado como um problema que convoca a responsabilidade de todos os humanos, sendo imprescindível a experiência histórica de cada um.


Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]


Publicado originalmente em 09/07/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-questao-de-angola-da-historia-ao-problema-jusfilosofico-iii/

Marcos Carvalho Lopes

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