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A violação da Palavra

ensaio de Severino Ngoenha e Augusto Hunguana

Teólogos, juristas, jornalistas, filósofos partilham entre si, a dimensão fundacional do Verbum.

O verbo do princípio (Fiat inicial) e o verbo anti Paideia que se propõem a fazer do logos (partilhada, concordada, consensual) a antítese de toda a forma de vida violenta, desregrada…

Talvez se esteja a ouvir demais e a escutar pouco, talvez somos agredidos demais por palavras, mensagens e rumores que nos impedem uma autêntica comunicação. O que se pede em todas as situações e de maneira sempre mais obsessiva é a escuta, o espaço (interior) a libertar ou a disponibilizar para tornar fecunda a palavra. Mas a palavra que prevê a escuta tem a sua própria gramática.

Na crise da (autenticidade) palavra, e da consequente desconfiança da escuta, é primordial virarmos a nossa atenção, in primis, sobre a natureza do visviris, (o) homem, o locutor (loquere) e do objecto/objectivo/telos da sua comunicação. Como se pode escutar e ser testemunho (cúmplice) de palavras dúplices (duplas/ambíguas), mentiras proclamadas por quem pensa de maneira diferente do que diz (de como fala), sem se sentir a exigência de uma gramática que não se limita ao uso correcto da língua mas também restitua vericidade e autoridade a palavra?

Segundo tradição hebraico-Cristã, o pior sintoma de mal-estar social é a corrupção da palavra, quando Já não existe um homem sincero, desapareceu a transparência entre os humanos, dizem-se mentiras um ao outro e seus lábios falsos falam movidas por um coração duplo (salmo 12).

Quem no reino da mentira do Moçambique de hoje não se reconheceria nas palavras do salmista sobre a sociedade do seu tempo? Estamos cientes e conscientes de uma comunicação política (na e da polis) falsa, enganadora, com uma palavra manipulada e manipuladora longe da paresia, virtude (filosófica mas também política) que deveríamos ter herdado de Sócrates, como arte de dizer sempre a verdade, mesmo que por isso tenhamos que pagar um preço elevado.

Numa gramática do verdadeiro, falar é testemunhar a verdade; acto difícil pois exige disponibilidade para se estar ou se encontrar em contrasto com a posição do poder instituído e/ou majoritário. Não é só uma questão episcopal, de uma maneira geral na nossa sociedade, os epíscopos ou poimen em grego (pessoas de destaque que não são só os religiosos) privilegiam sempre mais sofismas de hipocrisia, o aparecer/parecer, como marco de pertença fiel e, sobretudo, garantia de sucesso e poder. Hoje somos uma sociedade de indivíduos duplos (clones de nós mesmos), que não dizem o que pensam (nem pensam o e no que dizem)  mas verborreiam o que lhes ajuda a perseguir os seus interesses.

“No princípio era o verbo”: palavra/logos/ verdade. Quando usamos e ousamos a palavra, a palavra que dizemos/pronunciamos já não é nossa, mas é confiada a quem escuta e não pode ser chamada para traz porque quem escuta também não é o seu único detentor. Mas a palavra diz muito de quem a pronúncia (Amadou Hampâté Bâ).


O abecedário do nosso percurso histórico como pais e os actuais impasses da verdade, sugerem a necessidade de começarmos a soletrar (silabar) o país de uma maneira diferente; a começar pelos sons (silenciosos ou cacofónicos) das praças, dos sons forjados com que se compõem as palavras, das palavras deturpadas que criam os conceitos (rizomas) equívocos. Talvez mais do fogo ardente (valores de verdade e de libertação) que das cinzas (acusações recíprocas) da velha Frelimo (Fénix) possa surgir uma nova realidade purificada dos vícios retóricos, das palavras forjadas e despreocupadas com a verdade.

Só se pode tentar mudar o país a partir de uma reflexão atenta e aprofundada dos vocábulos que chamam a realidade a apresentar-se a nos mas que, ao mesmo tempo, é de natureza a limitar o nosso campo de acesso a ela. Só se pode ampliar a plataforma do país construindo novos pódios e para isso é necessário o empenho da colectividade, já que não pode existir uma linguagem individual. O trabalho que temos que prefigurar é colectivo, uma tentativa comum, comunitário e colectiva de silabar o país no seu processo de reconstrução. O abecedário é o instrumento através do qual se pode aprender a ler. O objectivo devia ser olhar para o país segundo perspectivas diferentes e podê-lo silabar com novas consciências.

A palavra tem o dever de conseguir dominar (Emily Dickinson) – o que não significa submeter-, um histórico sobre a Frelimo e o país para nomina-los – com exactidão -, do interior das suas metamorfoses de convergência e oposição. A palavra deve ser capaz de representar a vida de Moçambique, entendendo por vida, um processo em contínuo devir, na engrenagem de um movimento contínuo.

Uma vez viva, a palavra não se limita a nominar, mas constrói envolta de si estados composicionais conscientes e inconscientes, que se traduzem em conceitos. Palavras e conceitos podem assim ser postos em constelação, já que um reenvia ao outro num jogo de espelhos mas ao mesmo tempo interpretativo que é a nossa realidade nacional. Esta mobilização de eventos e pensamentos deve começar por uma reflexão que se exerça a partir da palavra. Só parando/isolando a palavra, interrogando-a, é possível compreender a mudança diacrônica e as metamorfoses aporéticas que se produziram nela e, a adaequatio rei et intellectus / rês da intellectum que reclama o país.

A ideia de abecedário nasce desta perspectiva, encontramo-nos sempre diante de corpos mortos; o decesso de algumas palavras, conceitos (e valores) no nosso percurso histórico. Não são mortos porque inutilizados ao contrário, se continua a abusar dos conceitos de camarada, militantecombatentepovonacionalismo; de nomes como MondlaneMachel; do histórico da luta de libertação nacional mas faltam, nesse flatus vocis, nesse verbatim, os substractos que tornam essas palavras/conceitos/realidades históricas palavras vivas, capazes de substanciar, descrever o seu processo, o seu ser actual, o seu viver no aqui e agora. É como se as nossas palavras, descontextualizadas, esvaziadas do seu sentido e razão de ser, já não pudessem testemunhar de um tempo complexo, plasmático e em constante aceleração como o nosso.

Wittgenstein, no Tractatus logico-philosophicus, legou-nos uma grande intuição, isto é, que os limites da linguagem (sobre Moçambique) são os limites do mundo (Moçambique). As palavras e os conceitos nunca são dispositivos inócuos. Eles têm o poder, não só de delinear mas também de guiar o pensamento, segundo precisas categorias de sentido e enquadrar uma realidade específica, para além da qual seria difícil andar. Por isso, a palavra impõe limites ao pensamento mas, ao mesmo tempo, põe (pões) um pensamento (a Frelimo) em ação. A palavra que entra em constelação com o conceito não é dócil, não é incolor, mas participa e declina uma particular visão do mundo que hoje já não existe.

O histórico da Frelimo é, antes de mais, a história de uma concepção que triunfa, de um pensamento dominante que emana do poder e se faz poder (…). A Frelimo é o pensamento através do qual catalogamos a conceitualização do nosso percurso histórico de libertação.

Pensar a um possível ou eventual pós ou trans Frelimo, necessita de uma releitura conceptual forte, susceptível de ampliar os campos de possibilidade das palavras. Os conceitos tornam-se campos visuais: irradiando com luz a realidade, permitem-na ser colhida, remendam-nos representativamente o mundo mesmo sem reconhecer os limites.

Os conceitos que emergem das palavras oferecem-nos uma realidade estruturada e por isso codificado numa pré interpretação. Repensar a linguagem significa reflectir sobre as palavras herdadas de quem viveu antes de nós. O objectivo de um novo abecedário seria criar uma ruptura com os significados da tradição de libertação, para deixar aberto o espaço para um nominar que seja pós libertadores; a continua libertação para além dos libertadores num espaço temporal passado e ultrapassado. O pior é que a Frelimo tornou-se num aparato e, como todas as máquinas que no mundo se substituíram as democracias, ela pode prescindir dos seus militantes, do voto do povo ; ela tem como único valor o poder.

Cada palavra é um embate violento de momentos, de tempos, de passados e futuros que encontram num presente precário, momentâneo, móvel como toda e qualquer forma de vida.

A linguagem permanece o limite de um mundo e torna-se um dispositivo ao serviço de um universo para ao qual não se estão a pôr limites, porque a realidade é um contínuo perguntar-se sobre respostas que nunca se obtém definitivamente. Eis porque é preciso exercitar -por meio de uma nova linguagem – um dizer provisório; dominar os ânimos, temporariamente, sabendo que a vida é pronta a fugir a qualquer momento.

Repensar a linguagem é também, sobretudo repensar o mundo como nos foi legado,  restituí-lo  (levá-lo); aos posteriores enriquecido pelos nossos talentos -, procurando colher o instante em que aquela simbiose entre Frelimo Moçambique foi viva e um colhe no outro, toda a sua forma de inspiração da existência. O abecedário deveria interrogar, com a força de um rebelde, com a inocência de um adolescente, com a audaz incerteza de quem sabe que só se podem fazer perguntas e que toda a resposta é provisória, precária como a própria vida.

A palavra é uma construção e como outras narrativas intelectuais, permiti-nos dar sentido a história  e o mundo em que habitamos. A língua foi o meio para construir uma certa interpretação do homem. A palavra pertence exclusivamente ao reino do animal humano porém cimentou diferenças sobre as quais foram construídos diferentes sistemas de opressão. Durante muito tempo e ainda hoje, os que não podem aceder a palavra – escrita ou oral- foram/são considerados menos humanos/descriminados. Nós não nos podemos permitir à descriminação o que significa, que não podemos negar a humanidade através da palavra, a ninguém. Caso contrário, toda a nossa história terá sido um aborto (…).

Silabar uma nova linguagem pressupõe aprender uma nova leitura e por isso reconhecer o lado dominante da palavra, se se quer usar para excogitar novos, permeáveis e temporais domínios de compreensão, significado e tradução moçambicana do mundo.

Severino Ngoenha e Augusto Hunguana

Marcos Carvalho Lopes

2 Comentários

  1. Marcos, eu escutava vocês, um pouco antes dessa ” moda” que virou os podcasts, e pude ter a oportunidade de aumentar o meu pensamento ” filosófico/crítico, através dos conteúdos, que vocês produziam.

    • Que bacana Isaías! O tempo está passando, talvez a gente isnsiata no podcast como “irradiação fóssil”, repercutindo algo que está morto. Mas neste caso a causa é justamente a concorrência de grandes empresas, mudanças de algoritmos e de nós mesmos…

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