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Anton Wilhelm Amo Afro e o “Ciclo Moderno”

Luís Kandjimbo |*

Escritor

17/10/2021  ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO 09H05

A periodização da História da Filosofia Africana proposta pelo filósofo congolês Théophile Obenga compreende cinco períodos: 1) Período faraónico; 2) Período das escolas de Alexandria, Cirene e Cartago; 3) Período magrebino; 4) Período medieval de Tombuctu; 5) Período moderno e contemporâneo. Já na articulação do camaronês Nsame Mbongo, a História da Filosofia Africana pode ser analisada em três grandes ciclos: “Ciclo clássico”; “Ciclo medieval” e “Ciclo moderno e contemporâneo”.

Numa perspectiva proléptica, isto é, antes de Ibn Khaldun (Tunísia), Zara Jacob (Etiópia) e Ahmed Baba (Mali), de que falarei proximamente, vou debruçar-me sobre um filósofo do “ciclo moderno”, situado entre o século XVIII e XIX, em que se destacam filósofos e respectivas obras. Trata-se de Anton Wilhelm Amo Afro (~1700-1756) que trazemos hoje à conversa. As propostas de periodização formuladas por diferentes filósofos Africanos, permitem concluir que é consensual a sua inscrição nesse período.


Cânone da filosofia africana
Tal como referi no texto anterior, é a partir da segunda metade do século XVIII que os modelos de história da filosofia e o discurso historiográfico ocidental começaram a evidenciar a tendencial omissão de referências ao Egipto Antigo, a nomes e obras de alguns Africanos que se notabilizaram na Europa e em outras partes do mundo. O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é um dos mais importantes defensores desse discurso de negação. Portanto, os Africanos são excluidos do cânone da filosofia. É o caso de Anton Wilhelm Amo Afer. A respeito deste filósofo Africano que trazemos à conversa, existe uma importante produção bibliográfica, apesar de não ser abundante. Em língua portuguesa, Anton Wilhelm Amo Afer é totalmente negligenciado, ou melhor, desconhecido.


A sua brilhante carreira académica desenvolve-se na Alemanha, como veremos mais adiante. Mas, é em África que, no século XX, tem início o processo de inscrição de Anton Wilhelm Amo Afer no cânone da filosofia.
Kwame Nkrumah, filósofo, que viria a ser presidente do Ghana, tinha  informações, ainda nos tempos de estudante nos Estados Unidos da América, acerca da existência de publicações de Anton Wilhelm Amo Afer. Em 1957, quando se anunciou a independência do Gana, uma associação alemã de amizade Africa-Hamburgo-Bremen, ofereceu exemplares encadernados de dois livros do filósofo, além de uma síntese biográfica. Kwame Nkrumah relata estes factos numa carta endereçada ao investigador alemão Buchard Brentjes. Logo depois, em 1959, já era presidente do Ghana, encarregou dois compatriotas seus, professores de Filosofia, nomeadamente William Emmanuel Abraham e Kwasi Wiredu para empreenderem pesquisas e obtenção de cópias de exemplares da primeira dissertação de Anton Wilhelm Amo Afer, em bibliotecas europeias. Mas apenas a tese de 1734 tinha sido encontrada. Viria a ser traduzida por William E. Abraham, tendo sido ele igualmente o autor da primeira biografia, publicada numa revista académica do Ghana em 1964. No livro intitulado “Consciencism”, publicado em 1969 com a assinatura de Nkrumah, fazem-se referências ao filósofo, no primeiro capítulo em que se trata da perspectiva histórica da filosofia. Seguiu-se Paulin Hountondji que também teceu os seus primeiros comentários sobre o filósofo, num texto publicado sucessivamente, em 1969 e em 1970.


Biobibliografia
Ocuparam-se da biografia de Anton Wilhelm Amo Afer igualmente outros tantos  autores europeus e americanos. Mas, é no continente africano e suas diásporas  que vem crescendo o interesse por esse filósofo. Entre nós, tenho vindo a dedicar-lhe alguma atenção. Na primeira parte, consagrada à história, do Compêndio de Filosofia Africana “A Companion to African Philosophy”, publicado em 2004, sob a orientação editorial do filósofo ganense Kwasi Wiredu, há dois capítulos assinados por aqueles dois filósofos ganenes, emissários de Kwame Nkrumah: “Anton Wilhelm Amo” de William E. Abraham e “Amo’s Critique of Descartes’ Philosophy of Mind” [Amo e a Crítica da Filosofia Cartesiana da Mente] de Kwasi Wiredu.


Dois filósofos camaroneses publicaram obras de referência sobre Anton Wilhelm Amo Afer. São eles, Jacob Emmanuel Mabe e Simon Mougnol. O primeiro é professor de filosofia e investigador visitante da Universidade Livre de Berlim. Publicou: “Anton Wilhelm Amo. The Intercultural Background of his Philosophy” [Anton Wilhelm Amo. O contexto intercultural da sua filosofia].


O segundo, tradutor dos dois livros do filósofo iluminista, na sua versão em língua francesa, é especialista de lógica e filosofia da matemática, publicou: “Un Noir, Professeur d’université en Allemagne au XVIII siècle” [Amo Afer, um professor universitário negro na Alemanha do século XVIII], 2010.


Simon Mougnol não hesita em acusar o filósofo alemão, Imanuel Kant, de ter praticado plágio, na medida em que as ideias enunciadas em “Crítica da Razão Pura” podem ser encontradas nos escritos de Amo Afer, admitindo que, além da sua ideologia racialista, Kant tenha sido o provável responsável do apagamento de Amo da cena filosófica.


Contemporâneos, mestres e cognome

No período em que Anton Wilhelm Amo conquista notoriedade nos meios académicos alemães, surgem outros africanos ilustres na diáspora europeia, nomeadamente, o abolicionista ganense Quobna Ottobah Cugoano (1757-91); o missionário da Igreja Reformada Holandesa Johannes Eliza Capitein (1717-47); o escritor Olaudah Equiano (1745-97); o escritor, compositor musical e activista Ignatius Sancho (1729-80).

O mais influente dos mestres de Anton Wilhelm Amo foi o filósofo Christian Wolff (1679–1754), figura carismática do iluminismo alemão cuja presença era dominante nos meios intelectuais e académicos. Já o filósofo Alexander Gottlieb Baumgarten, (1714–62) tinha sido seu colega.


Anton Wilhelm Amo, natural de Axim, actual Ghana, era um filósofo formado nas universidades alemãs em pleno iluminismo. Na representação geográfica europeia da época, a região ocidental do continente africano tinha a designação genérica de Guiné. À semelhança do escritor cartaginense (tunisino) residente em Roma, Públio Terêncio Afro (Cartago, ~195 a.C.-159 a.C.), em latim  Publius Terentius Afer, adoptou igualmente o cognome “Afro” que revela a sua origem africana.


Estima-se que Anton Wilhelm Amo Afer tenha nascido em 1703 e falecido no Gana, sua terra natal, por volta de 1756. Em 1707, sob custódia da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais vai para a Holanda e é acolhido pela família luterana do duque Anton Ulrich que o adopta como filho. São-lhe atribuídos nomes da família adoptiva. Realiza os seus estudos superiores na Alemanha.


Obteve a sua licenciatura em Direito pela Universidade de Halle em 1729 com uma dissertação em latim, dedicada ao estudo dos direitos dos Africanos na Europa. Em 1730, obtém a qualificação de Mestre em Filosofia e Artes Liberais pela Universidade de Wittenberg.


O grau de Doutor é-lhe conferido em 1734, após a defesa de uma tese com o seguinte título: “De Humanae Mentis Apatheia”, [A Ausência de sensações e da faculdade de sentir na alma humana], sobre a impassibilidade da consciência humana. A partir daí vai dedicar-se à docência nas universidades de Halle e Jena onde foi professor de filosofia. Em 1736, ministrava seminários através dos quais submetia à crítica o princípio leibniziano da razão suficiente e as teorias do filósofo alemão Christian Wolff.


Data dessa época a publicação em 1738 do seu livro, também em latim, com o título “Tractatus de Arte sobrie et Accurate Philosophandi” [Tratado sobre a arte de filosofar com simplicidade e precisão].

A morte do seu benfeitor, em 1731, assinala o início das dificuldades que o vão conduzir à indigência. Aproximava-se da frustração quando, no livro do seu amigo Gottfried Achenwall, escreve uma citação de Epicteto: “Aquele que se pode acomodar à necessidade é sábio e tem uma ideia das coisas divinas”. De igual modo, a morte dos seus mentores alemães e a desilusão amorosa por uma mulher chamada Astrine, como ficou registado num poema satírico de Johann Ernst Philippi, publicado em 1747, precipitariam o seu regresso ao Ghana. A rapariga terá rejeitado o filósofo apaixonado com o pretexto de que não podia amar um “mouro”. Por volta de 1746, Anton Wilhelm Amo Afer já se encontrava na sua terra natal.


Referências à vida e obra
Até ao século XX, as referências à vida e obra de Anton Wilhelm Amo eram feitas esporadicamente. O abade francês Henri Grégoire dedicou-lhe quatro páginas, em 1808, no livro que trata da literatura negra, das faculdades intelectuais e qualidades morais dos negros. Em 1916 e 1918, por iniciativa de um bibliotecário da Universidade de Halle foram publicados dois artigos sobre a biografia de Anton Wilhelm Amo. Destaca-se a rara  presença de africanos nas universidades alemãs e a sua extraordinária carreira docente universitária. Em 1965, a Universidade Martin Luther de Halle-Wittenberg publicava pela primeira vez traduções da sua obra em francês e inglês. E desde 1994, a universidade atribui um prémio com seu nome.


O registo do discurso filosófico de Anton Wilhelm Amo Afer é apreciável no plano argumentativo. Quando se lê a sua dissertação sobre impassibilidade da consciência humana percebe-se que o centro das atenções reside no dualismo do corpo e da alma num exercício que visa, por vezes, refutar as teses do filósofo francês René Descartes. Em outra obra, define a filosofia como comportamento impulsionado pelo intelecto e pela vontade. A filosofia não tem em conta apenas o intelecto, mas também a vontade e as acções que fluem dela. Para Anton Wilhelm Amo Afer a filosofia é sabedoria e, ao mesmo tempo, uma virtude que consiste no exercício permanente da verdade reconhecida. O objectivo da filosofia é o aperfeiçoamento moral, tanto para a mente quanto para o corpo.



Portanto, quatro décadas após a publicação do livro de Paulin Hountondji, “Filosofia Africana. Mito e Realidade”, já não se devem repetir os comentários segundo os quais a obra de Anton Wilhelm Amo ainda não tem sido sistematicamente estudada. No contexto das acções que visam o reforço da cooperação entre Angola e o Ghana, a modesta bibliografia actual permite recomendar, urgentemente, a tradução e inserção da obra do filósofo ganense  no cânone filosófico das instituições de ensino de países africanos que, tal como Angola, ainda não o fizeram.
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 * Ensaísta e professor  universitário

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/anton-wilhelm-amo-afro-e-o-ciclo-moderno/

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Devo reconhecer o Dr. Kandjimbo como um bom divulgador do pensamento de Anton Wilhelm Amo para a cultura epistêmica dos angolanos.

    Por outra, essa epistemologia do desacordo é interessante na medida em que, estimula o espírito de abertura reflexiva dos académicos.

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