Luís Kandjimbo |*
O tema da nossa conversa é o hedonismo, doutrina que distingue a Escola Cirenaica formada maioritariamente por filósofos originários e residentes no território da Tripolitania do Império Romano, actual Líbia.
A sua designação deriva de “hedonê”, termo grego que significa prazer e vontade. A justificação das teses que suportam o hedonismo analisa-se em cinco vectores: a) Prazer e dor são dois estados de espírito; b) O prazer é um movimento suave; c) A dor é um movimento áspero; d) O prazer agrada a todos os seres vivos; e) A dor suscita repulsa dos seres vivos.
Na sequência da conversa que iniciámos na semana passada, parece sugestivo continuar a viagem pelo norte do nosso continente. Desta vez para conhecer uma escola filosófica que se desenvolveu em África, mais precisamente no território mediterrânico da actual Líbia. Existem várias fontes que permitem obter informações acerca da referida escola. Trata-se da Escola Cirenaica que se tornou célebre pela argumentação sistemática cultivada em defesa das virtudes que emanam do prazer.
A nossa conversa terá o seu fio condutor construído a partir da interpretação do que se lê nas fontes da história da filosofia. Não era comum até algumas décadas, encontrar referências que situassem a Escola Cirenaica no continente africano, conotando-a com o génio africano. Era situada no Oriente. A sua inscrição em África é um fenómeno recente.
As obras do historiador, geógrafo e filósofo grego Estrabão (63 a.C./64 a.C. – c. 24) e do historiador romano da filosofia Diógenes Laércio (200 – 250) são, neste capítulo, fontes de referência. As mesmas fontes que sustentavam e sustentam o discurso eurocêntrico, já denunciado pelo filósofo e historiador português José Nunes Carreira com o seu livro “Filosofia antes dos Gregos” e o francês Émile Bréhier, que é outra autoridade. Além destas fontes doxográficas, há que mencionar ainda os seus livros e a epistolografia, isto é, a sua correspondência.
Aristipo de Cirene
Aristipo (c. 433-350 a.C) nasceu em Cirene, topónimo que permite identificá-lo. Seu pai chamava-se Aritades. Admite-se que Mica ou Sonica era o nome de sua mãe. Fez os estudos em língua grega, apesar da proficiência na língua nativa. A sua formação cobria outras disciplinas, tais como a arte de falar, literatura, matemática, música, dança, desporto, além de instrução militar. Fixou-se em Atenas quando pretendeu seguir os ensinamentos do mestre Sócrates, de que tanto ouvia falar na sua terra natal. Integrou o círculo dos socráticos, tendo sido o primeiro peripatético a praticar actividade típica dos sofistas, ganhando dinheiro que enviava ao seu mestre.
Aristipo, que era contemporâneo e condiscípulo de Platão, passou depois a frequentar os círculos do tirano Dionísio de Siracusa, apenas para satisfazer o seu irrepreensível gosto pelo luxo. São frequentes as referências à ausência de simpatia recíproca entre os dois condiscípulos. As omissões que se verificam na obra de Platão e de Aristóteles, parecem ter alguma causa. Aristóteles dedica o primeiro e segundo capítulos do Livro X da Ética a Nicómaco à discussão sobre o “prazer”.
Mas é a Eudoxos de Cnido que Aristóteles atribui a paternidade das teses defendidas e que conformam a doutrina do hedonismo. Assim se explica que, tendo Aristipo e Platão sido discípulos de Sócrates, o nome de Aristipo não seja associado à justificação das teses do hedonismo. O que pode significar uma intencional desqualificação da sua autoridade na Escola Cirenaica. Émile Bréhier não vê qualquer maldade nas omissões ao nome de Aristipo quer na “Ética a Nicomaco” de Aristóteles quer na “República” de Platão.
No Livro II (65-104), citando outros autores, Diógenes Láercio refere doze livros publicados por Aristipo, em vida. Destacam-se três livros de uma história da Líbia, que ele enviou a Dionísio, seu protector.
Escola Cirenaica
Na sua “Geografia”, Estrabão considera que Aristipo foi um dos homens mais famosos nascidos em Cirene, tendo sido o fundador da Escola Cirenaica que contava com os seguintes seguidores: 1) Areta sua filha, que o sucedeu na liderança; 2) Etíope de Tolemaide; 3) Antíparo de Cirene; 4) Aristipo, o neto, filho de Areta, conhecido por Metrodidacios que, por sua vez, sucedeu a mãe; 5) Teodoro, o ateu; 6) Epitímides de Cirene; 7) Parébates; 8) Hegesias; 9) Aniceres, que teve o mérito de reformar a “seita” Cirenaica; 4) Calímaco, poeta e gramático; 5) Eratóstenes, que se notabilizava pelo seu domínio de filosofia e matemática; 6) Carnéades que, segundo Estrabão, era o maior filósofo da Escola Académica Platónica; 7) Cronos Apolónio, o mestre de Diodoro, o dialético.
Entretanto, a Escola Cirenaica inspirou o surgimento de três correntes que tiveram a condução de alguns dos referidos discípulos de Aristipo: a) hegesíacos; b) teodoreanos; c) aniceríanos. Os Hegesíacos tinham os mesmos objectivos finais, no que diz respeito ao prazer e à dor. Para eles a felicidade é completamente impossível, na medida em que o corpo está cheio de enfermidades, e a alma sofre com o corpo. É por isso que a felicidade está fora do alcance de qualquer humano. Em todo o caso, a vida tal como a morte são desejáveis. Nada é agradável ou desagradável. Para os teodoreanos a alegria, fundada na reflexão e a tristeza baseada na loucura devem ser considerados como objectivo final.
Os aniceríanos consideravam que apesar da experiência com acontecimentos desagradáveis, um sábio nunca deixa de ser feliz. A felicidade do amigo não é de por si só elegível, uma vez que não é perceptível, nem mesmo para o vizinho.
O desterro ou exílio de Teodoro, que viveu durante algum tempo em Atenas, ilustra bem o facto de os filósofos da Escola Cirenaica desenvolverem a sua actividade no país de origem. Segundo Diógenes Laércio, conta-se que quando Teodoro foi expulso, disse: “Cidadãos de Cirene, fazeis bem ao desterrar-me da Líbia e enviar-me para Grécia”.
Cirenaicos e epicuristas
Retomo a questão do significado das omissões do nome de Aristipo quer na “Ética a Nicómaco” de Aristóteles quer na “República” de Platão, que considero uma estratégica desqualificação da sua autoridade na Escola Cirenaica, relativamente à qual Émile Bréhier não vê qualquer maldade. Se o hedonismo da Escola Cirenaica é a mais consistente Filosofia Moral do Prazer da época socrática, não faz sentido tomar o epicurismo como doutrina que pode ter surgido do nada. Aliás, sabe-se que ao hedonismo segue-se o estoicismo. O epicurismo é posterior.
A este propósito, Diógenes Laércio dá conta de relatos segundo os quais Epicuro (341-271 a.C.), nascido nove antes da morte de Aristipo, tinha sofrido acusações de plágio, designadamente, o facto de se ter apropriado das teorias do átomo de Demócrito e do prazer de Aristipo. Na sua História da Filosofia, Émile Bréhier dedica uma secção inteira à “moral epicurista” admitindo que a argumentação de Epicuro e seus discípulos se tenha constituído como contra-discurso da Escola Cirenaica.
Ao referir-se à controvérsia entre Cirenaicos e Epicuristas, Émile Bréhier considera que a Escola Cirenaica, isto é, a obra de Aristipo e seus discípulos, respondem às objeções tardias de Epicuro, no que diz respeito ao “carácter fugaz e mutável do prazer”. Neste capítulo, a fonte que se revela como a mais qualificada é “Vidas e Opiniões de Filósofos Ilustres” de Diógenes Laercio.
No Livro X (1-4), refere que Epicuro foi “caluniado” pelos estóicos Diotimo e Possidónio, além de Nicolau e Socião nas suas “Refutações Diocleas”, e Dionísio de Halicarnasso. Entre as “calúnias” menciona-se a já referida apropriação das teorias de Demócrito e Aristipo. No verbete sobre Aristipo, (Livro II, 87), Diógenes Laércio chama a atenção para a formulação de uma ideia inicial de Epicuro, segundo a qual “o prazer é o fim”, que parece configurar as linhas de uma refutação da teses de Aristipo.
Após a leitura da carta de Epicuro a Meneceo pode dizer-se efectivamente que é legítimo questionar a originalidade de Epicuro. A pertinência das questões a suscitar sobre a sua teoria moral do prazer podem ser avaliadas a partir das quarenta ideias transcritas por Diógenes Laércio (Livro X, 139-154).
*Ensaísta e professor universitário
publicado originalmente no Jornal de Angola em 19/12/2021 <https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/aristipo-de-cirene-e-seus-discipulos/>