Para proporem suas teorias, os grandes filósofos tiveram que contestar seus mestres
Gonçalo Armijos Palácios*
Já escrevi acerca da expressão “ter uma leitura de” e concordei com Umberto Eco sobre ser impossível para um texto ter tantos significados quantos leitores houver dele. Tinha em mente, claro, textos não poéticos e sim textos filosóficos ou científicos, aqueles em que se defende uma ou outra tese e se desenvolvem esses ou aqueles argumentos. Contudo, reconheço que há sentidos perfeitamente aceitáveis dessa expressão. Eu mesmo posso ler o mesmo texto com intenções e finalidades diferentes. E, em cada caso, farei uma leitura diferente que procure algo específico. Posso, por exemplo, ler Platão com a intenção de determinar qual era sua atitude sobre as relações entre homem e mulher. Ou descobrir se pensava que as mulheres eram inferiores aos homens. Ou, talvez, fazer um estudo minucioso do freqüente recurso às alegorias nos diversos diálogos. Em cada caso, irei aos textos com uma atitude e uma intenção diferentes, com resultados diferentes. De qualquer modo, não posso deixar de concluir que, por exemplo, Platão não só não pensava que as mulheres eram inferiores aos homens como é enfático em afirmar que são iguais, o que o leva a defender a tese de que as mulheres devem compartilhar com os homens o governo da cidade.
Platão e Aristóteles têm atitudes diferentes a respeito de Homero. Enquanto aquele o lê tendo em mente as conseqüências políticas de suas obras, Aristóteles procura no poeta o valor estético de seus poemas. É o mesmo poeta, são as mesmas obras, e vemos em Platão e Aristóteles leituras completamente diferentes. Platão não duvida da qualidade ou da beleza dos poemas homéricos. Mesmo assim, o expulsa de sua cidade ideal por eles não se adequarem ao tipo de poesia que o cidadão daquela cidade, segundo Platão, devia ouvir.
Aristóteles não só discordou de seu mestre sobre os poetas, a discordância foi substancial e o levou criticá-lo em várias oportunidades. A Política é um dos textos em que a crítica a Platão é mais frequente e mais incisiva. Já no início, no Livro II, Aristóteles começa sua análise da proposta platônica da comunidade de mulheres e bens com esta pergunta:
Mas será melhor para uma cidade bem organizada ter tudo em comum, até onde for possível, ou será melhor te somente algumas coisas em comum, e outras não? Por exemplo, hipoteticamente, os cidadãos podem ter os filhos, as mulheres e os bens em comum, como na República de Platão, na qual Sócrates diz que deve haver comunidade de filhos, mulheres e bens? Qual é, então, o melhor sistema? O adotado atualmente, ou a legislação proposta na República? (1261 a)[1]
Como sabemos, Platão propõe naquela obra a problemática tese da comunidade de mulheres e filhos para os governantes, além de lhes proibir a propriedade privada. (As alusões de Aristóteles a Sócrates, nos trechos da Política que vamos revisar, devem ser entendidas como sendo dirigidas a Platão.) Duas objeções contundentes seguem depois da passagem citada. Aristóteles afirma que a tese da comunidade de mulheres não está devidamente fundamentada e que o os meios que levariam ao fim perseguido por Platão são impraticáveis:
De início, há muitas dificuldades na comunidade de mulheres, e o princípio no qual Sócrates baseia a necessidade de tal instituição não é firmado por seus argumentos. Ademais, o esquema, como meio para atingir o fim por ele atribuído à cidade, é literalmente impraticável, e ele não diz claramente em parte alguma como devemos interpretá-lo. (Loc. cit.)
Em outros lugares, Aristóteles é mais duro e chega a ser irônico. Como os guardiões formam uma grande família na qual ninguém sabe quem é filho de quem, o filósofo afirma: “na realidade, é melhor para uma criança ser hoje o sobrinho certo de alguém do que filho nas circunstâncias descritas acima.” Pior ainda, os laços mais fortes que unem as pessoas, os dos sentimentos paternais e filiais, desapareceriam. E Aristóteles mostra isso, pouco depois, com as seguintes palavras:
(…) na cidade descrita por Platão seria praticamente desnecessário que as pessoas se preocupassem umas com as outras, como o pai com seus filhos, ou um filho com seu pai, ou irmão com irmão. Com efeito, há dois motivos para as pessoas se preocuparem com as coisas e gostarem delas: o sentimento de propriedade e o de afeição, e nenhum desses motivos pode subsistir entre os componentes de tal cidade.
Vimos uma pequena amostra do que é a leitura entre os grandes filósofos. Uma leitura avaliativa, contestadora, que parte de uma visão diferente das coisas, que vê outros problemas, ou os mesmos de outros ângulos, propõe outras soluções e faz novas propostas. Pois nisso consiste uma parte importante da atividade filosófica: descobrir problemas e propor novas soluções. Não se faz isso, no entanto, sem contestar a tradição, isto é, sem que os discípulos refutem seus mestres. Num dos afrescos mais famosos, A Escola de Atenas, de Rafael, vemos no centro Platão e Aristóteles discordando. Enquanto o mestre aponta com seu dedo para o céu, para as coisas eternas e o mundo das ideias, Aristóteles parece lhe dizer que o que interessa são mesmo as coisas deste mundo, por isso sua mão indica no sentido oposto.
[1] Aristóteles. Política. Trad. Mário da Gama Kury. 3ª ed. Brasília : Editora da UnB, 1977.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |