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Da titularidade do direito à filosofia – IV

Luís Kandjimbo |*

A referência à “Escola de Salamanca” exprime o recurso à relação metonímica de domínio que se estabelece entre o pensamento antropológico, as línguas europeias e as línguas africanas, no período das navegações marítimas e da evangelização cristã, durante o qual a escolástica ocidental e os seus filósofos influenciaram o rumo dos acontecimentos culturais, políticos e económicos no diálogo intercivilizacional. Parece-me ser um procedimento adequado para evitar as insidiosas interpretações da expressão “filosofias afrófonas”, usada pela investigadora checa Alena Rattová, de que podem resultar falácias argumentativas. Por conseguinte, partindo do reconhecimento histórico dos sujeitos e das línguas dos territórios que se submetiam ao evangelho, a nossa conversa continuará a conduzir-nos ao problema do direito à filosofia

Gramática, línguas e léxico

Como vimos, o direito à filosofia é um direito epistémico. Prestemos atenção aos dois enunciados. Se do plano morfossintáctico passarmos aos respectivos sentidos, verificaremos que, em língua portuguesa, têm significados diferentes. É necessário proceder à análise semântica das duas locuções. Na seguinte enunciação normativa, “A tem o direito à filosofia”, o predicado selecciona um complemento directo que, por sua vez, regendo uma locução prepositiva adverbial, é precedido de um artigo. Donde a formação da crase. Em “A tem o direito à filosofia”, deduz-se que no exercício das suas faculdades e capacidades, o sujeito epistémico A, perante um outro sujeito individual ou colectivo, goza da prerrogativa de exigir o acesso, os benefícios da filosofia e das línguas em que é veiculada. Há aí a ficção jurídica de uma relação em que a filosofia e as línguas são bens epistémicos. É por isso que aqui se tematizam propriedades e objectos, isto é, os sujeitos, as suas faculdades, capacidades e poderes de realizar livremente actividades de natureza cognitiva e o conteúdo desses bens epistémicos.

Na sua qualidade de utente da língua francesa, Jacques Derrida (1930-2004) fez um exercício de interpretação do enunciado “Du Droit à la Philosophie”, [Do Direito à Filosofia], título do seu livro. Ele considerava que num primeiro sentido, o título “anuncia um programa, um problema e um contrato”. Prefere fazer alusão ao contrato. A relação subjacente, entre direito e filosofia, corresponde a uma correlação entre dois dispositivos institucionais. Num outro momento desdobra-se em “direito da língua” e “direito à língua”. Conclui que a filosofia se realiza sempre “dentro de uma língua, de um léxico e de uma gramática.”


Falácia argumentativa e o arquivo do Outro

A falácia argumentativa que pode resultar da expressão “filosofias afrófonas” reside na possibilidade de se admitir que as filosofias africanas e, consequentemente, o pensamento profundo, as crenças religiosas africanas, bem como o uso das línguas africanas são posteriores ao processo de evangelização cristã. Trata-se de uma falácia lógica que se resume no seguinte brocardo latino: “post hoc ergo propter hoc”, [ Depois disso, logo é efeito disso].O que é posterior tem a sua causa no que lhe precede.Isto significa dizer que se as filosofias africanas se tornam conhecidas em línguas europeias, então as filosofias africanas constituem um efeito que emana do pensamento filosófico ocidental. Ora, o filósofo democrata-congolês, V.Y. Mudimbe procurou desvendar essa falácia, em dois livros”The Invention of Africa: Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge”, 1988,[ A Invenção da África: Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento] e”The Idea of Africa”, 1994, [ A ideia de África]. Trata-se de duas sínteses da história dos discursos de dominação ocidental e de resistências africanas.

Os estudos dedicados à história da filosofia moderna ocidental, especialmente as chamadas “Escola de Salamanca” e “Escola Ibérica da Paz”, deixam apreender um subtexto em que se apaga o sujeito Africano, a sua condição de agente epistémico possuidor de línguas e gramáticas. A negligência intencional sobre a documentação epistolográfica existente que contém abundante informação sobre as relações diplomáticas estabelecidas entre os Reinos do Kongo e Ndongo e os Reinos católicos da Península Ibérica, bem como o silêncio relativamente ao valor do uso das línguas africanas, constituem fortes indícios disso. Já na historiografia portuguesa da primeira metade do século XX, reconhecia-se que a “Crónica da Guiné” de Gomes Eanes de Zurara (1410 – 1474) caracterizava-se, no século XV, pelo “sistemático silêncio”sobre as relações comerciais com os povos Africanos. De resto, a leitura da “Monumenta Missionaria Africana”, colecção de documentos coligidos pelo historiador português António Brásio (1906-1985) e da obra do padre italiano Giovanni Antonio Cavazzi de Montecúccolo (1621-1678), sobre os reinos do Congo, Matamba e Angola, fundada em pressupostos da “invenção de África”,fazem prova da injustiça epistémica dominante nos meios académicos europeus, também neste domínio. Na génese do diálogo pós-medieval entre a Europa e as civilizações africanas está um pensamento filosófico e teológico que, de forma ambígua e desigual, contribuiu para o itinerário acidentado desse diálogo que, em Portugal e Espanha, apresenta algumas especificidades.

 
África Global, saberes e narrativas

Nesta matéria, os filósofos e historiadores Africanos  e Afrodescendentes denunciam as injustiças epistémicas e hermenêuticas veiculadas pelas narrativas dominantes nas instituições académicas. Por isso, Herman L. Bennett é um daqueles historiadores. No seu livro “African Kings and Black Slave. Sovereignty and Dispossession in the Early Modern Atlantic”, 2019, [Reis Africanos e Escravizados Negros. Soberania e Expropriação no Atlântico da Era Moderna],assumiu o compromisso de proceder a releituras da história das diásporas africanas antigas. Concluique, na sua relação com a Europa, “a África e os Africanos raramente aparecem nas primeiras narrativas do passado português e espanhol, para além do estatuto de bem móvel já separado daquilo que em termos modernos poderia ser descrito como o político”. Na verdade, há uma África que existe para lá desse silêncio. Trata-se da África Global, uma comunidade diaspórica de mulheres e homens que, com os seus saberes, culturas e dispositivos institucionais, sobreviveram ao longo de séculos. No que diz respeito a bens epistémicos como a língua, há uma narrativa, na longa duração, por revelar ao mundo. Por exemplo, como ignorar o papel de sujeitos epistémicos como os intérpretes Africanos que se dedicaram à tradução missionária, quando os padres jesuítas se estabeleceram em Cartagena, actual Colômbia, em 1605?

Nessa altura, admitia-se, por exemplo, o reconhecimento de uma “língua angolana”como língua franca para os Africanos, em toda a América do Sul. O veículo da evangelização seria uma versão, em língua do Reino de Kongo, da “Doutrina Cristã” de 1624, livro traduzido pelo jesuíta Mateus Cardoso(1584-1625),publicado em Lisboa. Havia ainda as orações publicadas em 1629, na cidade de Lima, em versão bilíngue (espanhol-kikongo).

 
Contexto do diálogo civilizacional

A renovada alusão à Carta de Kurukan Fuga ou Carta Mandé, um documento usado no século XIII, durante o reinado de Soundiata Keita (1190-1255), no Império do Mali, serve para desencadear uma reflexão acerca dos fundamentos que sustentam a argumentação dos filósofos espanhóis da Escola de Salamanca, no contexto do encontro ou diálogo de civilizações, no século XVII, a que equivocamente se tem denominado por “descobrimentos”. Na verdade, o que está em causa são os pensamentos e comportamentos suportados pelas línguas africanas e pelas línguas europeias, no período das navegações marítimas e da evangelização cristã. Se o diálogo entre a Península Ibérica, de um lado, e a África do Norte e África Subsaariana, de outro lado, remontam a períodos anteriores ao século XII, não há vazios, na longa duração, que justifiquem qualquer amnésia histórica. Por essa razão, não é casual que essa eclética Escola de Salamanca tenha surgido num país em que tiveram lugar as seminais iniciativas da tradução de obras clássicas da filosofia árabe através das quais se tem acesso aos clássicos gregos. Isso foi obra da Escola de Tradutores de Toledo, no século XII e XIII. Desseacervo bibliográfico veio o impulso para o Renascimento europeu.

 
Unificação ibérica

O período em análise corresponde a um momento da história política da Península Ibérica que consistiu na unificação de Espanha e Portugal, de 1492 a 1640. Quando se iniciou o movimento neoescolástico do iluminismo católico, em Espanha, estavam em voga as teorias do emergente direito internacional, bem como a questão de escravizados em África, na América, no Oriente e do tratamento humano que devia ser reservado aos povos autóctones. Mas a reputação desse movimento neoescolástico ficou a dever-seaos teólogos de Salamanca, entre os quais os dominicanos Francisco de Vitória (c. 1483-1546), Mancio de Corpus Christi (1495-1576) e Melchior Cano (1509-1560. Na geração seguinte estão os dominicanos Bartolomeu de Medina (1528-1581), Domingo Báñez (1528-1604), Luis de León (1527-1591) e os jesuítas Luis de Molina (1535-1600) e Francisco Suárez (1548-1617).

 
Escola de Salamanca

A expressão “Escola de Salamanca” tem servido para designar o escol de filósofos e teólogos escolásticos que, no século XVI e início do século XVII,mantinham vínculos com a Universidade de Salamanca. O teólogo dominicano e especialista de S. Tomás de Aquino (1225-1274),Francisco de Vitoria (c. 1483-1546), era o fundador, a figura mais influente e representativa, entre teólogos dominicanos e jesuítas. Os jesuítas Luis de Molina e Francisco Suárez foram docentes nas universidades de Évora e Coimbra, em Portugal. Esta é a razão por que também se designa por “Escolástica Hispânica” e “Escola Ibérica da Paz”. Inscrita nos campos do direito natural e teologia moral, a sua produção reflexiva distribuía-se por seis grandes áreas: a) Direitos individuais; b) Direito internacional e comunidade universal; c)Guerra e paz justas; d) Legitimidade moral das explorações e conquistas do Novo Mundo; e) Ética empresarial e financeira; f) Responsabilidade dos governos e da sociedade civil perante a pobreza e a mentira.

O movimento neoescolástico chegou a Portugal, em plena ocupação espanhola, através de Francisco Suárez, um dos seus mais influentes membros que foi professor na Universidade de Coimbra, de 1597 a 1615. No Reino do Kongo, o trabalho evangélico inicial dos jesuítas, decorre de 1548 a 1555.Para o filósofo espanhol, “o homem nasce livre por força de um único direito natural e não pode ser reduzido à escravidão”. Por outro lado, ele acreditava no facto de a razão natural não permitir a “transferência de poder de um homem sobre outro pela simples designação de pessoa sem o consentimento e a própria vontade livre daquele pelo qual o poder deve ser transferido ou atribuído.”

 
Pensamento filosófico português

Na filosofia portuguesa contemporânea, a demonstração da referida injustiça epistémica, da negligência intencional e do silêncio relativamente ao valor do uso das línguas africanas, verifica-se  no volume II da História do Pensamento Filosófico Português, publicado em Portugal, em 2001, consagrada inteiramente ao Renascimento e à Contra-Reforma. Na sua estrutura, o tema da primeira parte é exactamente a dinâmica dos descobrimentos. Pedro Calafate tematiza a “antropologia portuguesa da época dos Descobrimentos” e “os direitos dos povos descobertos”, sem quaisquer escrúpulos acerca do viés bioessencialista de naturalização da diferença. Não parece avaliar a carga semântica negativa subjacente às noções de “descobrimentos” e “descobertos”. Ao passar em revista os discursos e as narrativas sobre o Outro no pensamento filosófico português, estabelece filiações com as escolas peninsulares de Salamanca, e também Coimbra e Évora, e seus filósofos, nomeadamente, Francisco Suárez e Luis de Molina. Mas o seu inventário analítico selecciona excertos de um capítulo da “Crónica da Guiné”, em que se descreve o desembarque dos escravos Africanos na baía de Lagos, situada no sul de Portugal. Merece igualmente a atenção daquele filósofo português a “Crónica de D. João II” de Rui de Pina (1440 – 1522) que caracteriza o Rei e descreve os habitantes do Reino do Kongo.

 
Língua de Angola

“De instauranda Aethiopum salute” [Para a Salvação dos Negros] é o título de uma obra de leitura obrigatória para quem pretenda conhecer a história das diásporas  angolanas mais antigas, na América do Sul. O seu autor é Alonso de Sandoval, (1576–1652), um jesuíta que viveu na cidade de Cartagena das Índias, tendo sido aí reitor do Colégio Jesuíta. Essa obra é um dos mais interessantes testemunhos sobre pessoas escravizadas originárias do território angolano, a luta pelos seus direitos e suas línguas. Cartagena tinha-se tornado um importante porto da rota do tráfico transatlântico de comércio de escravizados da América do Sul. Ao referir-se aos navios originários do porto de Luanda que transportavam pessoas da África Central, Sandoval relata situações que permitem avaliar o papel dos intérpretes Africanos nos processos de catequização e administração dos sacramentos. Deste modo, a aprendizagem da língua angolana era igualmente recomendada no Perú. Dava-se importância ao ensino e à confissão na própria língua. Eram invocadas as seguintes razões: 1) Impossibilidade de adquirir as noções necessárias para expressar a complexidade do ensino religioso; 2) Insuficiente conhecimento da língua angolana e do espanhol para garantir um ensino adequado; 3) Necessidade de uso e prática. Em 1629, a comunidade dos Jesuítas da cidade de Lima mandou imprimir um livro em espanhol e quimbundo, contendo orações traduzidas em língua do Reino de Angola.

Conclusão

O enunciado usado pela investigadora checa Alena Rattová com a qual refere a questão das “filosofias em línguas africanas” não pode ser convenientemente compreendido, se não recuarmos no tempo, porque é do exercício do direito à filosofia que se trata. Como tenho vindo a sustentar a glossobalcanização, no nosso continente, tem sido a causa do fraco conhecimento de diversas problemáticas linguísticas, literárias ou filosóficas angolanas.  Por essa razão, recorremos a um tópico da historiografia linguística angolana que permite estabelecer conexões. Se o desafio de Alena Rettová consiste em estudar as obras literárias em línguas africanas e identificar contribuições para a filosofia, não tenho dúvidas a respeito da importância que se deve atribuir às traduções e versões de publicações destinadas à evangelização cristã. Portanto, justifica-se que sejam desenvolvidos estudos aprofundados, em diferentes contextos, dos diálogos entre as línguas e as tradições filosóficas ocidentais e africanas, bem como da circulação dos esquemas conceptuais, num e noutro sentido.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 17 de Dezembro de 2023, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 17/12/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/da-titularidade-do-direito-a-filosofia-iv/

Marcos Carvalho Lopes

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