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EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E ONTOLOGIA SOCIAL NA LITERATURA-III*

MUNDOS POSSÍVEIS, VIDAS, PESSOAS E PERSONAGENS

Luís Kandjimbo**

Na nossa conversa anterior, fiz referências ao ciclo de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala na literatura oral angolana em língua Kimbundu. É aqui hoje abordado com base em categorias genológicas angolanas. Da bibliografia sobre a matéria fazem parte obras clássicas dos estudos linguísticos e literários angolanos, nomeadamente, «Philosophia Popular em Provérbios Angolenses» (1891), de  Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1857-1894), «Dicionário de Kimbundu-Português» (1945), de António de Assis Júnior (1878-1960), «Missosso I) (1958),de Óscar Ribas (1909-2004), o linguista e missionário suíço, «Folk-Tales of Angola» (1894), de Héli Chatelain (1859-1908).

Outras teorias genológicas

A teoria dos géneros da narrativa literária oral é um campo de velhas controvérsias. De um modo geral, os problemas suscitados no âmbito dos estudos genológicos e narratológicos de inspiração ocidental dizem respeito às literaturas escritas em línguas europeias, tendo em conta a fronteira que se estabelece entre literatura escrita e folclore ou literatura oral. No entanto, a institucionalização da teoria e da crítica das literaturas africanas, comprovada pela sua disciplinarização, ensino universitário, investigação e produção bibliográfica, aponta para a legitimidade de outras gramáticas estéticas, mundos possíveis e regimes de verdade que, no plano das  classificações, não se confundem com as formulações narratológicas europeias ou americanas.

Se o género é entendido como matriz de classificação da produção textual e discursiva de uma determinada comunidade  histórica, uma genologia exclusivamente eurocêntrica não pode ser útil às realidades discursivas africanas como as angolanas. Como se sabe, os diferentes códigos literários que sustentam os textos orais  fornecem critérios com os quais se determinam as propriedades discursivas. Reside aí o centro das referidas controvérsias. Já no século XIX Joaquim Dias Cordeiro da Matta e Héli Chatelain tinham chegado a essa conclusão.

«Guinada literária»

As abordagens iconoclastas da Filosofia Africana e dos Estudos Literários, em que se inclui, entre outras, a produção reflexiva do professor nigeriano Emmanuel Obiechina (n.1933) com o seu livro «An African Popular Literature: A Study of Onitsha Market Pamphlets», [ Uma Literatura Popular Africana: Estudo dos Panfletos do Mercado de Onitsha ], (1973), produziram efeitos nos espaços académicos europeus e norte-americano. Donde a crise da teoria dos géneros literários que se revela sob a batuta da «guinada literária» que se regista, por exemplo, nos domínios da Antropologia. A ilustrá-lo está a obra da britânica Karin Barber,  «The Anthropology of Texts, Persons and Publics», [Antropologia de Textos, Pessoas e Públicos], (2007). Neste contexto, desenvolvem-se presentemente reflexões sobre os textos das literaturas orais africanas e seus géneros. A antropóloga britânica revela o estado de espírito dos especialistas mais atentos ao que se passa em África, no campo das ciências sociais e humanas, denunciando os critérios etnocêntricos sobre os géneros literários. Não hesita em fazer alusão à profundidade dos trabalhos do filósofo e crítico literário nigeriano, Isidore Okpewho (1941-2016).

Géneros literários em Kimbundu

Nesta matéria, importa contar igualmente com sínteses, estudos e reflexões realizados por escritores e investigadores angolanos contemporâneos, tais como Rosário Marcelino e António Fonseca. Não há unanimismos. Admitindo-se uma variação diatópica, a classificação de géneros da literatura oral no espaço de língua Kimbundu pode resumir-se em seis categorias: 1) Misoso; 2) Jinongonongo; 3) Jisabhu; 4) Malunda ou Misendu; 5) Maka; 6) Mimbu.

Façamos uma breve leitura da interpretação efectuada pelo missionário suíço, Héli Chatelain. A primeira observação deve ser feita relativamente aos seus critérios, pois obedecem aos cânones hermenêuticos ocidentais. Por isso, define as características das referidas classes de textos nos seguintes termos: 1) Misoso: são histórias tradicionais e ficção que impressionam o cérebro dos nativos como sendo fictícias, devem conter algo de maravilhoso, de extraordinário e de sobrenatural; 2) Jinongonongo: designa o conjunto formado por adivinhas usadas como passatempo e divertimento, sendo úteis para aguçar o engenho e reforçar a memória dos seus cultores; 3) Jisabhu: é a classe representada por provérbios e anedotas, veiculando uma filosofia eminentemente moral; 4) Malunda ou Misendu: constitui a classe de narrativas históricas que representam crónicas de natureza política de que são guardiões os anciãos e chefes políticos; 5) Maka: compreende os relatos históricos e  histórias verdadeiras, tendencialmente didácticas que requerem o exercício de faculdades  como a memória, além de experiência e juízo prático; 6) Mimbu: é a classe de textos orais de poesia, com recortes estilísticos variados, tais como o épico, o satírico, o dramático e o religioso.

No dizer do escritor Rosário Marcelino, a interpretação e a atitude descritiva de Héli Chatelain são refutáveis. Não dispensam a perspectiva endógena. Assim, Jisabhu é uma classe de textos narrativos que compreende «contos (ficção), fábulas, provérbios, adágios». Misoso  e Jinongonongo são designações de uma mesma classe de textos: adivinhas e enigmas. O seu uso é territorialmente diferenciado. A primeira é usada nas províncias de Kwanza-Norte e Malanje. A segunda usa-se nas províncias de Luanda e Bengo.

Problemas e mundos possíveis

Se tivermos em conta os géneros e os mundos possíveis que lhes correspondem, podemos concluir que no horizonte está a convocação de uma ontologia. Em semelhante reflexão metadiscursiva, o imaginário angolano que dá formas aos  heróis é um universo de problemas filosóficos onde os textos da literatura oral são identificados como fontes da filosofia. Qual é o tipo de problemas filosóficos que os Misoso e Jisabhu deixam apreender? Será necessário proceder à leitura e análise das histórias tradicionais e ficcionais que impressionam, além dos contos, fábulas, provérbios e adágios, contendo elementos do maravilhoso, do extraordinário e do sobrenatural, veiculando uma metafísica e uma filosofia moral. Por fim, será necessário determinar os traços da identidade do herói. Portanto, é de personagens ficcionais que tratamos. Mais do que representações miméticas, são igualmente enigmas de natureza cognitiva. Temos vindo a associá-las a questões ontológicas, quando nos interrogamos sobre o seu estatuto e existência. Mas suscitam igualmente questões epistemológicas, quando pretendemos saber se o mundo que referem é verdadeiro. Ou ainda conexões com questões morais, entre os mínimos e os máximos da ética, quando se colocam perguntas acerca da possibilidade de as personagens e os heróis ficcionais serem modelos de conduta.

Cultura e conteúdo moral

Em 1991, num artigo publicado no Jornal de Angola, «Textos orais, cultura e práxis Ákwàkimbùndu: Kimàláwèzù kyà Túmba à Ndàlà, um modelo de conduta», o antropólogo angolano, Virgílio Coelho, debitou algumas reflexões sobre esse herói da literatura oral angolana, em língua Kimbundu, que trazemos à conversa. Tem razão, ao reconhecer a existência de um conteúdo moral, atribuindo-o a essa personagem ficcional. Mas Virgílio Coelho dedica-lhe mais atenção em outros dois volumes em que tematiza a personagem à luz da antropologia cultural, religiosa e política. Na verdade, há muito se debate em África a problemática do conteúdo moral dos textos literários orais e, consequentemente, a sua relação com a filosofia moral e a ética da literatura. Como veremos, a identidade de Kimàláwèzù kyà Túmba à Ndàlà, enquanto herói épico, dá oportunidades para a problematização dos dilemas morais, por exemplo.

Contrariamente ao que escreveu o professor da Universidade de Yale e critico literário norte-americano, Harold Bloom (1930-2019), na introdução ao ensaio, «The Hero’s Journey» [A Jornada do Herói], consagrado a alguns clássicos da literatura ocidental e publicado na colecção  «Bloom’s Literary Criticism» da Infobase Publishing (2009), as três constantes do poder da literatura imaginativa, o esplendor estético, o poder cognitivo e a sabedoria, não são universais, no sentido que  lhes reconhece, e despojados de quaisquer vínculos com as culturas de origem. Portanto, os heróis e personagens ficcionais fornecem sempre modelos explicativos para compreender os condicionalismos históricos, culturais e axiológicos que sobre os humanos incidem, sem qualquer espectro etnocêntrico de uma universalidade narrativa a-histórica.

 Kimàláwèzù nos textos

Para concluir a presente abordagem que esteve centrada na questão dos géneros literários, proponho uma ilustração das categorias de textos a que nos reportámos. Por razões de economia de espaço, trazemos dois tipos de textos: Jisabhu e Misoso ou  Jinongonongo. Recorremos à bibliografia  e autores já mencionados com o propósito de caracterizar a personagem, Kimalawezu Kya Tumba a Ndala. Os textos dos jinongonongo foram extraídos do livro «Philosophia Popular em Provérbios Angolenses» de Joaquim Dias Cordeiro da Matta e o excerto da conto é  uma tradução livre que realizei, confrontando a versão transcrita em Kimbundu e a tradução «Folk-Tales of Angola» [Contos Populares de Angola] de Héli Chatelain.  

Jinongonongo (Enigmas ou adivinhas)

  1. Dizanga dia Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, a disukila jimbandu.

Lagoa de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, na se costuma lavar pelas margens.

Interpretação: Tubia a tuotela mujimbandu.

Na fogueira, aquece-se pelos lados.

  • Muixi wa Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, kuku asoka o difu, ni diakakondo oixi ioso; okidia mukuia mu kusonoka ditulé mumbandu a muixi bu diatundu.

Árvore de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, na qual se despegara uma folha, que circunvagara todo o globo, e quando está para cair poisa ao pé da árvore da qual saíra.

Interpretação: Muxima moxi ya mutu, wya koso-koso kwa tundu; ki uvutuka, ukalé bu kididi kié.

Coração de uma pessoa vai a qualquer parte donde saiu e quando volta fica no seu lugar.

  • Kumuixi ka Tumba Ndala, nzenza anga wezala ngó, kamuixi kabobé.

Pauzinho de Tumba Ndala, ainda que o rio transborde, pauzinho não afunda.

Interpretação: Tumbu.

É o umbigo.

  • Dijia dia Kimalawezu Kya Tumba a Ndala a diowela kujimbandu, kadiowela ba xaxi.

Lagoa de Kimalawezu Kya Tumba a Ndala, na qual se nada em roda, não se nada no meio.

Interpretação: Tubia.

É o fogo.

  • ya lozela mu muxitu, manhinga anga meza katé kubata.

Carne de Tumba a Ndala que fora ferida no mato, e o rasto do sangue fora até a casa.

Interpretação: Tubia.

É o fogo.

  • Xitu ya Tumba a Ndala uinua ngó o manhinga, o xitu ixalé.

Carne de Tumba a Ndala só se lhe bebe o sangue, a carne fica.

Interpretação: Mwenge unua o menha, iango ye utexié.

A cana bebe-se-lhe (chupa-se) a água, o capim deita-se fora.

Jisabhu

Na Nzua Dia Kimanaweze

Muitas vezes falamos de Na Nzua Kimanaweze kya Tumba a Ndala, amigo dos amigos. Na Kimanaweze construiu a sua casa e casou-se. A sua esposa principal ficou grávida. Ela não comia carne. Tinha apenas desejo de comer peixe do rio. Na Kimanaweze ordenou  o  seu Katumua, dizendo: «Vá ao rio Lukala pescar para satisfazer o desejo da minha esposa principal porque não come carne.» O Katumua pegou na rede e foi ao rio Lukala. Pescou e trouxe o peixe para a esposa do chefe. A senhora cozinhou o peixe e comeu. Dormiram. De manhã ela disse: «O que é que vou comer? Katumua, pegou na rede e vá pescar.» Katumua foi  ao Lukala. Trouxe peixe. Entregou à esposa do chefe. Ela comeu tudo num dia. Katumua pensou: «Os peixes que tenho estado a pescando, ela come-os todos num só dia!» Foi novamente à pesca. Trouxe o peixe. Assim, foi todos os dias, durante vários meses. Ela não comia nenhum outro alimento.

Um dia, Na Kimanaueze disse: «Katumua, vai pescar.» Ele pegou a rede e foi ao Lukala. Lançou a rede e esperou um pouco. Puxou a rede, mas estava pesada. Tentou novamente. Não resultou. Katumua gritou bem alto: «Tu que te atreves a prender a rede debaixo da água, sejas tu o génio do rio ou um crocodilo, larga minha rede! Mandaram-me. Não vim por vontade própria.» Puxou a rede. Veio sem problemas.

Quando ele observou a rede com atenção, notou a existência de uma criatura estranha. Sentiu medo. Largou a rede e pôs-se a correr. A criatura estranha, que estava na rede, disse: «Não corra. Pára aí!» Ele parou. Puxou a rede. A criatura estranha moveu-se em terra firme. O Katumua tremia de medo. A criatura disse: «Eu sou o Senhor da Terra, ouça a minha ordem: «Vá para casa e traga Na Kimanaueze kya Tumba a Ndala e sua esposa principal, que te obrigam a vir à pesca.» []


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 5 de Novembro, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 05/11/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/experiencia-estetica-e-ontologia-social-na-literatura-iii/

 

Marcos Carvalho Lopes

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