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Bacon e a censura de Aristóteles

Os clássicos da filosofia, não só receberam críticas de filósofos posteriores, como verdadeiras censuras

Gonçalo Armijos Palácios*

            Se a leitura das coisas mesmas tem prioridade, devemos deixar de ler os filósofos tradicionais? A resposta, naturalmente, é “não”. O que devemos fazer é confiar nas nossas próprias faculdades sem deixar de lado as contribuições da tradição. O problema consiste em preferir o que os filósofos dizem ao que vemos na própria realidade. Há um caso famoso de um pensador que, perguntado sobre a possibilidade de a natureza contradizer a sua teoria, disse: “pior para a natureza!” Isso não é raro na filosofia. Mas, note-se, a alternativa, na anedota, era entre a própria teoria e a natureza, não entre o que a tradição disse e o que a realidade mostra. Grave mesmo é dar tanto crédito à tradição como para negar o que as coisas nos mostram por si mesmas.

            Se devêssemos preferir a ‘leitura’ das coisas mesmas — permitam que use essa metáfora —, isso não significa que os clássicos não devam ser lidos ou que devam ser esquecidos. Significa, simplesmente, que os clássicos devam ser lidos criticamente. Entre os próprios filósofos, por outro lado, é isso que ocorre — o que as passagens de Bacon mostram com tanta clareza.

            Bacon se distingue por ser um crítico severo de filósofos por muitos considerados infalíveis e insuperáveis, como Platão e Aristóteles. As razões que o levaram a tal posição, no entanto, são dignas de reflexão.

            Para entender tais razões devemos lembrar que os filósofos assumem determinadas posições. Posições — muitas delas ou as mais importantes — irreconciliáveis. Parece estranho que as pessoas, mesmo as que estudam filosofia, não se atentam para o fato simples de que os filósofos assumem posições antagônicas e travam verdadeiras batalhas teóricas. Muitos parecem não querer ver que a filosofia existe como filosofias, e que estas, por sua vez, só veem a luz como escolas filosóficas. Pois o fato é que, ao longo do tempo, foram criadas escolas e correntes filosóficas que seguiram rumos radicalmente opostos: idealismo e materialismo, agnosticismo e dogmatismo, racionalismo e empirismo etc. A última oposição ocorre dentro da teoria do conhecimento. O conhecimento deve partir da experiência (empirismo) ou da pura razão (racionalismo)? Bom, existem filósofos que fazem esta ou aquela escolha. Já outros, como Bacon e Kant, propõem alternativas. O primeiro critica esses extremos e propõe uma via intermediária. Vejamos, porém, o que ele diz sobre os filósofos clássicos e por que os resgata ou os condena.

            Quem não escutou falar de Leucipo e Demócrito, os famosos atomistas gregos?[1] A teoria de que a realidade está composta por partículas diminutas, não obstante, não é originalmente deles. Anaxágoras já tinha proposto uma teoria mais radical: as coisas são compostas de partículas iguais a si mesmas e cada partícula contém, dentro de si mas, em menor número, partículas de todas as outras coisas, infinitamente. Ele as chamou de “homeomerias”. Vejamos o que Bacon pensava sobre esses filósofos:

O estudo da natureza e dos corpos em seus elementos simples fraciona e abate o intelecto (…) Isto se pode muito bem observar na escola de Leucipo e Demócrito (…) Aquela, com efeito, de tal modo se preocupa com as partículas das coisas que negligencia a sua estrutura.[2]

Perceba-se que Bacon não é duro com esses filósofos. Mas sua linguagem muda quando se trata de Aristóteles. Há escolas, diz Bacon, que supõem “para matéria da filosofia o muito a partir de pouco ou pouco a partir de muito.” (Aforismo LXII) E continua pouco depois:

O mais conspícuo exemplo da primeira [escola] é o de Aristóteles, que corrompeu com sua dialética a filosofia natural: ao formar o mundo com base nas categorias; (…) ao conferir a cada corpo apenas um movimento próprio (…) ao impor à natureza das coisas inumeráveis distinções arbitrárias (…). (Afor. LXIII)

O pensamento de quem era chamado de “O Filósofo” pelos medievais, note-se, “corrompeu com sua dialética a filosofia natural”. Depois desse trecho, Bacon o compara aos filósofos anteriormente citados:

Sem dúvida, as homeomerias, de Anaxágoras; os átomos, de Leucipo e Demócrito; o céu e a terra, de Parmênides; a discórdia e a amizade, de Empédocles; a resolução dos corpos na adiáfora natureza do fogo e o seu retorno ao estado sólido, de Heráclito, sabem a filosofia natural, a natureza das coisas, experiência e corpos. Mas na Física, de Aristóteles, na maior parte dos casos não ressoam mais que as vozes de sua dialética. (Ibidem.)

            Os filósofos modernos, como sabemos, criticaram duramente praticamente tudo que provinha da época medieval. Mesmo assim, Bacon é mais duro com Aristóteles que com os medievais. Aqueles trechos, o filósofo inglês arremata assim:

Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência. (Ibidem.)

            Essa é uma imagem de como os grandes filósofos leram os clássicos. Essa imagem mostra por que a filosofia é uma incessante procura da verdade, procura baseada na própria ignorância, na busca de respostas, e na discordância com a tradição.


[1] Leucipo floresceu em aproximadamente 430 a.C. Demócrito, seu discípulo, viveu aproximadamente entre 460 e 370 a.C.

[2] Bacon, F. Ibid. Aforismo LVII.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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