Quem glorifica demais a tradição foge dos desafios do presente
Gonçalo Armijos Palácios*
Os ataques de Bacon aos antigos gregos, como vimos, são duros e, como veremos, chegam a ser mesmo virulentos. Mas, por que trazer isso à tona? Não, certamente, para insinuar que Bacon tenha razão em atacar os gregos da maneira como o fez, mas para mostrar como, de fato, os filósofos clássicos reagiram ao que a tradição lhes impunha. Pois, precisamente, se trata disso, de que se perceba que a filosofia não existe senão como uma incessante luta contra duas coisas: contra a própria ignorância e contra as imposições da tradição. Não desejar sair da ignorância e se curvar comodamente perante a tradição são dois dos fatores que impedem que a filosofia avance. E, em alguns casos, um desses fatores age sobre o outro.
O peso da autoridade é um peso tremendo, o que pode ver-se claramente em todas as épocas. As chamadas “autoridades”, numa determinada área e querendo ou não, podem exercer uma influência nefasta. Pois fica difícil, se não impossível, para pesquisadores desconhecidos publicar trabalhos ou os resultados de pesquisas que, de uma ou de outra maneira, entrem em atrito com o que tais autoridades afirmam.
Durante muito tempo, Aristóteles exerceu esse papel de grande autoridade. De autoridade inquestionada e inquestionável. Chegava-se ao ponto de se usar uma afirmação sua para pôr fim a qualquer disputa. Era o último critério para se decidir alguma diferença teórica. Sua autoridade era tal que, simplesmente, era chamado de O Filósofo. Num sentido, era considerado o depositário de verdades definitivas e, certamente, sem ele mesmo ser responsável por isso, foi a causa de que muita pesquisa fique sem ser feita e a ciência não aparecesse antes. Sem dúvida, isso para ou impede o nascimento ou o progresso da ciência. E há épocas em que o desejo, a necessidade e a busca de conhecimento aparecem com mais força do que em outras. Bacon vive uma etapa de transição em todos os sentidos. Tratemos de imaginar o que deve ter significado para os intelectuais da época a descoberta de um novo mundo e a certeza de que vivíamos numa grande esfera. O mundo antigo, sem dúvida, desmoronava em todos os sentidos. Bacon vive num período em que a própria Renascença estava chegando ao fim e começava a modernidade. É o período em que nasce a ciência como até hoje a conhecemos. Tudo isso, então, permite que entendamos — mesmo que não justifiquemos — as palavra que Bacon dirigiu aos gregos.
Bacon ataca a filosofia medieval por se misturar com a teologia. Mas esse erro, pensa, os gregos também cometeram: “Mas a corrupção da filosofia, advinda da superstição e da mescla com a teologia, vai muito além e causa danos tanto aos sistemas inteiros da filosofia quanto às suas partes (…) .”[1] E repete a crítica num aforismo posterior:
Na Grécia, encontram-se exemplos típicos de tais filosofias, sendo o caso, antes dos demais, de Pitágoras, onde aparecem aliadas a uma superstição tosca e grosseira. Mais perigoso e sutil é o exemplo de Platão e sua escola. (Ibid.)
Bacon não deixa de reconhecer o que devemos aos gregos antigos, mas faz ressalvas:
As ciências que possuímos provieram em sua maior parte dos gregos. (…) Contudo, a sabedoria dos gregos era professoral e pródiga em disputas — que é um gênero dos mais adversos à investigação da verdade. (Afor. LXXI, grifo no original.)
Tais disputas chegaram ao seu auge na filosofia escolástica com as famosas quaestiones disputata, mas em nada contribuíram para o avanço do conhecimento ou da ciência. Significaram, pelo contrário, um obstáculo. Mas os gregos também tiveram esse vício da disputatio estéril. O trecho anterior, Bacon continua assim:
Desse modo, o nome de sofistas, que foi aplicado depreciativamente aos que se pretendiam filósofos e que acabou por designar os antigos retores, Górgias, Protágoras, Hípias e Polo, compete igualmente a Platão, Aristóteles, Zenão, Epicuro (…) e aos seus sucessores… (…) Mas ambos os gêneros (…) eram professorais e favoreciam as disputas, e dessa forma facilitavam e defendiam seitas e heresias filosóficas, e suas doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio de Platão) palavras de velhos ociosos e jovens ignorantes.(!)[2]
Palavras inusitadamente duras, sem dúvida, e em muitos sentidos injustas. No entanto, estamos frente a uma luta sem trégua de um pensador contra os excessos da tradição — luta que levara o próprio Bacon a cometer excessos.
Nessas passagens presenciamos o fim de uma era e o nascimento de uma outra. É uma atitude hostil contra o passado, mas de esperança sobre o futuro. Isso explica que Bacon lembre uma opinião sobre os gregos:
E, a propósito, não se deve omitir aquela sentença, ou melhor, vaticínio, do sacerdote egípcio a respeito dos gregos: ‘Sempre serão crianças, não possuirão nem a antiguidade da ciência, nem a ciência da Antiguidade’. (Ibid.) E Bacon continua o trecho com uma sentença lapidar: “Os gregos, com efeito, possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos para tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua sabedoria é farta em palavras, mas estéril de obras.” (Ibidem.) Essas palavras podem surpreender pela sua dureza. No entanto, não são uma exceção quando os filósofos debatem entre si ou quando defendem suas teses e teorias. No caso de Bacon, não era uma mera defesa doutrinal, era a reivindicação do direito a pensar por si, mesmo tendo que destruir a glorificada tradição
[1] Ibidem. Aforismo LXV.
[2] Afor. LXXI, grifos no original.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |