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Bem vindos ao Século XXI! Finalmente o Século XXI!

Ensaio de Severino Ngoenha, Eva Trindade, Luca Bussotti, Carlos Carvalho, Giveraz  Amaral, José Maria Langa

Este número do Savana não é só o primeiro (na concepção) do ano, da década, mas é, anacrónica e paradoxalmente, o primeiro do século XXI.

Em todas as grandes civilizações antigas – provavelmente começou com os sumérios – a preocupação em organizar o tempo, contar cronologicamente os dias, registar a evolução e comemorar em datas fixas levaram, com a  combinação da ciência (a astrologia e a astronomia) e da religião, a invenção  de calendários.

Os mais antigos e conhecidos são os calendários judaico (estabelecido pelos hebreus na época do Êxodo, aproximadamente no ano 1447 a.C., um calendário lunissolar,  que leva em consideração o ciclo lunar e o ciclo solar); O calendário Egípcio (primeiro baseado no ciclo lunar e depois solar); O calendário Maia (criado em 550  a.C. e composto por um calendário civil (Haab) e um religioso ( Tzolkin); O Chinês (lunissolar, que considera os ciclos do sol e da lua, começado com o imperador Huaang Di ); O calendário Islâmico (também chamado Hegírico, por ter o seu marco inicial na Hégira, a fuga do profeta Maomé da cidade de Meca para Medina  em 622 d.c.); O calendário Etíope (com o começo do seu ano no dia 11 de Setembro do calendário gregoriano; O calendário Juliano (implementado pelo imperador  Caio Júlio César, em 46 a.C.) e por fim, o Gregoriano (criado pelo monge Dionísio  no século VI,  mas oficializado só desde 1582, com o papa Gregório  XIII). Este substituiu o calendário Juliano e que serve hoje de referência para o conjunto de relações internacionais entre os povos.

O calendário tem a ver com o kronos (a cronologia), a sucessão dos dias e das noites, e é disto que se ocuparam, em todos tempos e civilizações, os astrónomos, astrólogos e, desde o período moderno,  os geógrafos.

A Filosofia (como certas teologias), quando olha para o tempo procura o kairos, o sentido do tempo. A azáfama principal daqueles que se dizem ou se ocupam da filosofia, consiste em buscar  o sentido do tempo; como diz Hegel, a Filosofia é o tempo apreendido por conceitos. Isto  significa que a visão filosófica do tempo transborda os calendários e as categorias dos astrólogos e dos geógrafos.

É neste sentido que o historiador britânico Eric Hobsbawm pôde falar do longo século XIX entendendo, que as razões e o espírito que nortearam o séc. XIX transbordaram a cronologia do calendário gregoriano, que previa que terminasse em 1900, e só veio a terminar (pelas razões de sentido), em 1914.

As determinantes históricas do século XIX tinham sido, de uma maneira quase doentia, marcadas pelo nascimento dos nacionalismos  (Itália, Alemanha…). Só que estes nacionalismos invadiram o século XX com uma inédita agressividade e estão na origem da primeira e da segunda guerra mundiais. Por isso, do ponto de vista do sentido da história – para falar como Carl Lowith – o século XIX só terminou quando o actor histórico, “nação”, entrou em colapso e foi gradualmente substituído pela emergência de umnovo actor, “pós-nacional”.

O curto século XX,  iniciado, segundo Hobsbawm em 1914, só termina em 2020, não por causa do Coronavírus, mas este serviu de separador de águas.

O século XX, para além da substituição das nações por organismos supranacionais (ONU, OMC, OPEP, CE… ), foi também caracterizado por uma confrontação ideológica entre dois imperialismos, mas sobretudo, pela transformação gradual do liberalismo político em ultraliberalismo económico, com os seus corolários de exploração excessiva da natureza, privatizações do espaços públicos, acentuação das discrepâncias sociais entre pessoas e nações.

Do lado africano, se juntamente com os países de Ásia, se tinha apostado por “independências não alinhadas, o “soleil des indépendences” (como escreve o poeta Lopez) foi forçado a se inscrever e por isso mesmo fagocitado,  primeiro pelas ideologias em oposição  e depois pelo desumanismo  neoliberal. O coronavírus, o separador de águas, escancarou as principais incongruências epocais, que o séc. XX teimava em não reconhecer:

  1. A centralidade da questão ambiental e das mudanças climáticas (levantado, filosoficamente, in primis, por Hans Jonas), devido à excessiva exploração do homem sobre o meio ambiente (e sobre os outros homens).
  2. A inviabilidade social de um neoliberalismo centrado, unicamente, na especulação financeira e no lucro, em detrimento do trabalho e da economia;
  3. Uma ordem política  mundial  desfasada da realidade dos tempos e substituída pela violência, não só dos estados prepotentes mas pior, pela violência ainda mais perniciosa das multinacionais, utilitaristas, que não obedecem a outro credo senão o lucro.
  4. uma sociedade-mundo sempre mais de controlo e sempre menos democrática.

O  século XXI se abre,  por razões óbvias, com os holofotes apontados sobre o palco cénico do espaço geopolítico de Moçambique.

Se as mudanças climáticas são claramente um fenómeno global (floresta da Amazónia, desgelo dos glaciais, aumento do nível do mar, expansão térmica, poluição do ambiente…)  com o IDAI e Kenneth – e as catástrofes, que segundo todas as previsões vão necessariamente continuar a abater-se sobre nós (a única interrogação é o quando chegarão), Moçambique tornou-se centro da atenção mundial, como lugar de prova para os cientistas, as Gretas Thunberges e todos os ecologistas do mundo, que as mudanças climáticas são uma realidade.

Para muitos críticos e observadores internacionais, a derrota do shit hole presidente nos Estados Unidos foi uma libertação do obscurantismo, da burrice, da ignorância, do racismo e tantos outros adjectivos pertinentes. Mas ela pode também significar a derrota de um capitalismo industrioso, produtivo  e o regresso acelerado de um capitalismo  parasitário e de especulação (secundada por drones mortíferos) de Wall Street.

‘Barack Obama’ vai tomar posse em Janeiro de 2021 para o seu terceiro mandato. Como estamos em tempo de COVID-19, vai mascarado de Joe Biden, o que significa, um retorno em forca de um capitalismo financiocrático, com os bancos e especuladores a ocupar um lugar preponderante, como acontecera no seu primeiro mandato com a crise de subprime, em que foram os trabalhadores, os contribuintes, os pobres e o terceiro mundo a financiar e a pagar pelas falcatruas dos bancos e dos especuladores.

Desta vez, Obiden (Obama +Biden), pode contar com um aliado de peso, os big datas, doravante hegemónicos, que já não se contentam em ser instrumentos de  manipulação da economia e política-mundos mas reivindicam, prepotentemente, a sua  supremacia, arrogando-se até o direito de produzir uma moeda (cripto moeda) própria, mundial, sob seu exclusivo controlo, e para lá da soberania dos Estados (nós já tivemos a libra da majestática Companhia de Moçambique).

Do ponto de vista financiocrático, Moçambique serve também de exemplo para o despudor neoliberal. O rombo de engenharia financeira – que no vocabulário local se conhece como “dívidas ocultas – foi um sucesso do malabarismo mafioso da especulação  ultra liberal, não só porque boa parte do dinheiro nunca entrou em Moçambique e os verdadeiros mentores (Bancos, especuladores) foram ilibados de toda culpa – e só os nossos pequenos ladrãozinhos locais (Changs, Nhangumelos e companhia) foram imputados – mas também, e sobretudo, porque o povo (de hoje e do futuro) vai pagar, com o aval soberano do  parlamento (anti)popular. A caixa de pandora da Necropolítica (Achille Mbembe) se abre sobre todo o sul do mundo…

Por sua vez, a  violência sem vulto de Cabo Delgado, mas com actores reais – entre  companhias petrolíferas e de gás, mercenários, facções religiosas, com grande cumplicidade do(s) Estado (s) e das Organizações Internacionais – é a manifestação mais clara  de um mundo sem Governo ou de uma governação de mundo deslocada e despida de toda e qualquer forma de pudor, mesmo quanto à violência e  ao valor da vida humana.

O filósofo Agamben  teme que o estado de excepção (normalidade africana) provocado pela  pandemia do coronavírus –a restrição das liberdades – se torne norma. A sociedade de controlo já é norma: com as câmaras de Londres, a inteligência digital para o reconhecimento facial na China, a espionagem americana – até sobre os próprios aliados, denunciada pelo wikileaks – as  manipulações políticas e económicas  dos  big datas (…). A França – país dos Direitos Humanos – quis fazer passar uma lei no parlamento que autorizava a polícia a todos os georgefloydismos.

A violação dos direitos humanos que o governo francês não conseguiu legalizar –graças à força popular – fê-lo o parlamento moçambicano, votando uma lei que autoriza o aumento do tempo da prisão preventiva.

Um dos pontos de passagem teóricos obrigatórios  neste inicio de século será o “Princípio Responsabilidade” de Hans Jonas. Todavia, é necessário recordar que essa magna obra foi uma reação ao “Princípio Esperança” de Ernst Bloch. Mesmo sem o hoje anacrónico marxismo deste, não podemos abdicar da esperança, mas de uma maneira substancial e responsável: resiliência ambiental e ecológica, economia responsável  baseada no trabalho e na solidariedade, mecanismos de prevenção e de combate a todas as formas de violência, incremento da Democracia.

 Este é, para nós, o sentido e o desafio epocal que se abre com o novo ‘século’: o audi, para deixarmos de ser só palco e espectadores dos eventos-mundo e ousar ser protagonistas e autores da (nossa) história.

Severino Ngoenha, Eva Trindade, Luca Bussotti, Carlos Carvalho, Giveraz  Amaral, José Maria Langa

Marcos Carvalho Lopes

2 Comentários

  1. Sempre que vejo abordagem sobre África, principalmente dos intelectuais africanos cria-se em uma expectativa de construção de um arsenal científico que traz a tona soluções africanas para africanos. Contudo tenho visto que a maior parte desses intelectuais passam a vida a elaborar discursos literários de pausa ou mesmo paisagísticos. Paisagístico porque passam a vida a caracterizar o que é o africanismo actualmente e amiúde recorrem a histografias e ao eurocentrismo, que tanto sabemos das poucas vantagens que traz na sua relação com a África. Eu gostaria de ver colóquios internacionais da massa cinzenta africana a discutir as soluções africanas. Um colóquio que, sem exclusão/discriminação de outros pensadores ocidentais ou orientais, põe apenas os africanos (filósofos, sociólogos, antropólogos, economistas, agrónomos…etc) a ver o seu continente num contexto de auto sustentabilidade….
    A semelhança do que os nacionalistas fizeram quando se prepararam para libertar a África do jugo colonial. Criaram ideias e esqueceram que não temos fábrica de armamento, etc….mas declararam guerra e nalguns casos venceram.

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