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Cheikh Anta Diop, afrocentrismo e etnofilosofia – um texto de Samuel O. Imbo

Em seu livro Uma introdução à filosofia africana o queniano Samuel Olouch Imbo faz uma apresentação de diversos autores da filosofia africana a partir de algumas questões que giram em torno do rótulo “etnofilosofia”. Neste trecho, traduzido para uso didático, Imbo apresenta a obra afrocentrista de Cheikh Anta Diop.

 

Cheikh Anta Diop: uma historiografia afrocêntrica

Samuel Oluoch Imbo

O homem de letras senegalês, Cheikh Anta Diop (1923-1986) não é alguém que se consideraria imediatamente como um etnofilósofo – graças à natureza complexa de sua erudição. Aqui eu quero seguir Albert Mosley, que em sua antologia African Philosophy: Selected Readings reconhece corretamente as características etnofilosóficas do trabalho de Diop. Diop presume um alto nível de unidade entre as diferentes cosmologias africanas tradicionais. Seus argumentos sobre a civilização africana são feitos dentro de uma estrutura metafísica e epistemológica que pressupõe uma unidade essencial entre as culturas africanas. Tal unidade entre culturas é, naturalmente, um dos princípios centrais da etnofilosofia. Sua aceitação desse princípio, no entanto, não o compromete com a etapa adicional de aceitação da negritude. Em Nations Négres et Culture Diop discorda dos poetas e filósofos da negritude, que negam a razão e o pensamento reflexivo ao negro africano. Em oposição a aspectos do movimento da negritude, Diop defende a África tradicional como tecnologicamente avançada. Para combater as alegações feitas pelos europeus sobre a falta de avanço na África pré-colonial, ele a descreve como um pedaço de terra distinta que se compara à Europa em muitos aspectos, mas cuja riqueza histórica, política e religiosa permanece um mistério para os observadores ocidentais, por causa da forma como a história do continente lhes foi apresentada. Eis como Diop começa sua Precolonial Black Africa:

Entende-se, assim, que as defasagens técnicas e outros retardamentos são o resultado de um tipo diferente de desenvolvimento, baseado em causas fundamentais absolutamente objetivas.

Assim, não há mais motivo para constrangimento.

Uma vez alcançada essa consciência, podemos, imediata e plenamente, reviver quase todos os aspectos da vida nacional africana: as organizações administrativas, judiciais, econômicas e militares, a do trabalho, o nível técnico, as migrações e formações de povos e nacionalidades, daí sua gênese étnica e, consequentemente, gênese quase linguística etc.

Ao absorver qualquer experiência humana, sentimos no fundo de nós mesmos um verdadeiro reforço de nosso sentimento de unidade cultural.

Nesta passagem, Diop montou o projeto etnofilosófico clássico. Os três componentes do projeto – a motivação, as fontes a serem escavadas e a unidade das culturas –  são seus pontos de partida. A motivação é fornecer uma antítese à erudição europeia em pelo menos dois níveis: recuperar a dignidade africana respondendo à difamação europeia quanto as conquistas dos africanos, e reivindicar a africanidade e negritude dos antigos egípcios. Diop especula, com base em documentos disponíveis sobre a história da África, que cientistas e filósofos da Grécia antiga aprenderam muito da ciência e filosofia do Egito. Ele é pioneiro nessa linha de pesquisa, que depois é desenvolvida de modo mais vigoroso por afrocentristas subsequentes, como Maulana Karenga e Molefi Asante. Em um sentido crucial, então, a abordagem de Diop é semelhante à dos estudiosos europeus que ele desafia. Ele usa suas habilidades multidisciplinares para localizar as fundações das civilizações culturais e intelectuais da África no antigo Egito, assim como acadêmicos europeus localizaram as fundações da civilização europeia na Grécia antiga. Ao fazê-lo, fornece as bases de uma historiografia africana da qual os africanos não precisam mais se envergonhar. O olhar investigativo de Diop vai além de qualquer disciplina acadêmica tradicional e, como ele não é constrangido pelas limitações usuais das disciplinas específicas, seu método permite a liberdade de incorporar evidências de diversas fontes. Seguindo estas pitas, Diop vê a alta qualidade da antiga civilização egípcia, que deve novamente ser noticiada para os observadores ocidentais para sustentar dois pontos indissociáveis, que a civilização começou na África, além disso, que teve um papel crucial na formação da antiga civilização grega. O método interdisciplinar que Diop emprega toma como premissa chave a visão de que a filosofia ou as filosofias de uma cultura não podem ser encontradas em nenhuma forma de expressão explicita, mas que deve ser preferencialmente examinando os vários aspectos da vida cultural. Ao observar os aspectos da vida cultural listados por Diop – administrativos, judiciais, econômicos, militares etc. –, chegar-se-ia a uma compreensão do sistema filosófico. Com uma compreensão do sistema filosófico, reforça-se o sentimento de que, apesar da multiplicidade interna das culturas africanas, ainda existe uma subjacente unidade cultural do continente. A unidade cultural é um resultado das “causas fundamentais absolutamente objetivas” a que Diop se refere no prefácio de Precolonial Black Africa. A Europa e a África são qualitativamente diferentes e produzem estruturas epistemológicas correspondentes que são fundamentalmente distintas e, no entanto, igualmente valiosas.

Poderíamos negritar este ponto usando dois exemplos – o conceito de casta e a organização política dos antigos impérios de Gana, Mali e Songhai. Quanto ao conceito de casta, Diop analisa seu país de origem, o Senegal, mas considera que as conclusões tiradas são verdadeiras para “toda a África sudanesa destribalizada”. Ele escreve:

Parece necessário, em primeiro lugar, salientar as características específicas do sistema de castas, para trazer de forma mais justificada a diferença de estrutura social que sempre existiu entre a Europa e a África. A originalidade do sistema reside no fato de que os elementos dinâmicos da sociedade, cujo descontentamento poderia ter engendrado revolução, estão realmente satisfeitos com a sua condição social e não procuram mudá-la… Na África, não é raro que os membros da casta inferior se recusem a entrar em relações conjugais com aqueles da casta superior, embora o inverso pareça mais normal.

Diop está aqui enfatizando as diferenças das estruturas socioeconômicas da África em relação às da Europa. Cada estrutura deve ser vista de uma perspectiva que reconheça sua radicalmente diferente particularidade. De modo reciproco, em tal perspectiva, não se permite o tratamento de qualquer estrutura como um desvio do padrão. Assim, o respeito e a tolerância são fomentados entre culturas do mundo à medida que tentam lidar com seu meio-ambiente. O sistema de castas, por exemplo, se desenvolve de acordo com os acidentes da história. Não existem leis gerais que orientem o desenvolvimento do conceito na Europa e na África. A pessoa africana de uma casta inferior que deixa de lado oportunidades de se unir a uma casta superior deve ser entendida em termos de sua estrutura social. O desrespeito e hostilidade da Europa em relação a África deriva de uma falha em compreender os quadros sociais africanos. Diferentes estruturas sociais possibilitam diferentes formas de adaptação a situações únicas.

Outro exemplo que Diop emprega para ilustrar esse ponto é o processo pelo qual as sociedades passam da produção feudal para a capitalista. A Europa, a Índia, a China, o Japão e a África pré-colonial não passaram por transformações idênticas durante períodos correspondentes em suas economias. Se houvesse princípios gerais orientando o modo pelo qual as sociedades evoluem de um modo de produção para outro, então deveríamos esperar que todas as sociedades passassem por processos similares em estágios comparáveis ​​de sua evolução. A evidência, no entanto, não demonstrou qualquer coisa do tipo. Esta falta de evidência de uma lei natural para todas as sociedades é, para Diop, evidência de que o capitalismo moderno nessas outras sociedades é um vírus europeu contagioso que as infectou no momento do contato com a Europa.

Diop emprega o mesmo argumento, sobre diferentes estruturas sociais, usando como os exemplos de Gana, Mali e Songhai. Esses antigos reinos foram governados de maneiras desconhecidas pela Europa na mesma época:

Com Carlos Magno iniciou o primeiro esforço de centralização; mas pode-se dizer sem exagero que durante toda a Idade Média a Europa nunca encontrou uma forma de organização política superior à dos Estados africanos. Há concordância sobre o fato de que a variedade de organização Africana é indígena: ela não poderia ter vindo do Mediterrâneo Ariano ou Semita. Se alguém tivesse absolutamente que relacioná-la com algumas formas anteriores, a centralização administrativa do Egito Faraônico, com seus nomos, pode ser levantada. 

Uma tensão é evidente no trabalho de Diop. Ele reconhece a multiplicidade de culturas e estruturas sociais – e a originalidade e particularidade de suas cosmologias. Cada uma faz sua contribuição intelectual única. Diop, no entanto, não está preso a essas particularidades. Ele perspectiva a comunicação entre esses vários particularismos radicalmente diferentes. À maneira dos estudiosos ocidentais anteriores a ele, no entanto, identifica a sua propria cultura como sendo a originadora da civilização mundial. Seu procedimento é uma reminiscência de escritos eurocêntricos que consideravam um tipo particular de razão como a expressão universal e mais genuína da humanidade e tomam as racionalidades não-européias como desviantes deste padrão. Seu objetivo, porém, é declarar a independência intelectual em relação a Europa. Diante do exposto, deveria ficar explícito porque o trabalho de Diop foi avidamente apropriado pelos afrocentristas posteriores de todos os matizes. Somente uma África independente, que não se diferencie apenas pelo exotismo descrito por etnólogos, poderá engajar-se no diálogo e comunicação requeridos pela interdependência entre as culturas. De fato, em Civilization or Barbarism, Diop vira a mesa da Europa, que sempre descreveu a si mesma como civilizada. É aqui que Diop dá seu relato mais desenvolvido da filosofia egípcia e do impacto das idéias egípcias sobre uma Europa ingrata, que ainda não reconhece sua profunda repercussão. Quando os antigos egípcios desenvolviam suas idéias, a Europa ainda era bárbara. Mas essa barbárie não precisa continuar em sua forma atual de negação da importância das contribuições intelectuais africanas.

Marcos Carvalho Lopes

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