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CONTRA O RACIALISMO

ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Carlos Carvalho

            São raros os exemplos de uma teoria científica que tenha atravessado rapidamente as fronteiras disciplinares e tido tão grande impacto, nas ciências naturais e nas sociais e humanas, como foi a da “origem das espécies” (1860) de Charles Darwin. Esta teoria triunfa ainda hoje entre os biólogos oferecendo um rico caminho explicativo que liga as investigações, desde a perspectiva hereditária até ao desenvolvimento do sistema nervoso, passando pela origem do homem, do ambiente e, até do comportamento animal.

Contudo, a sua recepção fora do campo das ciências biológicas é deveras ambígua. De um lado, ela continua a esbarrar com a oposição dos criacionistas; do outro, a sua instrumentalização ideológica e o seu uso por parte de certas correntes da economia, da política, e até na criação de paradigmas anti-filosóficos de defesa e justificação de desigualdades, incluindo a da violência ou mesmo a da guerra, provocam vivas controvérsias.

A essência de uma ideologia social com fundamentação científica é contaminar diferentes ordens de discursos. O Darwinismo revela-se traduzível em diferentes idiomas sociopolíticos e oferece uma língua franca versátil, capaz de exprimir uma variedade quase infinita de opiniões sobre sujeitos públicos. Porém, o esforço teórico de Darwin não é social.

O naturalista inglês ocupa-se de animais e plantas, de corais, de flora, da domesticação das plantas úteis ao homem, da origem das espécies na natureza em analogia com a domesticação (selecção artificial), da herança zoológica da espécie humana (a descendência do homem); mas não se ocupa do homem. Por isso, é legítimo interrogar-se quanto ao bem fundado do uso social dos seus enunciados.

A teoria de Darwin foi muitas vezes mal interpretada e conduzida a apresentar a selecção natural como a simples sobrevivência dos mais fortes. Esta formulação simplista pode dar caução a derivas, como o darwinismo social.

Este compreende dois períodos: primeiro, a racionalização – explicação e justificação – do individualismo liberal  marcado pela concorrência e pela vitória dos melhores. Depois de 1900, dominou uma visão colectivista, na qual a competição opunha classes, nações ou raças e valida a colonização, o imperialismo e o eugenismo.

Os primeiros autores a usarem socialmente o darwinismo foram os cientistas e os intelectuais liberais empenhados em fazer reconhecer o lugar da ciência no progresso da civilização. Em controvérsias sobre o sucesso da revolução industrial, eles utilizaram o darwinismo para legitimar as desigualdades, a concorrência económica e para defender o nacionalismo (J. D. Hooker)

Contudo, o ponto de chegada do darwinismo social é sem dúvida a sociobiologia, disciplina promovida principalmente por Edward O. Wilson (1975) e que se define como o estudo das sociedades animais e humanas através dos utensílios da biologia. Apoiando-se na teoria da evolução, na genética, na etologia e na ecologia, Wilson formula um conjunto de princípios capazes de fundar uma ciência geral do comportamento não só animal, mas também humano. Aliás, todos os esquemas formulados sobre os animais não humanos eram, para ele, aplicáveis ao homem.

A história da vida é assim a história de uma longa competição: os indivíduos mais bem adaptados sobrevivem, enquanto os outros desaparecem. O que joga um papel determinante é a capacidade de reprodução.

Compreender a história da vida é compreender esta longa luta pela reprodução, cujos autores principais são os genes (determinismo genético, predisposição genética). Mas os genes são egoístas e só pensam em sobreviver e em multiplicar-se o mais possível. Explicar um comportamento humano significa descobrir a estratégia genética a que corresponde (DAWKINS, 1978). Por exemplo, e como o diz o próprio Wilson, a xenofobia pode ter uma utilidade biológica, enquanto meio através do qual os portadores de certos genes se defendem de outros. Assim, o racismo ganha uma nova justificação.

Wilson e a sociobiologia pretendem também determinar o bem e o mal; querem dar critérios para uma planificação social, o que os leva a preconizar o eugenismo e aplicar a engenharia genética para resolver diferentes questões. Pierre-P. Grassé não hesita em falar de uma sociobiologia nazista e norte-americana, (MICHEL 1980). Por exemplo, se na origem da deterioração das condições de vida de uma sociedade está em uma raça, porque não eliminar os seus membros por eutanásia ou a esterilização? 

Wilson é formal, contrariamente ao que pensava Durkheim os fenómenos sociais não têm nenhuma autonomia, nenhum dinamismo próprio. Como o justo, o social é totalmente reduzível ao biológico. A sociedade resulta de uma soma de comportamentos sociais, geneticamente condicionados. Por conseguinte, os peritos de genes são os melhores intérpretes em matéria de história e sobretudo em matéria de política.

No plano ético, graças ao neo-darwinismo, à genética e à etologia, os sociobiologistas podem formular os bons e verdadeiros ideais, pois eles são os únicos que conhecem os comportamentos normais e podem, por conseguinte, definir as normas às quais devemos obedecer. Como diz Wilson, a biologia é a chave.

A filosofia e as ciências humanas deixam de ter direito à palavra, pelo menos até que não ajustem os seus procedimentos epistémicos à nova síntese. Em todo o caso, todas as instâncias socioculturais são recusadas: as religiões, as sabedorias tradicionais, a filosofia e as artes. Só sobrevivem os peritos em genes e os (reconvertidos) neófitos.

 A sociobiologia não é uma empresa cognitiva a ser julgada só com os cânones do método experimental, mas apresenta-se também como uma doutrina, uma filosofia moral e política, apesar de Wilson preferir a expressão de materialismo científico para falar das diferentes mensagens ideológicas que difunde.

Admitindo que a sociobiologia seja uma ciência válida, dá-lhe isso o direito de nos ditar um novo código ético e político? O que está em causa aqui, é o estatuto do homem como sujeito moral e actor histórico.

Moçambique, desde 1975, escolheu não definir a identidade nacional por nenhum biologismo: nem moçambicanos de gema nem de clara. Qual é o papel dos académicos e intelectuais numa sociedade que pauta pela igualdade dos seus cidadãos?

Na mesma semana em que (o velho branco, caduco e complexado) Helder Martins publicava a sua carta (e renunciava assim a brilhar mais que os pretos), na Itália  Giorgia Meloni, secretária do partido Fratelli d’Italia (filho directo do Partito Fascista de Mussolini, com todo o enredo ideológico de revisionismo histórico, posicionamentos por vezes anti-judaicos e sobretudo anti-africanos) e Presidente do grupo dos conservadores no Parlamento Europeu,  foi apostrofada com epítetos grosseiros e sexistas  por Giovanni Gozzini, um ilustre professor de história da Universidade de Siena. Diante deste cenário, todo o mundo político se mobilizou, desde o Presidente da República até ao Ministro da Universidade, passando pelo Conselho de Departamento de História e Bens Culturais daquela universidade. Giorgia Meloni recebeu chamadas de solidariedade, assim como atestados públicos por parte dos seus mais acérrimos adversários. E o Reitor da Universidade de Siena suspendeu por três meses o Prof. Gozzini de todas as suas funções académicas, com o suporte do Senado académico.

Na França, a ministra do ensino superior, de investigação e renovação, Frédérique Vidal,  já em campanha, e na tentativa de seduzir o eleitorado da extrema direita, declarou que ia pedir ao CNRS (centro nacional de investigação científica) para fazer uma investigação sobre a influência do Islamo gauchisme na universidade. Esta tentativa islamofóbica de instrumentalizar  as universidades, suscitou uma veemente reacção de repúdio da quase totalidade dos académicos.

A responsabilidade social dos intelectuais e académicos é participar a coser a sociedade através do direito e não contribuir para a sua dilaceração com vitupérios racialistas; é incrementar uma dialéctica política baseada na discussão livre de ideias sem discriminações de raças ou idades.

As ideologias biológicas ocupam, na história, um lugar particular, graças à sinistra iluminação retrospectiva que os processos da dizimação dos índios, a escravatura dos negros, o nazismo, o apartheid dão sobre o direito dos mais fortes, fundado sobre a supremacia da raça.

O que hoje parece ser certo é a constatação de que em Moçambique andámos para trás, regredimos: de princípios nobres em defesa de um futuro de todos para todos, passámos para a incapacidade de raciocinar, dialogar e esgrimir argumentos, mostrando pobreza de raciocínio e sobretudo inexistência de cultura de cidadãos da polis.

Numa entrevista concedida a um jornalista Guineense, Nelson Mandela reconheceu ter aprendido com os líderes africanos lusófonos – Amílcar Cabral, Samora Machel e Agostinho Neto – que o problema do racismo se resolvia com políticas não racialistas.

A questão não é ser anti-racistas, mas não ser racialistas!

Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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