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O papel do intelectual numa sociedade aberta (Elísio Macamo)

texto de Elísio Macamo

comentário de Elísio Macamo sobre o livro de Severino Ngoenha “Mondlane – Regresso ao futuro

Graças à generosidade do meu xará, Elísio Langa, tive acesso ao livro de Severino Ngoenha, “Mondlane – Regresso ao futuro”. Não é o melhor livro dele, mas é de certeza o mais oportuno para além de ser um dos poucos convites à uma reflexão endógena do que significa ser País hoje. É um livro que merece ser não só estudado como também debatido, de preferência por pessoas equipadas com os devidos instrumentos académicos e genuinamente interessadas na interpelação crítica da nossa história. Seria bom ler resenhas escritas por filósofos, cientistas políticos, sociólogos e historiadores, pois o que o Severino Ngoenha faz neste livro cria espaço para um debate académico profícuo.

Pela leitura que fiz, a tese central do livro é de que é preciso entender Mondlane como um intelectual e, a partir daí, analisar a sua participação na luta anti-colonial. A intelectualidade que Severino Ngoenha recupera tem o seu alicerce numa tradição de pensamento negro-africano comprometida com uma ideia de liberdade alicerçada num processo profundo de reflexão sobre o que na história condicionou a liberdade do africano e o que, dentro dessa história, pode garantir essa liberdade. Neste sentido, Severino Ngoenha recupera um Mondlane pragmático que aposta no diálogo e na construcção da confiança como prática política de eleição. Para Mondlane, depreende-se da leitura, ser livre é usufruir da oportunidade de construir novos mundos com outros. Tudo isto culmina em quatro hipóteses que Ngoenha formula como convite para repensarmos Moçambique.

Quando dizia que este não era o melhor livro do Severino Ngoenha referia-me sobretudo ao facto de ele fazer depender parte do seu argumento do julgamento normativo do momento político que atravessamos sem, contudo, prestar a devida atenção aos constrangimentos estruturais que também fazem parte da equação. Não é que esse julgamento normativo esteja completamente equivocado. O problema é de dar coerência exagerada ao que se impôs como principal projecto político após a morte de Mondlane ao ponto de ver isso manifestado ainda hoje. Fora disso, contudo, o que ele nos oferece é uma releitura da história de luta anti-colonial que, ao estilo do que muitos outros têm estado a fazer, sobretudo historiadores como a Maria Paula Meneses, João Paulo Borges Coelho e Benedito Machava, nos convida a libertar a história nacional do cativeiro duma narrativa oficial cada vez menos convincente e que nos asfixia.

Acima de tudo, o que Severino Ngoenha faz é explorar outras maneiras de ler Mondlane como forma de questionar a ideia, tornada dogma, segundo a qual a independência de Moçambique só era possível, legítima e justa se ocorresse dentro dum quadro normativo marxista. O Mondlane que ele recupera, um Mondlane que faz a política do possível, mostra outros rumos que a luta poderia ter tomado. Um desses rumos poderia ter sido uma independência inclusiva e tolerante à diferença de opinião (que eu interpreto como um Moçambique sem nenhuma necessidade de “reaccionários” que precisam de ser executados para que a independência faça sentido). Isto é, o Mondlane que ele pinta é uma pessoa que não via na Frelimo a única ideia legítima de Moçambique. Aqui a gente pode discutir se esta imagem de Mondlane é correcta, ou não. Pessoalmente, penso que esta é uma questão que deve ficar em aberto no sentido em que tem de ser possível imaginar que Mondlane, justamente por ser pragmático, pudesse também evoluído para uma postura dogmática como alguns dos seus camaradas o fizeram.

Mas deixar isso em aberto não invalida o exercício intelectual que Severino Ngoenha nos propõe. Antes pelo contrário, ele abre oportunidades para pensarmos Moçambique de forma mais aberta e plural. Esse é o papel dum intelectual: abrir-nos perspectivas para imaginarmos outros mundos possíveis. É nesse sentido que o título do livro ganha coerência e pertinência: Regresso ao futuro.

Severino Ngoenha explica isto dizendo, e eu cito porque muito profundo: “Os passados, todos os passados, tiveram os seus futuros. Alguns desses futuros são hoje o nosso presente. Outros futuros do passado não tiveram nem têm nenhum presente, como há também futuros do passado que serão futuros no futuro. Há também futuros do passado que não tiveram e não têm futuro, como há também futuros do presente sem futuro. Porém, existem também futuros do passado que não tiveram espaço de realização, mas porque não estão ultrapassados, são convocáveis no presente para um eventual debate de futuro. É neste sentido que pensar em Mondlane é, de certa maneira, um retorno ao futuro, é mobilizar pensamentos e ideias do passado não-ultrapassados e, por isso mesmo, susceptíveis de serem convocados para um debate de futuro”. É isso.

Severino Ngoenha está a dizer que não devemos ficar reféns da nossa história. No nosso caso, ficar reféns da história é insistir na Frelimo de 1977, portanto do III Congresso que a declara Marxista-Leninista, como um desfecho inevitável da história de libertação nacional. Não é, nunca foi e supor que seja constitui uma deturpação grave da luta anti-colonial. Isso não retira mérito a quem pensa ter lutado por isso. Particulariza apenas, o que é importante como ponto de partida para pensar em Moçambique como algo diverso. A redução grosseira da luta anti-colonial à oposição entre linha revolucionária e linha reaccionária impediu-nos de ver outros futuros possíveis. Fez-nos reféns daquilo para o qual Chimamanda Adichie nos alerta, o perigo duma história única. É justamente dentro deste espírito que Severino Ngoenha apresenta as hipóteses (sociológica, política, epistemológica e filosófica) sobre Mondlane. Não vou entrar no detalhe da discussão de cada uma delas. Mas encontro nelas o fundamento para uma reflexão profunda não só sobre o nosso devir como também para os desafios que enfrentamos agora.

A hipótese sociológica identifica o diálogo, a deliberação e o consenso como elementos centrais para a gente reflectir sobre o que significa construir uma nação. A hipótese política refere-se ao tipo de arranjos institucionais que mais respeitariam a natureza específica das comunidades que fazem Moçambique. A hipótese epistemológica convida-nos a pensar sobre como podemos partir da nossa própria experiência para validar o que sabemos, ou podemos saber, sobre nós próprios. É, como ele diz, uma epistemologia positiva que assenta na negociação contínua do que somos, ou podemos ser. Finalmente, a hipótese filosófica consiste na ousadia da reflexão, na coragem que devemos ter para procurar outros subsídios que nos permitam imaginar outras maneiras de estarmos no mundo. Não preciso de concordar com cada uma destas coisas, e nos seus detalhes, para reconhecer aqui um sério convite à reflexão.

Mas, insisto, é preciso instrumentos próprios para aceitar este convite. Quem está refém da “história como fábula”, para usar a expressão de João Paulo Borges Coelho, e não sabe interpelar o mundo senão como confirmação dessa fábula, não pode contribuir de forma útil para o exercício que Severino Ngoenha nos propõe. E nem vai ter consciência das suas próprias limitações para esse exercício. Vai olhar para os dedos e ignorar as estrelas que o filósofo tenta mostrar.

Felizmente, a “morte” da Frelimo de 1977 permite outras leituras, incluindo a possibilidade de Severino Ngoenha fazer isso sem correr o risco de ser considerado “reaccionário” dentro daquela intelectualidade da denúncia que não lê para reflectir e dialogar, mas sim para denunciar quem se desvia da linha correcta

Marcos Carvalho Lopes

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