No terceiro artigo da série “Convite à falsificação” (2001) Gonçalo Armijos Palácios problematiza a forma como Marilena Chauí (1995) descreveu a revolução kantiana na filosofia
Gonçalo Armijos Palácios
Opção (Goiânia), 25 de novembro de 2001
Se Kant quis pôr o observador no centro e os objetos girando em torno dele, como em Ptolomeu, para que então propôs que se pense essa relação seguindo uma teoria, a de Copérnico, que faz exatamente o oposto? Cabe ao leitor responder.
Hoje quero começar falando sobre como, os animais e nós, enxergamos o mundo. As aves, os peixes, os insetos e os seres humanos, todos sabemos, não miramos com os mesmos olhos e, claro, não obtemos as mesmas imagens das mesmas coisas. Quando um ser humano olha para uma flor toda amarela, é isso que enxerga, uma flor só amarela. Já um rouxinol ou uma borboleta que olhem para a mesma flor verão outras cores, as cores ultravioletas do néctar da flor e das pétalas, por exemplo, que nós, seres humanos, não podemos enxergar. Assim, três observadores diferentes olhando para o mesmo objeto — neste caso uma flor — terão dele três imagens diferentes — imagens que dependerão do tipo de aparelho perceptivo que possuem. Uma ave marinha que olha do alto para o mar consegue ver os peixes dentro da água, já uma pessoa que desde um alto rochedo olhe para o mar, não vai conseguir enxergar dentro da água pois, entre outras razões, é cegada pelo reflexo da luz solar nas ondas. As aves conseguem ver os peixes dentro da água porque seus olhos têm filtros que deixam passar certos comprimentos de onda e não outros. Dessa forma, elas conseguem enxergar o que nossos olhos não podem. Assim, uma gaivota, um rouxinol e um ser humano que dirijam seu olhar para o mesmo ponto no mar formarão nas suas mentes imagens diferentes. Em síntese, a maneira como o aparelho perceptivo está constituído determina como o inseto, a ave e o ser humano constroem sua imagem do mundo.
Esta propriedade de constituir uma certa imagem das coisas não se limita às cores. Gostaria que o leitor olhasse para a figura desenhada nesta página. O que enxerga? Dificilmente não enxergará um cubo. Posso, então, dizer sem mais que quem olhe para a figura enxergará um cubo? Certamente não pois, na verdade, não é um cubo que está frente ao leitor e sim doze linhas distribuídas de uma tal maneira que levam a pessoa a ver um cubo. Não há um cubo nesta página. Há um desenho numa superfície plana. Um cubo de verdade tem três, e não duas, dimensões. Onde está a terceira dimensão? De onde surge a impressão de profundidade? Bom, ela é posta, criada, construída, para dizê-lo assim, por nós. É a especial maneira em que nosso aparelho perceptivo está constituído que cria a imagem tridimensional de um cubo. Que mais vemos no cubo? Um plano anterior e um posterior. Além disso, alguns leitores verão um cubo orientado para baixo, outros o verão orientado para cima. E o mesmo leitor pode mudar sua perspectiva e olhar o mesmo cubo ora orientado para baixo ora para cima. Veja-se quanta atividade há no aparelho sensorial do sujeito que percebe, ao passo que o objeto, o desenho, continua na sua inerte bidimensionalidade alheio à nossa maneira de olhá-lo.
Note-se, por outro lado, que quando vemos a figura ocorre, além de uma visualização determinada, uma conceitualização específica. Pensamos: é um cubo — se nos perguntam o que estamos enxergando não respondemos “linhas”, respondemos “um cubo”. Quando olhamos para a figura, então, a identificamos como algo e, além disso, a quantificamos, a pensamos como uma e não como, digamos, doze linhas ou seis lados. Veja-se, em síntese, quanta atividade há no sujeito que percebe e pensa as coisas enquanto elas, ali onde estão, ficam alheias ao nosso olhar e pensar. É isso que Kant, o grande filósofo alemão, quis mostrar: que vemos e pensamos as coisas o que nós pomos nelas.
Kant entendeu que sua teoria de como conhecemos as coisas representava uma revolução análoga à que, na astronomia, tinha representado a revolução de Copérnico. Para Ptolomeu, as estrelas giravam em torno da Terra. Copérnico, ao contrário, parte da hipótese de que é o movimento do espectador na Terra que produz a aparência do movimento nas estrelas. Enquanto a atividade em Ptolomeu está nos astros, em Copérnico está no próprio espectador. Do mesmo modo, a maneira como devemos entender a relação cognitiva entre sujeito e objeto, diz Kant, deve ser invertida: não é o sujeito que, imóvel, no centro do universo, vê passivamente os movimentos das estrelas. Não; é a atividade perceptiva e conceitual no sujeito que determina como as coisas sejam vistas e pensadas. Sobre esta sua revolução copernicana na teoria do conhecimento Kant fala no Prefácio à Segunda Edição da Crítica da Razão Pura. Vejamos como o próprio Kant descreve a relação entre sua teoria do conhecimento e a teoria copernicana: “Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento deveria regular-se pelos objetos…” Ele propõe que se faça o contrário, que se admita “que os objetos devam regular-se pelo nosso conhecimento”. Assim, se nossa percepção se regulasse pelos objetos, não veríamos um cubo nesta página e sim um objeto bidimensional. Mas como são os objetos que se regulam pela nossa percepção, o desenho nesta página é transformado, pela nossa própria atividade sensorial, num cubo, isto é, num objeto tridimensional. Agora vejamos o que Kant diz sobre Copérnico imediatamente depois do trecho citado: “O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, depois de não ter conseguido ir adiante com a explicação dos movimentos celestes ao admitir que todo corpo de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria melhor deixar que o espectador se movesse em torno dos astros imóveis. Na Metafísica, pode-se, então tentar o mesmo no que diz respeito à intuição dos objetos” (Grifos meus) Então, não pode caber a menor dúvida: para Kant é o sujeito que conhece que devemos pôr a girar em torno dos objetos imóveis, assim como Copérnico pôs o espectador a girar em torno dos astros imóveis.
Agora vejamos o que os alunos que leiam Convite à Filosofia, da professora Marilena Chauí (São Paulo: Ática, 1995), são obrigados a aprender. Na página 77 encontramos: “Inatistas e empiristas, isto é, todos os filósofos, parecem ser como astrônomos geocêntricos, buscando um centro que não é verdadeiro.” A primeira coisa que chama a atenção no trecho é a divisão de todos os filósofos entre inatistas e empiristas. Se isso tivesse sido verdade até a época de Kant, onde deveríamos situar todos os filósofos que não eram nem uma coisa nem outra, como por exemplo os céticos – que existiram não só na época de Kant, mas antes de Kant, na época medieval e na antiga Grécia? A professora Chauí continua o trecho assim: “Parecem, diz Kant, como alguém que, querendo assar um frango, fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do fogo”!! Onde é que Kant afirma semelhante disparate? E que tem a ver assar um frango (por outro lado morto e sem cabeça) com um observador vivo girando em torno do objeto que, à diferença de um frango morto e sem cabeça, é por ele observado? Mais um mistério.
Vimos que Copérnico, em palavras de Kant, fez girar o espectador em torno dos astros imóveis e que isso devia ser feito em teoria do conhecimento: girar o sujeito que conhece em torno do objeto conhecido. Mas a Dra. Chauí apresenta uma revolução copernicana bem ptolemaica: “Façamos, pois, uma revolução copernicana em Filosofia: em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento, dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos, comecemos colocando no centro a própria razão”!! (Meus grifos) Mas não é exatamente o oposto que Kant quer e que, para tanto, apela à analogia com a revolução de Copérnico? Mas não, enquanto o sujeito de Copérnico e de Kant está girando, o da professora Chauí vê, como Ptolomeu, os objetos girando em torno de si!!
No último artigo vimos como os prisioneiros da caverna de Platão – segundo ele acorrentados e sem poder mexer nem sair do lugar – se reproduziam à beça. (De fato, segundo a professora Chauí, os prisioneiros estão nessa situação “geração após geração”!) Agora ficamos sabendo que a revolução copernicana de Kant não consiste em pôr, como em Copérnico, o observador movendo-se em torno dos objetos. Não; na versão da Dra. Chauí a razão, contra a o que o próprio Kant afirma, vira um Sol “em torno do qual”, como ela diz no período seguinte, “tudo gira”!
Está na moda falar de ‘leituras’ e dos direitos ilimitados do leitor de interpretar as coisas ao seu bel-prazer. Mas quem tiver dúvidas sobre aquele trecho de Kant pode fazer uma simples pergunta: se Kant quis pôr o observador no centro e os objetos girando em torno dele, como em Ptolomeu, para que então propôs que se pense essa relação seguindo uma teoria, a de Copérnico, que faz exatamente o oposto? Cabe ao leitor responder.
Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.