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O Aristóteles incomensurável da Dra.:um conto sobre concursos públicos

Marcos Carvalho Lopes

publicado originalmente em 2014 como:
CARVALHO LOPES, Marcos. O Aristóteles incomensurável da Dra.: um conto sobre concursos públicos. Conhecimento Prático Filosofia , v. 1, p. 32-35, 2014.

Alguns acham que ética e literatura são assuntos que não se relacionam. “Literatura é estética, e só”, dizem. Mas eis aqui uma ficção que dá o que pensar.

Era uma vez, numa terra não tão distante um evento chamado “concurso para professor universitário”; o tema: Ética. Diversos professores habilitaram-se para participar e disputar a única vaga em jogo. Depois de no mínimo dez anos de estudos árduos, eis que, atingindo a máxima patente dentro das hierarquias de heráldica acadêmica, habilitados estavam para disputar honradamente aquele nobre posto. Ao menos deveria ser assim.

– Mas não te vejo habilitado para dar aulas de Ética. Todo o seu trabalho é voltado para literatura, estética e não Ética. Você não está habilitado para este posto. – Sentencia a Dra.

– Muito pelo contrário, uma vez que você não se alinha com uma “ética formal”, o tipo de aproximação com a literatura e questionamento dos costumes, dos valores cotidianos, que caracteriza meu trabalho, é totalmente adequado para uma cadeira de Ética. Isso é evidente quando lemos Alasdair MacIntyre, Martha Nussbaum, Richard Rorty, Stanley Cavell por um lado. Por outro, temos a “estética da existência” e a percepção da ética como processo de autocriação, algo que emerge da obra de Foucault, Deleuze etc. A aproximação com a literatura no campo da ética chega a ser algo trivial, alguns falam de “virada narrativa” na Ética, outros de “virada ética” nos estudos literários… enfim, se pensarmos também no terno grego “ethos”, o questionamento dos valores cotidianos, o que chamam de política cultural, é parte de seu horizonte.  

A professora esta contrariada com esta resposta. Parecia não esperar reação alguma, continua gesticulando como alguém que não concorda, mas não tem nada para dizer. Eis que, um outro professor avaliador muda o teor da objeção enquanto você explica que divide seu trabalho em uma parte de teor público e outra técnica, presa aos cânones acadêmicos. Ele interpela:

– Mas eu não reconheço valor no seu trabalho técnico. Para mim você não argumenta, apenas faz analogias. É isso que vi na sua prova, na sua aula, em seu memorial, na sua fala.

É melhor respirar fundo. Realmente sua aula não foi boa. Este mesmo avaliador que lhe questiona, olhava de boca aberta para o teto, mexia no celular enviando mensagens, certamente urgentes e muito mais relevantes do que aquela aula de concurso que você tentava desenvolver e que ele deveria avaliar. Sim, isso lhe causou desconforto e prejudicou o desenvolvimento de seu trabalho, mas ele é “o especialista”, um técnico tecnicamente reconhecido pelo rigor de sua habilidade técnica. É ele, “o especialista” quem diz “você só faz analogias”, o que em seu jargão de fins do século XVIII significa que seu diagnostico é de patologia mental, uma doença da imaginação que te faz alguém não razoável. Mas deveria assumir a “psicologia de um vencido” tendo na boca “uma ânsia análoga à ânsia”? Você deveria respondê-lo? Melhor não. Até mesmo porque, assumindo uma posição pós-nietzschiana, pan-relacionista, fazer analogias não soa tão mal. Analogia e ironia, talvez seja este teu método. Sendo o “técnico dos técnicos” alguém que precisa da ilusão do realmente real, você nunca diria que lhe falta imaginação para entender seus argumentos. Não, você não diria isso. Eis o que de fato diz ante este diagnóstico de doença mental:

– É, não tinha percebido isso. É uma coisa para se pensar. Mas não tenho nada para lhe responder. Até mesmo porque se o fizesse você não perceberia no que eu digo um argumento. Você não reconheceu nenhum argumento lendo dezenas de páginas que escrevi. Provavelmente não reconhece aqueles autores que estudo como pessoas que argumentam. Rorty então… você não deve gostar mesmo. 

O técnico fica desconfortável com estas palavras, mas no rosto possui um artifício para esconder os sentimentos. Mas sua esquiva o incomoda. Você o incômoda. Você é incomodo. Se é que ele reconhece em você um “você”. Tudo bem. Existe certo prazer em ser incomodo. E você continua explicando algo sobre seu trabalho, afirmando o “valor técnico” daquilo que faz. Mas lhe acusam de ter visto unicórnios, enquanto falava de rinocerontes. Você tenta desfazer o equívoco, mas não é um equívoco. Acreditam que você viu unicórnios. Pensam que suas críticas ao academicismo são uma ofensa direcionada à própria razão. A razão encarnada. Não há nada pessoal na crítica que lhe fazem… Ainda assim você tenta falar de um trabalho tecnicamente reconhecido e promissor. E novamente o técnico dos técnicos intervém:

– Mas você não argumenta, quando lhe apertam se esquiva com autoridades, isso é escolástica!

Afirma triunfante. A acusação de escolástica, essa sim, é nova. Você cita autores que sustentariam os pontos de vista que defende, mas essa tentativa de colocar-se como parte de uma conversação academicamente reconhecida é uma “reivindicação escolástica”. Dois clichês em um mesmo lugar: acusar o opositor de não argumentar e ao mesmo tempo de ser escolástico. Quanto ao seu trabalho, o técnico dos técnicos reitera que não percebe valor e pergunta sobre o método que segue, o procedimento, a matriz epistemológica, o fundamento fundamental… é tão incisivamente reiterativo neste jogo, que, cansado, você concede a resposta que sabe que é aquela que ele gostaria de ouvir.  Usa “procedimentos analíticos de uma perspectiva pragmatista, desenvolvendo leituras imanentes”. É isso uma reificação, uma fala que não fica bem em sua boca. Mas, ainda respeita o técnico dos técnicos e sabe que ele não poderia lhe pedir outra coisa senão técnica.

– Você não respeita a seriedade dos conceitos. –  Diz a Dra. agora, de um modo que causa alguma estranheza até mesmo em seus pares – É você que na prova utilizou o exemplo do jogador de futebol para falar de Aristóteles? Nada contra o exemplo, mas te dei uma nota baixíssima por usar conceitos de forma imprecisa. Olhei aqui o cpf da prova, é realmente você.

Bem, esta era uma defesa de memorial. Colocar a prova em cima da mesa é algo inusitado. Até porque você sabe que fez uma boa prova, conhece o tema. Um professor que soubesse ler lhe daria no mínimo 7, um que soubesse ler e rir, lhe daria 9 ou até mais. A atitude da Dra. fere a impessoalidade que se espera de um concurso deste tipo, que é norma em um concurso assim. Colocar sua prova em cima da mesa e fazer uma acusação deste tipo é como jogar toda seriedade do concurso fora para dar vazão para algum instinto sádico, alguma forma de ressentimento atávica. Algo surreal.

A Dra lê trechos de sua prova que atestariam seu despreparo. Quando você diz que a “eudaimonia” é uma espécie de julgamento público, que não depende somente da atuação do agente, algo que poderia se perder por uma desgraça trágica; ela ri e diz que Aristóteles ironiza isto nos livros 2 e 3 de sua Ética. Seu exemplo do jogador seria péssimo, porque explicando o conceito de “Arete”, escreve que o tal jogador não desenvolveu plenamente suas potencialidades, mas que era reconhecido como alguém com potencial. A Dra afirma que as potencialidades só se estabelecem em sua efetividade, não faria sentido este exemplo.   

Ela te pegou, você está sem ação. Sabe que pode dar respostas, mas de que as respostas adiantariam? Ela é a avaliadora. Você diz que não vai dizer. Se a Dra. lhe deu uma nota “baixíssima”, como afirma, sabe que está eliminado do concurso e agora faz parte de um espetáculo grosseiro de assédio moral. De nada vale o que disse Aristóteles, de nada vale a valsa vienense. Para que insistir neste jogo tosco. Mas o técnico dos técnicos não quer seu silêncio, ante sua recusa a dar uma resposta, pede que “argumente, vamos! Você pode fazer isso”.

– Pois bem, veja se isso é um argumento para você. Neste momento da prova não estava falando de Aristóteles ainda, mas do campo semântico das palavras “arete”, “eudaimonia” e “telos”. Aristóteles mesmo argumenta contra a dimensão trágica da “eudaimonia”, o significado comum do termo que estava explicando, mas não a nega: é só olhar sua comparação entre homens e deuses no final de sua Ética (ou ler Martha Nussbaum, Bernard Williams ou MacIntyre). O exemplo do “jogador” é muito bom para mostrar a dimensão social destes conceitos, e é utilizado também por MacIntyre, que dá uma ênfase à perspectiva social da ética de Aristóteles, como os seus termos são retirados de jogos de linguagem públicos. Sabemos o que é um bom jogador, um jogador que tem potencial. As potencialidades não se fundamentam em sua efetividade em Aristóteles: senão não haveria telos e ele não diria o que diz das mulheres e dos escravos. Um jogador que vencesse os jogos olímpicos alcançaria a imortalidade, a “eudaimonia”…

Você disse essas coisas, algumas dessas coisas, mas fala de uma posição compulsória, coagido. Pode haver controvérsia na interpretação, mas ter que dar explicações em um contexto destes é por si só algo constrangedor. A Dra balança a cabeça negativamente e continua dizendo que “você não entendeu, não é o exemplo…”. Essa negativa lhe dá a certeza: “é o exemplo”. Do exemplo trivial ela deduziu sua frivolidade e daí leu seu texto com “caneta vermelha”, de uma posição superior. Agora diz que você “não entendeu”. Realmente existe algo que somente ela, a Dra, entende. Você sabe que o currículo da Dra. não é lá essas coisas, que a Dra. não tem uma produção que lhe habilite para a posição de avaliadora (alguns de seus concorrentes de concurso tem currículo melhor que o dela), mas a Dra se ri porque é a efetiva há décadas (nem sempre Dra.) e não há ninguém para lhe avaliar da forma como ela julga ter o direito de avaliar. Acabou, né?

Lhe avisam “amanhã saí o resultado”, quem diz isso é o terceiro professor da banca, preservado na narrativa por manter sua maldade no nível do banal. Você, de saída, responde com um sorriso: “não estarei aqui”. Sabe que não foi aprovado. Desconfia que ninguém será aprovado. Não existe amor em SP, não existe ética em …

Marcos Carvalho Lopes

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